José Saramago: o rapazito que andou descalço pela Azinhaga, o adolescente que desmontou motores de automóveis, calculou pensões, ajudou a fazer livros e depois se pôs a escrevê-los
José Saramago aproveitou os Cadernos de Lanzarote para falar da infância, mas também dos dias em que se sentava a escrever o seu diário. Eis um dos seus textos em que em meia dúzia de linhas ficamos a conhecer um percurso de vida que acabou famoso.
17 de Fevereiro
A mim estas coisas assombram-me, quase me deixam sem palavras, e desconfio que as poucas que restam não serão das mais apropriadas. O rapazito que andou descalço pelos campos da Azinhaga, o adolescente de fato-macaco que desmontou e tornou a montar motores de automóveis, o homem que durante anos calculou pensões de reforma e subsídios de doença, e que mais adiante ajudou a fazer livros, e depois se pôs a escrever alguns – esse homem, esse adolescente e esse rapazito acabam de ser nomeados Doutor honoris causa pela Universidade de Manchester. Lá irão os três em Maio, a receber o grau, juntos e inseparáveis, porque só assim é que querem viver. Tão inseparáveis e juntos que, mesmo agora, quando estou a procurar as palavras certas para deixar notícia do afago que me fizeram, estou também, de forquilha na mão, a mudar a cama aos porcos do meu avô Jerónimo e a rodar válvulas num torno de bancada. Benedetto Croce dizia que toda a História é história contemporânea. A minha também.
Em Cadernos de Lazarote Vol. III Página 45


