
Carlos Guerra percorreu 855 quilómetros a pé em 17 dias nos Pirenéus
Carlos Guerra, consultor e atleta amador de Vialonga, participou na Transpyrenea 900, a ultramaratona de 855 quilómetros nos Pirenéus franceses. Ao longo de 17 dias enfrentou frio, calor e chuva, dormiu ao relento e passou por situações insólitas, como um encontro com um urso e uma investida de vacas. O português terminou a prova com histórias para contar.
Carlos Guerra, 55 anos, cumpriu um sonho com nove anos e participou numa das provas de ultratrail mais duras do mundo. Trata-se de uma travessia integral dos Pirenéus franceses, do Mediterrâneo ao Atlântico, seguindo a rota de grande percurso GR10 (La Grande Randonnée 10), que decorreu de 1 a 19 de Agosto. O consultor de sistemas de informação e especialista em logística, fez a Transpyrenea 900 em 17 dias, percorreu 855 quilómetros, em 394 horas, com mais de 56 mil metros de desnível positivo, o equivalente a subir e descer 28 vezes a Serra da Estrela.
Quando abriram as inscrições, há pouco mais de ano e meio, inscreveu-se e começou a preparar-se fisicamente, sobretudo nos três meses antes da prova. Fez muitos treinos bidiários, além do próprio treino mental, cuidou da alimentação e do sono. Os treinos foram feitos todos entre Vialonga, onde reside, e a Póvoa de Santa Iria, aproveitando as subidas uma vez que não há montanhas na zona. “Fui criando um filme na minha cabeça: o que, à partida, iria ter pela frente. E foquei-me, tal como já tinha feito na travessia da Suíça, em mim próprio. Não quis arranjar nenhuma muleta psicológica, porque muitas vezes isso acaba por trair os atletas. Preparei-me para estar sozinho e fui preparado para o pior”, conta a O MIRANTE.
Dormir pouco e passar fome
Cerca de 40% dos atletas desiste. O terreno do percurso praticamente não permite correr, mas sim caminhar rápido em inúmeras subidas e descidas. Carlos Guerra conta que encontrou o seu próprio ritmo e não fez bolhas nos pés, tendo ficado “muito satisfeito” com as pequenas vitórias.
Enfrentou frio, calor e chuva, mas o mais difícil foi a alimentação, uma vez que na mochila só podia levar um terço do que precisava para o percurso, o que se traduziu em três bases de vida. Outro terço os atletas tinham de comprar em cafés, bares e restaurantes das vilas e aldeias que encontravam ao longo da prova. “Nós precisamos de hidratos de carbono, mas passei em muitos sítios de noite com tudo fechado. Houve um ou dois dias em que a minha força de vontade fez-me esquecer que o estômago estava a precisar de mais. Cerrei os dentes e fui para a frente”, diz.
Para o atleta, dormir é fundamental numa prova como esta e, por isso, fez por descansar, muitas vezes ao relento, pelo menos quatro horas por dia. Apesar de haver atletas a fazer directas sem dormir, Carlos Guerra não aconselha e considera que muitas desistências se devem à falta de descanso.
As necessidades fisiológicas são feitas em qualquer lugar. A prova é dispendiosa e só a inscrição custa mil euros. Carlos Guerra gastou mais de três mil euros entre inscrição, novas sapatilhas, suplementos, alimentação, a viagem de avião para Barcelona e a viagem de táxi de Barcelona para Le Perthus, que custou 370 euros por não haver transporte público. “São umas férias em família e já vou em duas. A minha família aceita, mas desta vez estiquei muita corda (risos), porque roubei-lhes quase três semanas”, relata.
Ursos e vacas pelo caminho
Carlos Guerra pratica desporto desde a infância e passou pela ginástica de aparelhos, atletismo de velocidade, natação, guarda-redes de andebol e atletismo de estrada. O trail começou há 15 anos e passou a participar em provas e a criar os próprios métodos e rotinas, sempre sem treinador. Tem noção dos riscos de uma prova como a Transpyrenea 900, até porque os sentiu na pele. Na primeira noite dormiu ao relento e, quando acordou, uma atleta polaca contou-lhe que tinham sido visitados por um urso de madrugada.
Noutro dia deu de caras com uma vaca após ter colocado o dorsal e ligado a luz. Caiu, o animal investiu sobre ele, levantou-se e a vaca voltou a investir, mas acabou por cair na ribanceira. Sem alternativa, o atleta e mais dois franceses atravessaram uma manada com mais três dezenas de vacas que estava no trilho, mas dessa vez seguiram em fila e em silêncio. Outra das peripécias foi o desaparecimento da sua mala, que foi levada por engano por outro atleta e só apareceu em Portugal duas semanas depois do fim da prova.
