“Na Azinhaga, no tempo dos olivais, cada árvore era como uma pessoa diferente”

José Saramago com Pílar del Rio na inauguração do Polo da Fundação Saramago em Azinhaga – FOTO ARQUIVO

José Saramago a recordar os seus tempos de menino, na Azinhaga, e os lugares que fazem parte da história da aldeia onde o escritor tem agora uma estátua, uma fundação, e uma neta a viver ( Ana Matos), que ajuda a cuidar da memória do avô e da sua extensa Obra.

3 de Setembro

Entre Albacete e Baeza há duzentos quilómetros de olivais que se alargam a perder de vista de um lado e do outro da estrada. Recordei (era inevitável) os campos da minha velha Azinhaga, de onde arrancaram todas as oliveiras (a primeira vez que vi as extensas planícies rapadas, entre a linha do caminho-de-ferro e o Almonda, senti uma dor na alma, no coração, tanto faz, só sei que me doeu…), recordei os mágicos nomes que balizaram os itinerários da infância – Olival Basto, Espargal, Oliveiras Grossas, Divisões, Cerrada Grande, Canelas, Salvador, Olival da Palha, Olival d’EI-Rei -, e perguntei-me como se orientarão agora os pequenos azinhaguenses no meio daqueles regimentos de girassóis de uniforme, alinhados, intermináveis, monotonamente copiados uns dos outros. No tempo dos olivais, cada árvore era como uma pessoa diferente que era necessário conhecer, com a sua fisionomia própria, modelados de locas, bossas e vestígios de podagens os troncos cinzentos, o vulto compacto ou esgarçado de cada uma, os musgos, os líquenes, um ninho esquecido nos braços mais altos… Tive tempo de entristecer entre Albacete e Baeza. Mas foi suavemente que entristeci, valeu-me ao menos isso.

Demos uma volta pela cidade ao fim da tarde. Gosta-se de Baeza facilmente: no que toca a arquitecturas, não lhe faltam belezas para mostrar, e de primeira ordem, mas, a par disso, respira-se aqui uma atmosfera simples e cordial que leva imediatamente o viajante novel a sentir-se como em terra conhecida. Lastimável, porém, deplorável, é aquele monumento a Antonio Machado, posto num lugar solitário, por onde corriam as antigas muralhas, as que foram mandadas derrubar por Isabel a Católica…

Imagine-se uma forma abrutalhada, mais ou menos cúbica, de cimento, aberta em cunha nos quatro lados, com o busto do poeta encafuado lá dentro, como um pobre pássaro cativo, ele que havia cantado “os alegres campos de Baeza” quando, por sete longos anos, aqui esteve a viver e a ensinar francês. Apetece implorar que o tirem da imerecida prisão, que o levem para uma praça pública, para o meio da gente, fechado no bronze de que está feito, que isso não se pode evitar, mas livre da masmorra em que não sei por que imaginários crimes o meteram…

Em Cadernos de Lazarote Vol. IV Página 209

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