Cultura | 25-12-2020 15:50

As perguntas “parvas” de Manuel da Fonseca a Amália Rodrigues

As perguntas “parvas” de Manuel da Fonseca a Amália Rodrigues

Amália Rodrigues deu centenas de entrevistas ao longo da sua vida mas há uma especial, realizada durante três sessões, no Brejão e em Lisboa, em 1973, que resulta do encontro com o escritor Manuel da Fonseca. Quase meio século depois, no ano do centenário do nascimento da fadista, Pedro Castanheira fez a transcrição integral das conversas. O livro “Amália nas suas palavras” é imperdível para quem tem paixão por Amália mas também por Manuel da Fonseca. A conversa, onde a fadista assume que não a entendem porque “é feliz sem nenhuma razão especial”, também proporciona ao autor de “Seara de Vento” muitas opiniões e considerações que acrescentam interesse à leitura.

O músico Pedro Castanheira deitou mãos a uma gravação de nove horas e quarenta e cinco minutos que regista uma conversa entre Manuel da Fonseca e Amália Rodrigues, realizada em 1973 durante uma semana. Amália Rodrigues e Manuel da Fonseca tiveram a companhia da mulher do primeiro, de Belchior Viegas, empresário de Amália, e de Estrela Cavas, entre outras. A entrevista tinha como intuito a edição de uma primeira biografia da fadista que, na altura, já tinha 53 anos e uma carreira consolidada nacional e internacionalmente.

O livro, a que os editores deram o título de “Amália nas suas palavras”, retrata bem o objectivo do projecto da editora Arcádia, para quem Manuel da Fonseca estava a trabalhar. Para quem tem admiração pela figura e pela Obra de Manuel da Fonseca talvez não exista melhor oportunidade que a leitura deste livro para ficarmos a conhecer o autor de Cerromaior.

A transcrição do texto da autoria de Pedro Castanheira é um achado para quem gosta de estudar a psicologia dos artistas, ou espreitar as suas fraquezas e misérias, quando não as suas qualidades e virtudes. Neste caso “Amália nas suas palavras” é literalmente uma oportunidade única para ficarmos a conhecer o falhanço de um projecto literário, a importância que Manuel da Fonseca dava às suas opiniões, e o desprezo de Amália Rodrigues pelas vaidadezinhas daqueles que gostam de estar sempre a impor os seus gostos e opiniões junto do público.

Amália Rodrigues, já nesta altura da sua vida, fazia da arte de cantar o fado “um caminho pessoal e intransmissível, um diálogo privado entre ela e o género (:), uma procura interior rigorosa e sofrida que não partilha senão com os seus músicos, os seus poetas e os seus públicos”. A citação, que retrata na perfeição o espírito de Amália ao longo da conversa com o autor de “Seara de Vento”, é de Rui Vieira Nery, que assina um excelente prefácio ao livro, onde analisa aquilo que espelha, em boa parte, o grande falhanço de Manuel da Fonseca na tentativa de biografar Amália Rodrigues.

Ao longo de quase todo o livro são muitos os momentos em que a fadista se refugia na sua alegada condição de “ignorante” e “iletrada” , para omitir opinião sobre questões que a incomodam e que não lhe interessa trazer a público. Segundo Amália, depois de muitas perguntas para que defina o que é o povo e que “classes” da sociedade é que aderiam mais e melhor ao seu trabalho, “é muito complicado estar a responder a estas coisas”. Como salienta Rui Vieira Nery, no prefácio, Manuel da Fonseca passa quase toda a entrevista a sugerir a Amália Rodrigues nas próprias perguntas as respostas que gostaria de ouvir.

Não é exagero afirmar que as 400 páginas do livro retratam mais o perfil de Manuel da Fonseca do que o de Amália Rodrigues, pelas constantes, insistentes e extensas opiniões do autor de “Seara de Vento”, tentando, sem êxito, abrir o coração de Amália Rodrigues, que lhe responde na grande maioria dos casos de forma evasiva e, às vezes, até monossilábica, visivelmente pouco interessada na conversa do seu biografo. Mesmo assim o livro é um documento histórico e de grande interesse biográfico, onde Amália, mesmo fugindo às perguntas, se encontra em si, no que disse mas também no que se adivinha nas questões a que não respondeu, revelando-se nas palavras mas também nos silêncios que não soube disfarçar”, como também refere com mestria Pedro Castanheira num outro texto de apresentação do livro, e do seu trabalho de transcrição da entrevista. Recorde-se que o trabalho de Pedro Castanheira foi feito em cima de uma gravação com quase meio século, cheia de problemas técnicos que dificultaram o trabalho de transcrição.

Quem tem interesse e paixão pela vida e pela Obra de Amália Rodrigues tem de ler este livro. Não há outro documento escrito onde a fadista se apresente tão real, e ainda tão presente, quando a ouvimos cantar na rua, no carro, na televisão ou no sossego da nossa casa, onde a sua voz nos devolve uma mulher e uma artista que se considerava “um livro aberto”, admitindo que “não tenho barreiras, não tenho cá por dentro as coisas que não digo”(Pág 90). Uma mulher sem vaidades que se considerava uma pessoa como todas as outras: “só sei falar de mim, não sei falar dos outros (:) nunca pensei em mim como uma figura nacional” (Pág 237). “Choro tanta vez”, diz Amália entre dois fogos cruzados que eram as perguntas de Manuel da Fonseca e os comentários do seu empresário Belchior Viegas. “Vocês não me entendem (:) Não me entendem porque, quando sou feliz, sou feliz sem nenhuma razão especial”; (Págs 285 /296).

Das muitas páginas do livro, que espelham a personalidade de Amália Rodrigues, destaco a citação da página 279 em que a fadista assume que prefere levar um tiro que a mate, e que acabe com tudo, que viver toda a vida com o peso daquele momento em que um artista, em cima do palco, se põe a jeito de levar com um tomate na cabeça. Para o autor deste texto a parte mais caricata da entrevista é a que se relaciona com a conversa sobre o amor e as relações amorosas. É neste capítulo que Manuel da Fonseca falha mais na sua condição de biógrafo, e mostra a sua falta de preparação para este trabalho. Amália Rodrigues fala sem falar do facto de nunca ter sido mãe, e da sua atracção pelos homens não depender de questões físicas ou sexuais, mas de uma certa sensibilidade, não chegando a dizer o que mais a atraía no sexo oposto. A pergunta de Manuel da Fonseca sobre este tema começa da pior forma. “Tinha aqui uma coisa para lhe perguntar: o que entende que seja o amor? É uma pergunta parva mas….”. Foi com esta pergunta “parva” que Manuel da Fonseca conseguiu de Amália uma das respostas mais evasivas de toda a conversa.

O significado da palavra saudade e a contribuição de Amália para mudar o rumo do fado, que vivia muito das letras sobre touros e touradas (Pág 171); a assumpção de que a sua vida não tem história e que as coisas sempre lhe aconteceram pelo lado fácil (Pág 127); a confissão da fadista de que todos os dias se sente desamparada, infeliz, e de isso ser um drama permanente (Pág 115); a recordação do tempo em que tinha 12 anos e já era "desenhada", o que lhe causava problemas com os rapazes quando saia da escola (Pág 65), e, ainda sobre a infância, os tempos em que ganhava dois escudos por dia a aprender a bordar, embora o seu trabalho fosse passar a ferro desde as nove da manhã até às seis da tarde (Pág 59), são momentos da entrevista que justificam a leitura do livro e do trabalho de Manuel da Fonseca, apesar de tudo sério e sincero, demonstrando uma empatia pessoal, e uma admiração pela fadista e pela sua arte de cantar o fado, que Amália sabia retribuir com o seu charme e capacidade de sedução.

Pedro Castanheira com uma das suas filhas gémeas no espaço do Ecoturismo no Alentejo

Pedro Castanheira tem uma licenciatura em Sociologia no ISCTE tendo estudado durante um ano na Faculdade de Ciências Políticas de Bolonha (Itália) e três meses em Cabo Verde onde completou a sua tese que abordava a relação entre a música local/nacional e a globalização. A nível musical teve passagens pela Juventude Musical Portuguesa e pelo Hot-Club de Portugal, tendo também estudado com a pianista Teresa Santos, e o compositor e guitarrista Rui Pedro Dudas.

Depois de se dedicar profissionalmente à música destacou-se enquanto compositor e multi-instrumentista com uma experiência alargada em diferentes formas de abordar a música. Compôs e tocou em vários grupos, quase sempre abordando composições e arranjos de sua autoria, como, por exemplo, o projecto a solo “Sr. Castanho”, o trio “Almagreira”, o quarteto “Folha” (tocou na abertura do British Forum for Ethnomusicology em 2010), o septeto “Yemanjazz”, cujo disco foi alvo de críticas muito positivas por parte da imprensa, entre outros. Já colaborou com diversos artistas de diferentes áreas como a pintura, poesia, dança (destaque para a colaboração com a companhia de dança mexicana Lux Boreal na abertura da Expo Saragoça 2008), burlesco, novo circo, teatro e até culinária. Desenvolveu também uma intensa actividade na criação de bandas sonoras para documentários.

Actualmente dedica-se à gestão de uma unidade de Eco Turismo no Alentejo com a sua companheira Caroline Oulman Carp.

Amália nas suas palavras
Transcrição e notas de Pedro Castanheira
Prefácio de Rui Vieira Nery
Edição conjunta Porto Editora/Edições Nelson de Matos
Setembro de 2020

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