Cultura | 16-05-2008 10:15
O pintor que desenhava monumentos em papel pardo
A pintura sem pessoas não faz sentido para José Carlos Prudêncio. O artista que se notabilizou na pintura da festa brava e das paisagens alentejanas raramente vai às inaugurações das exposições e não valoriza a crítica de artes porque há críticos que pedem obras aos pintores que depois elogiam. À beira dos 60 anos, Prudêncio quer lançar gritos de alerta a uma sociedade deprimida e vai iniciar-se na escultura porque a vida é uma aprendizagem permanente. Quando é que despertou o gosto pelas artes?Tinha nove, ou dez anos, e sentava-me na minha terra (Vila Viçosa) frente à igreja a desenhar o que via naquele papel com que se embrulhava a manteiga na mercearia, papel pardo. Sempre tive a mania de desenhar o que achava interessante.Teve uma infância feliz?Era muito mais pobre que as crianças actuais, mas era uma criança feliz com o que tinha e gostava de viver no Alentejo. Os meus pais viviam dum pequeno comércio e trabalhavam muito para que eu pudesse ter uma vida melhor. Depois fui estudar para Évora e segui a minha vida.É nessa cidade que se descobre o artista?Sempre tive o gosto pela pintura e pela escultura. A primeira coisa que eu fazia quando chegava a uma terra nova era desenhar a estátua. Havia estátuas em todas as localidades e fascinava-me aquelas esculturas. Questionava-me como se fazia o rosto ou o corpo duma pessoa com tanta perfeição. Hoje já não se fazem estátuas a ninguém, este país perdeu o sentido de homenagear os benfeitores.Chegou a fazer alguma escultura?Fiz umas coisas em barro e até tenho aqui material porque ainda quero fazer escultura antes de morrer porque tenho mesmo que fazer. Mas foi na pintura que cresceu como artista e atingiu notabilidade. Onde descobriu esta vocação?Estava numa aula de desenho aos 12 anos. Tinha saído dum meio pequeno para Évora e pensava que os rapazes da cidade eram melhores que eu. Havia um grande receio de falhar, uma insegurança. Era uma criança ingénua. Mas comecei a desenhar e quando acabei o desenho, estavam todos os alunos de volta de mim a elogiar o desenho e a professor muito admirada. O que é que desenhou?Era um baixo-relevo dum busto só com a cabeça. Não me lembro quem era o senhor, mas estava muito perfeitinho.Hoje pinta mais paisagens do Alentejo e Ribatejo, mas as pessoas estão sempre presentes?Eu pinto por uma atracção interior e as minhas pinturas têm que ter vida. Muita gente, movimento e luz. Não gosto de pintar um paisagem sem pessoas. A presença humana é muito importante.O local onde nascemos influencia a nossa vida?Não tenho dúvidas nascer ou viver numa aldeia é diferente duma grande cidade. Costumo dizer à minha mulher que os nossos filhos foram influenciados por terem nascido e crescido numa terra pequena. A sua carreira profissional foi como bancário. Foi uma vocação ou uma oportunidade?Eu era um jovem com fracos recursos e não me podia dar ao luxo de desperdiçar uma oportunidade de ter um emprego que na altura era seguro e relativamente bem remunerado.Foi um bancário contrariado, não viveu a profissão com intensidade?Nunca gostei de estar fechado horas seguidas. Nasci e cresci com a natureza e gosto de liberdade.Foi colocado em Vila Franca e veio viver para o Ribatejo que hoje retrata nas suas obras?Antes ainda vivi no Redondo porque a minha mulher era professora e estava lá colocada. Tive oportunidade de ser professor de ginástica, porque tinha jogado basquetebol em Évora e gostava de desporto, pedi a transferência no banco para ir para o Alentejo mas não se concretizou e fiquei em Vila Franca. Mais tarde fiz casa em Samora Correia e por aqui fiquei. A pintura foi também um escape para uma vida sedentária de bancário?Eu confesso que nunca quis ser pintor a sério, no sentido de ter fama e ganhar muito dinheiro. Pintava e pinto por gosto. Ainda hoje não tenho preocupações de metas nem de correntes. Sou um auto-didacta que se procura aperfeiçoar com naturalidade e com grande dedicação ao que faço. Tem outra responsabilidade pelo nome que fez, pelas galerias onde está representado e pelo leque de clientes que tem?Não sinto isso. Não acuso responsabilidade e lido muito mal com a fama. O meu interesse é pintar o melhor possível e procuro estudar a pintura. Tenho centenas de livros e investigo muito porque quero continuar a aprender com os pintores que sabem mais que eu.A sua pintura revela uma evolução significativa nos últimos 20 anos…Tinha que crescer como pintor. Trabalho todos os dias, dediquei-me por inteiro à pintura e quanto mais pinto, naturalmente, melhor pinto. Qualquer pintor cresce. Ser pintor é talento, mas também é muito trabalho.Mas é possível ser-se pintor sem uma vocação nata?Se calhar há muita gente com uma arte para descobrir. Há qualidades que nascem com a gente, mas mesmo essas desenvolvem-se e melhoram-se com a prática. Todos os dias aprendo e descubro pormenores que antes não via com a profundidade necessária.Na pintura, há pormenores que fazem a diferença?O que está por trás do que vemos no primeiro olhar é que dá força à obra. Hoje preocupo-me com pequenos nadas que fazem toda a diferença.Já lhe aconteceu pintar um quadro e não gostar do que viu?Tenho estragado muitos quadros porque depois de os pintar não gosto do que vejo. Um dia um pintor amigo viu-me destruir um quadro e disse:”isso é um crime, não faças isso”. Achei que não estava como queria, tentei remendar, mas não gostei. Só apurando a nossa exigência se pode evoluir.Ainda passa muitas horas a pintar?Já não consigo pintar uma noite inteira. Quando está a correr bem aproveito ao máximo, mas sinto que já não tenho condição física para fazer maratonas. A pintura é muito exigente para a vista para o cérebro e para o corpo. Já vou a caminho dos 60 anos.O local onde pinta é importante?O nosso local de trabalho tem pequenos nadas que nos definem como profissionais e como pessoas. É preciso estarmos familiarizados com a envolvente e sentirmos que o espaço é nosso. Quando estou a pintar, até mesmo a intrusão da minha mulher ou dos filhos perturba-me. Preciso estar só no meu cantinho, ouvir os passarinhos, o ladrar dos cães e ver estas plantas.Tem a companhia do rádio?Há alturas em que o rádio fica desligado.Quando retrata paisagens ou motivos do campo, costuma pintar no local?Já pintei ao vivo em vários locais, mas no campo não porque não tenho as condições de que preciso. Costumo fazer muitas fotografias e depois pinto no atelier.TEXTO 2O susto com um toiro e a ameaça de um agricultor mal disposto Fotografa toiros bravos e já apanhou alguns sustos?Numa entrada de toiros aqui em Samora Correia, estava tão entusiasmado para apanhar os toiros, os cabrestos e os campinos de frente e não dei a devida distância. O toiro investiu comigo cheio de força e quase fui colhido. Tive de saltar a tranqueira e cai estatelado do outro lado, mas não me magoei. Tinha duas máquinas fotográficas ao pescoço e um saco do material, mas não se estragou nada. Mas tive outros sustos.Quais?Já me quiseram bater no campo por estar a fotografar senhoras a trabalhar em Salvaterra de Magos. Tinha pedido autorização às mulheres, mas o patrão não gostou e dirigiu-se a mim com dureza pedindo os rolos. Não os dei.Gosta muito de pintar os camponeses e as ceifeiras?Para mim os trabalhadores do campo são heróis esquecidos porque foram eles que deram de comer a este país e ninguém quer saber deles.Segue uma linha emocional na sua pintura. Também faz trabalhos por encomenda?Nunca pintei uma encomenda. O que pode acontecer é um cliente dizer que quer uma campinagem e eu faço a meu gosto e ponho à consideração do cliente. Nunca tive quadros rejeitados, mas estou sempre aberto às críticas.Recusa trabalhar com prazos apertados?Não gosto de ter pressão porque pintar não é a mesma coisa que fazer outro tipo de trabalho. Gosto de pintar ao meu ritmo. Quando me pedem com prazos fixos porque querem oferecer em determinada data, já tem corrido mal. Os seus quadros são bem pagos?Ganho o suficiente para viver. Nunca pintei por dinheiro e já me têm dito que deveria valorizar mais os meus quadros. Já vendi quadros em que, se contasse as horas de trabalho, tinha perdido dinheiro. Não faço pintura comercial.Pinta sempre por gosto ou já pintou por dinheiro?Quando estou com falta de dinheiro tenho de pintar com a ideia de vender rapidamente. O pintor não vive do ar e precisa de dinheiro.É possível viver só da pintura?Para quem souber gerir a carreira é fácil viver da pintura. Eu confesso que não sei lidar com o aspecto da promoção e da venda das obras. Vou ao sabor das oportunidades que aparecem, mas não procuro nada. Para viver bem teria de avançar para Barcelona, para Madrid, para Paris e para Milão. Não é aqui em Samora que se ganha dinheiro.Recentemente uma galeria levou obras suas a uma exposição internacional em várias cidades do Canadá, mas o senhor não esteve lá…Não tenho espírito para estar nesses acontecimentos. Sou um pintor sem vocação para ser relações públicas. Reconheço que o artista tem de aparecer, tem de conviver, mas eu prefiro estar no meu canto e não estou interessado em ser celebridade ou ganhar muito dinheiro.Mas isso penaliza a sua carreira?Sinto isso, mas não é importante. Raramente vai à inauguração das suas exposições?Os galeristas ou os organizadores das exposições nas câmaras e noutros locais convida-me sempre. Geralmente fujo às inaugurações. Não é por falta de respeito pelas pessoas é porque não me sinto bem. Não gosta de dialogar com os visitantes?Sei que à partida as críticas são sempre positivas por uma questão de delicadeza e isso mexe comigo. Já ouvi rasgados elogios a obras que não estavam perfeitas e percebi que quem elogiava não percebia nada de pintura.Costuma ler os comentários deixados nos livros de honra das exposições?Normalmente nem coloco livro de honra. Quando existe, por vezes, passo os olhos nos comentários e há opiniões muito simpáticas e muitas análises descabidas por desconhecimento.“Há críticos que pedem quadros aos pintores que depois elogiam”Há bons críticos de arte em Portugal?Conheço poucos ou nenhuns, mas creio que não há muitos e a qualidade também deixa muito a desejar.Não valoriza a crítica?Não acredito na crítica de artes porque há críticos que pedem quadros aos artistas que depois elogiam.Já lhe aconteceu?…(risos) Infelizmente já e fiquei desiludido. Por isso não me preocupo com a crítica. Quero é pintar cada vez melhor e continuar a merecer a confiança das pessoas. A crítica sincera é aquela que vem de grandes pintores que fazem uma análise crítica do quadro com precisão. Tem contactos com outros pintores?Muito poucos. Falo mais vezes com o João Mário e o Edmundo Cruz.Quem é o seu ídolo na pintura?Eu admiro mais os quadros que os pintores. Não tenho nenhuma referência. Gosto muito do Soroya um grande impressionista espanhol. Os pintores espanhóis usam muita luz, muito movimento e eu aprecio.Tem quadros seus em casa?Não tenho nenhum quadro meu em casa. A minha mulher fica zangada comigo porque nunca tenho tempo para pintar para a família.Quem são os seus clientes?Não conheço a maioria dos clientes. Tenho alguns amigos que me compram quadros, mas trabalho com galerias e são eles que vendem as obras aos sus clientes.Sendo um pintor de tradições, choca-lhe ver um campino trajado a rigor a desfilar de óculos escuros e a fumar charuto?Confesso que não gosto de ver desvirtuar o genuíno. As tradições devem ser respeitadas e não podem ser adulteradas. Nesse aspecto, os espanhóis são mais cuidadosos na preservação das suas tradições. Os pormenores tornam as coisas mais dignas.Os campinos são figuras em vias de extinção?Infelizmente corremos o risco de deixar de ter os campinos. É uma figura romântica do Ribatejo que deve ser acarinhada. Pinto muito o campino por devoção e admiração. Cresci numa família ligada aos cavalos e gosto de ver um campino bem montado.Este fenómeno ligado às tradições e à festa brava pode ser um pólo de atracção turística?Esta região tem muita força taurina e tem aspectos únicos que deve aproveitar para criar pólos de atracção turística envolvendo outras componentes ligadas à cultura, à gastronomia e às actividades no campo.As largadas de toiros continuam a vitimar aficionados. Concorda com os toiros em pontas?É uma questão delicada. Um toiro embolado não é a mesma coisa. Retira emoção e é um respeito pelo toiro. Em pontas, o toiro tem mais possibilidade de se defender.É um alentejano radicado no coração do Ribatejo. Como é que gere esta aparente ambiguidade?A pintura é o elo de ligação destas duas regiões onde passo os meus dias. São duas identidades muito diferentes a todos os níveis. As paisagens, as pessoas, as culturas, tudo é diferente.O artista tem de ser boémio e fazer vida social?Hoje não bebo e quase não faço vida social e é na pintura que me expresso.Esse isolamento é natural ou sentiu necessidade de se refugiar no atelier?Sempre gostei de estar só, de contemplar a natureza e de poder pintar num ambiente de tranquilidade. A maior parte das pessoas não desfruta o prazer de ouvir um pássaro a cantar no meio do campo. Vivem isoladas em ambientes saturados e isso é muito mau porque não somos uma ilha e precisamos de comunicar de partilhar emoções e afectos. As suas obras não reflectem o seu espírito crítico em relação ao mundo que o rodeia?Ainda não entrei por aí, mas tenciono pintar para transmitir o meu desconforto e descontentamento em relação à evolução da sociedade.Será um grito de alerta?Não sei se me vão ouvir. Mas um quadro pode passar uma mensagem.A sua pintura actual transmite os seus estados de alma?Um cliente dizia-me outro dia que um quadro que me comprou lhe transmitia uma enorme tranquilidade e eu percebi porque senti isso quando o pintei. A tal ponto que nas costas da tela estava lá o nome do quadro: tranquilidade.Que fazer escultura. Já tem ideia do que vai fazer?Quero fazer um cavalo…Ainda estou a estudar, mas tenho a certeza que não vai ficar mal.CAIXAO pintor que não vai às inaugurações e não gosta de elogios “fáceis”José Carlos Prudêncio é um dos pintores de maior notabilidade na região. Expõe em algumas das melhores galerias de Lisboa, um pouco por todo o país e já participou em várias mostras além fronteiras. O sucesso é natural. O artista confessa que pouco faz para mostrar o seu valor, para além de pintar. Raramente vai a uma inauguração, não faz vida social e não gosta de ouvir elogios “fáceis” e “simpáticos”. Prefere a crítica sincera de alguns amigos pintores.Este alentejano de 59 anos, vive em Samora Correia há três décadas, mas mantém o sotaque bem vincado. É no atelier, montado num anexo da vivenda, que pinta todos os dias. Ouvem-se os pássaros a cantar e os cães a ladrar.Na mesa não faltam cinzeiros porque o pintor fuma dois maços de cigarros por dia.As paredes têm quadros quase prontos a entregar. No tripé está uma tela com camponeses alentejanos. Um quadro com luz, cor, movimento e as pessoas que Prudêncio nunca dispensa nas suas obras.Apesar do seu olhar aparentar um homem fechado no seu ser. O pintor é afável, gosta de conversar e é sensível ao mundo que o rodeia. Os amigos dizem que é capaz de fazer tudo por quem precisa sem se colocar em bicos de pés.Adora animais e o carinho que transmite aos cães que correm no seu quintal não mente. Tirou a carta de caçador, mas nunca matou um animal porque não consegue. Gosta de cavalos, cresceu com eles no Alentejo, mas não tem condições para os ter em Samora Correia onde vive com a esposa e dois filhos. Dois rapazes com mais de 30 anos, mas que o pai não abdica de acompanhar de perto. “A família para mim é tudo. Não há dinheiro nenhum que pague o estarmos juntos”, diz, para justificar não ter voado à procura da fama.Alguns pintores reconhecem José Carlos Prudêncio não aproveita o seu potencial artístico. O pintor admite que poderia ser famoso e rico se tivesse outro feitio. Se fosse para fora com uma linha mais comercial e com uma máquina que fizesse o seu marketing. “Pinto por prazer e desde que tenha uma vida digna sou feliz”, explica.Viciado em leitura, o pintor tem dezenas de obras encaixotadas no sótão. É nos livros e revistas que muitas vezes se inspira para a pintura. Quando era jovem, Prudêncio praticou basquetebol e voleibol e até pensou ser professor de ginástica, mas acabou por seguir a carreira de bancário porque era mais segura. Foi o banco que o levou para o Ribatejo, mas nunca foi um bancário realizado. Na pintura encontrou a compensação para as horas de prisão atrás duma secretária.
Mais Notícias
A carregar...