Um pintor riachense “temporariamente imortal” chamado José Alberto Gomes Pereira
Nascido e criado em Riachos, José Alberto Gomes Pereira admite que a sua obra é uma confluência artística na qual a influência africana é indelével, fruto dos 20 anos passados em Moçambique. Regressado à terra-natal, onde recebe O MIRANTE para uma entrevista na casa que transborda de arte por todos os recantos, diz que a lezíria o ajuda a matar saudades das paisagens africanas. Pintor de horizontes amplos, aos 79 anos garante ainda não perder tempo a pensar na morte, vivendo a arte com tanta ou mais intensidade do que na juventude.
Nasceu em Riachos em 1943. Que retrato pinta desses tempos de infância? Tive uma infância fantástica. Tenho duas irmãs, sou o filho do meio. O meu avô, José Pereira Cingeleiro, tinha uma casa agrícola e era muito amigo do José Martins Castello Lopes. Um dia, o Castello Lopes convida o meu avô para ser sócio dele numa distribuidora e produtora de filmes. O meu avô ficou muito espantado e recusou a proposta, dizendo: “Sou agricultor. Filmes? Isso são fitas!” Essa frase marcou-me e até chegou a inspirar um quadro.
Aos 11 anos vai com os seus pais para Moçambique, onde se forma. África moldou-o? É evidente. Com 16 anos comecei a perceber que já desenhava com intenção de transmitir uma mensagem e isso tem a ver também com a vivência em África. As formas das figuras humanas que retrato e as cores que privilegio são muito africanas. Há na minha obra uma importante influência africana, não especificamente deste ou daquele artista, embora tenha privado com muitos artistas africanos, como Malangatana, Alberto Chissano ou Blimundo Alves.
Falava da mensagem artística. O início do seu percurso tem uma mensagem política forte. Tem indirectamente, porque não podia fazê-lo explicitamente. Quando estava na tropa, pintei um quadro que dizia: “Lutamos pela paz”. Mas toda a gente sentiu que naquele quadro não era eu quem dizia lutamos pela paz, mas aqueles que lá estavam representados.
Como é que a arte e a luta antifascista pincelavam as tertúlias nas noites da antiga Lourenço Marques? Nessa altura, pintei um quadro intitulado Mercado Comum do Sexo, que reproduzia todo aquele ambiente de bares, cabarés e discotecas que existiam na Baixa de Lourenço Marques. Toda a malta da noite aparecia por ali. Bebíamos cerveja, trocávamos impressões, falávamos sobre quem tinha sido preso.
É esse traço insurgente que o torna persona non grata do apartheid na África do Sul? Criei essa situação sem querer, mas querendo. Quando conheci a Sandra, sul-africana de ascendência chinesa com quem casei em Moçambique, arranjei um problema com a África do Sul. De acordo com a lei sul-africana da altura, não podíamos casar, porque ela era considerada uma pessoa de cor e eu branco. Mais tarde, fui aceite para uma posição numa escola de arte em Joanesburgo e quando fui tratar da documentação
na embaixada sul-africana, puseram-me o carimbo no passaporte de persona non grata. Acabei por perder essa oportunidade.
Tem 31 anos quando se dá o 25 de Abril. São tempos que permanecem vivos na sua memória? Dá-se o 25 de Abril e regresso a Portugal poucos meses depois, porque já previa que aqueles primeiros anos nas ex-colónias iam ser a ferro e fogo.
Era também uma época de muita efervescência artística. Produziu muito nessa altura? Produzi. Tanto que, em 1976, organizei a primeira exposição de arte que alguma vez se tinha feito em Riachos, na Casa do Povo. Fi-lo juntamente com o MASOFI, o pintor Manuel Sousa Filipe também natural de Riachos. Durante 15 dias, a exposição esteve aberta de manhã à noite, passou a ser o centro de Riachos, toda a gente se encontrava lá. Foi uma loucura, fizemos obras para as pessoas poderem adquirir e vendêmo-las ao desbarato. Riachos uniu-se em torno da exposição, toda a gente colaborou, porque era uma coisa da terra.
Voltou a expor mais vezes na sua terra? É um gosto especial expor aqui? É. Organizei também a primeira exposição da secção de arte do Museu Agrícola de Riachos, uma mostra intitulada “O Zero e o Infinito”.
“Não me dá jeito morrer agora, tenho tanta coisa para fazer”
A exposição “Um olhar sobre Fernando Pessoa”, em 2008, que comemorou os 120 anos do nascimento do poeta português, é outro marco no seu percurso artístico. Além da efeméride, o que é que o levou a querer debruçar-se sobre a obra e a figura de Fernando Pessoa? Fernando Pessoa é uma paixão antiga, talvez a maior de todas. Para fazer esta exposição e outros trabalhos que não chegaram a entrar na exposição, li mais de seis mil páginas sobre Fernando Pessoa, escritas por ele e sobre ele. Estava, e estou, enfronhado na obra de Fernando Pessoa. Quando pintei o Opiário, que é a obra mais emblemática dessa exposição, inspirada no poema homónimo de Álvaro de Campos, era como se estivesse a reproduzir o poema. O poeta escreveu, eu desenhei.
Como se fosse uma mescla de expressões artísticas: pintura, literatura, representação? O meu trabalho é uma continuidade, as fronteiras entre expressões artísticas esbatem-se. Sei sempre onde as obras começam, mas porque é que levo os meus desenhos até ao limite da tela? Porque aquilo que eu quero dizer, não cabe na tela. É um trabalho consecutivo, de constante criatividade. Não defino à partida por onde vou, o desenho é que me leva.
Surpreende-se com as suas obras? Às vezes. Dou por mim a pensar: ficou melhor do que julgava.
É verdade que pedir a um artista para escolher entre as suas obras é como pedir a um pai que escolha o filho predilecto? Julgo que se perguntassem ao Picasso qual era a obra mais importante dele, responderia Guernica. De momento, tenho duas obras importantes. O quadro Temporariamente Imortais, que pintei recentemente e o Opiário.
A um ano de completar 80 anos, como é que se vão compondo os seus dias? Ainda estou no grupo dos temporariamente imortais. Até aos 75 anos fui imortal, embora nunca acreditasse que passava dos 50. A partir dos 75 tornei-me temporariamente imortal. Só não sei por quanto tempo.
Mas também não o preocupa? Nada. O tempo para mim é sempre uma coisa lá ao longe. E é como dizia um amigo meu: não me dá jeito morrer agora, tenho tanta coisa para fazer.
Com quantas linhas de desenha um artista?
Amante confesso da obra de Fernando Pessoa, José Alberto Gomes Pereira já perdeu a conta às vezes que se cruzou com o Poema em Linha Recta do heterónimo Álvaro de Campos. Mas o percurso artístico do pintor riachense tem vindo a trilhar-se, pelo contrário, em contracurvas. No menino que desenhava com facilidade “mas não perdia muito tempo com isso”, o gosto pela arte ia-se esboçando nos intervalos de “jogar à bola, fazer corridas, procurar onde as galinhas punham os ovos e tourear carneiros”.
Para José Alberto Gomes Pereira, nunca ter frequentado uma escola de artes, nem como aprendiz, nem como mestre, não é defeito, é feitio vincado: “Não aprendi as técnicas que podia ter aprendido, do mesmo modo que não trouxe os vícios que de lá se trazem”, afirma. Frisando que a sua melhor forma de expressão é a preto e branco, recusa, porém, ser um artista cinzento: “Olho para os meus trabalhos a preto e branco e as cores estão lá todas”.
No olhar pronto a apontar para os grandes contrastes da humanidade, a maioria das suas obras grita ainda a mensagem de quem nunca foi activista político, mas sempre se preocupou politicamente. É o que mostra um dos seus quadros mais célebres, Balada de Breu, pintado em tributo à Grândola Vila Morena de Zeca Afonso. Afinal, se a pintura, como a cantiga, também pode ser uma arma, José Alberto Gomes Pereira prefere têm-na sempre afinada: “Na pintura, como na publicidade, área em que trabalhei muitos anos, aprendi a não criar desperdício. Criar algo que não presta e não tem interesse para ninguém, não vale a pena”.