Cultura | 15-07-2019 20:00

Centenário do nascimento de Natércia Freire, a poeta de Benavente

Centenário do nascimento de Natércia Freire, a poeta de Benavente

A Biblioteca Nacional organizou e inaugurou no dia 11 deste mês uma exposição sobre a Vida e Obra de Natércia Freire.

A Biblioteca Nacional organizou e inaugurou no dia 11 deste mês uma exposição sobre a Vida e Obra de Natércia Freire. A organização é de Teresa de Sousa Almeida e está patente até final de Outubro. Este é o primeiro acto das comemorações do centenário da jornalista e escritora que marcou um longo período da vida cultural portuguesa ao dirigir durante duas décadas o “Artes e Letras”, suplemento literário do Diário de Notícias.

Já há um calendário para a comemoração da centenário da ecritora de Benavente, que falava em muitos dos seus textos da lezíria ribatejana e do apego ao território onde nasceu, mas falta confirmar muitas das datas. Na Biblioteca Nacional vai voltar a falar-se de Natércia Freire numa cerimónia evocativa no dia 28 de Outubro que contará com a intervenção de de António Valdemar e leitura de poemas por Teresa Lima.
Está marcada para 8 de Outubro uma mesa redonda sobre a sua obra, e o lançamento da edição do centenário, 33 Poemas de Natércia, edição de Pedro Sena Lino.

A mesa redonda contará com figuras da literatura e da cultura portuguesa, nomeadamente Guilherme Oliveira Martins, Fernando Pinto do Amaral, Jorge Reis Sá, Nuno Júdice e Pedro Mexia ;

Na Academia das Ciências, haverá uma sessão solene a a 5 de Novembro. Em Benavente, sua terra Natal, haverá no dia 19 de Outubro cerimónia evocativa com leitura e canto de poemas. O prémio nacional de poesia Natércia Freire, que vem sendo atribuído pela Câmara Municipal de Benavente, terá lugar em 2020 evocando o centenário.

Isabel Corte-real e Ana Lúcia Sena Lino, filhas de Natércia Freire, estão a organizar o centenário em conjunto com entidades e figuras que se quiseram associar ao centenário de Natércia Freire, a mulher que fazia questão de reivindicar o carácter feminino da sua arte de escrever.

Publica-se em baixo o texto do catálogo da exposição de que falamos em cima e que é da responsabilidade de Teresa Sousa Almeida

Natércia Freire (1919 - 2004)

Esta exposição pretende homenagear Natércia Freire, mulher de letras, poeta, prosadora, ensaísta, tradutora e jornalista cultural, que pertenceu a uma geração de autoras portuguesas que começaram a publicar no final dos anos 30 e durante a década seguinte do século passado. Como Ana Paula Ferreira notou, num livro fundamental (A urgência de contar.

Contos de Mulheres dos anos 40), as suas obras afastavam-se dos dois movimentos dominantes na época, ou seja, da revista presença e do Neo-Realismo, sendo arrumadas numa categoria - literatura feminina-, o que terá estado na origem da sua marginalização.

De facto, com algumas excepções conhecidas, as escritoras deste período não fazem parte do cânone literário. Estudando a presença das mulheres nas obras críticas do século passado, Chatarina Edfeldt, no livro Uma história na História. Representações da autoria feminina na História da Literatura Portuguesa do século XX, afirma que, por exemplo, na obra de referência de António José Saraiva e Óscar Lopes, nomeadamente nos capítulos

dedicados à «Época Contemporânea», da responsabilidade deste último, a percentagem de páginas dedicadas à autoria feminina é de 8%.

O caso de Natércia Freire é muito particular, porque dirigiu o suplemento «Artes e Letras» do Diário de Notícias, entre 1954 e 1974, tendo sido a primeira mulher a fazê-lo, numa altura em que a instituição literária era sobretudo masculina, o que lhe deu uma grande visibilidade. Só muito mais tarde, em 1968, Maria Teresa Horta será convidada para dirigir o suplemento cultural de A Capital.

A poeta

Como está documentado na vitrine dedicada à sua obra póstuma, a sua poesia foi analisada por alguns dos críticos mais influentes da sua época. Jacinto do Prado Coelho, na «Introdução» a Poesias escolhidas: 1942-1952, chama a atenção para o seu «romantismo depurado, enriquecido em subtileza e requinte pela experiência simbolista», destacando alguns dos temas da sua obra: o sonho, a infância e o tempo. Em seguida, escreve: «Pelo hábito de contemplar, Natércia vê-se, fora de si ou reflectida no espelho interior, na imagem da Menina suspensa entre o que foi e o que é.»

A leitura de David Mourão-Ferreira é acutilante. Num texto datado de 1964, incluído em Hospital das Letras, o autor afirma que nesta poesia se manifesta uma dupla tentação: «a do movimento, do perpétuo fluir (Meu Caminho de Luz, Rio Infindável) e a da estática fluidez (Horizonte Fechado, Anel de Sete Pedras)». Confrontando-se com o texto, conclui: «Não se espere, portanto, de uma complexa poesia como esta, uma visão confiante ou amarga, da realidade: com efeito, ela é, ao mesmo tempo confiante e amarga».

António Ramos Rosa, que escreveu dois ensaios para a sua Obra Poética, editada pela Imprensa Nacional, dá-se conta de que não há «limites entre o eu e o cosmos», chamando ainda a atenção para o carácter originário da sua poesia. O autor compreende que este processo de fusão e de dissolução se cruza com a morte ou, pelo menos, com o desejo «da fuga permanente aos limites temporais e espaciais, à personalidade limitada».

No século XXI, a obra desta escritora conhece um renovado interesse, através de várias reedições e de alguns estudos de críticos e críticas, entre os quais se distingue Pedro Sena-Lino, que lhe dedica um livro, em 2001, também exposto. Num artigo posterior, publicado em 2005, na Revista Derivas,o autor escreve:

Natércia não está por isso longe de Platão, sua leitura permanente, e por isso o Simbolismo onde se funda a sua poesia, com larga influência de Camilo Pessanha e Paul Verlaine, é o da pertinência e ressoar do símbolo. Nada existe na aparência, tudo é uma porta para alcançar, com um tipo de conhecimento gnósico, a outra realidade que a memória e uma hiper-consciência traz ...

A sua poesia, bem como a ficção, apresenta uma temática que tem a ver com a condição das mulheres, através da análise das suas experiências vividas. À felicidade da infância segue-se a desilusão, o desespero, a morte.

As meninas são todas como eu:
a guardar astros que são bordados,
a recolher os olhos deslumbrados
depois de uma viagem pelo Céu.
( ... )
e deitam-se nas camas encantadas
e olham luar correndo nas campinas
e são felizes porque são meninas
e porque a vida as vai fazer mudadas.
(Horizonte Fechado, 1942)

A partir dos anos sessenta, Natércia Freire começa a integrar o tema da violência e da guerra, centrando em si o sofrimento das mulheres, assumindo a sua voz, numa atitude pacifista:

As mulheres de negro
estão a olhar a forca ...
Eu sou as mulheres
dentro dos poemas
de Garcia Lorca.

Sou um tempo ambíguo
de misérias frouxas,
de fuligens, teias
e de feridas roxas.
(Liberta em Pedra, 1964)

No poema «Guerra», no mesmo livro, o sujeito poético evoca os filhos, gerados no seu ventre, que agora são levados «por grandes barcos», no que parece ser uma alusão à partida dos soldados para a guerra colonial.

A prosadora e a jornalista

Em 1942, Natércia Freire publica um livro de contos intitulado A alma da velha casa. Vale a pena determo-nos sobre a narrativa que deu o título a esta obra, porque documenta a visão da narradora sobre o destino da mulher, subvertendo a imagem idílica do Estado Novo da felicidade da esposa, enquanto «fada do lar». O texto começa com a morte de Ana Lúcia, a senhora Marovinhas, que vivia com o marido, o filho, e Irene, a nora. Esta última, sem filhos, tem como única distracção uma telefonia que lhe fala de um mundo que nunca irá ver. Um dia, em conversa com a cunhada que lhe pergunta se o marido a compreende, Irene responde-lhe: «Que chamas tu compreender? Falar comigo, entrar dentro dos meus pensamentos? Não, o Manuel já não tem que dizer depois de dez anos em que a vida se repete sem nada de especial...» A solidão, a velha casa e um quotidiano sem sobressaltos pesam tanto sobre a vida desta personagem que, pouco a pouco, ela vai perdendo a sua identidade para se transformar numa espécie de réplica de quem a antecedeu. Irene fica, assim, reduzida, a uma função - cuidar da casa e dos seus habitantes-, que anula toda a sua vontade de viver.

Enquanto jornalista cultural, a autora esteve sempre atenta à situação da mulher, como é documentado nesta crítica a um livro feminista, publicada na coluna «Balança»:

Tudo o que o romance de Natália Nunes, Regresso ao Caos, sugere na interpretação da figura de Matilde, dolorosa e rebelde, possuída pelo tormento da arte, construtiva no seu sonho, destruída pela vida, é a própria exemplificação da mulher - fonte de Vida e, como tal, fonte de Morte.

Enquanto directora cultural do suplemento do Diário de Notícias, procurou dar voz a colaboradores «de variadas tendências estéticas e políticas», como afirma em «Uma longa nota. No 15º aniversário de "Artes e Letras"», e é documentado nos artistas que foram convidados para o projecto «Os Lusíadas que fomos. Os Lusíadas que somos», celebração e desconstrução do centenário da publicação da obra.

Natércia Freire reivindicou o carácter feminino da sua arte no prefácio a Infância de que nasci, um livro publicado em 1955, que conheceu uma nova edição em 2005, com um prefácio de Andreia Brites. A obra reúne três textos publicados na revista Panorama, ilustrados por Ofélia Marques, a que se juntaram outros. Na introdução ao seu livro, a autora afirma que a ilustradora, porque é mulher e artista, consegue comunicar com o Oculto, vendo o que outros não vêem. Por isso, percebeu melhor do que ninguém a essência dos seus textos, tendo a capacidade «de ver o que [ela] já tinha visto e de reproduzir em pormenor e em poesia recordada, com integral perfeição o que [ela] contara.»

Atrás da aparência, esconde-se sempre um Além, que a pintora pressentiu:

Um dia, soube que Ofélia tinha morrido ( ... ) O que dela, para mim existia, continuava intacto. A fluída comunicação que nos ligara persistia: ali estavam, a atestá-la, tão vivos e precisos, os desenhos das paisagens e das coisas da minha recordação ( ... ) Separadas pelo rio da Morte, a minha atitude de admiração e de ternura é hoje acompanhada de uma verdadeira devoção. Perfilhando as palavras de Maeterlinck, não quis senão reforçar a ideia da sua comunicação com o Infinito que nos rodeia. Por mim, peço desculpa de ser mulher.

Natércia Freire sabe que se movimenta num mundo de homens, como é visível numa das fotografias expostas, e sabendo-o, pede perdão por ser mulher, inscrevendo a sua voz, com aparente modéstia, sábia determinação e a força da sua ousadia.

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo