Clotilde Raposo: a pintora autodidacta que aos 94 anos guarda em Vila Moreira a obra da sua vida
Começou a pintar sem saber uma única técnica de pintura e a agitar pensamentos através daqueles que escreveu e editou em livro aos 93 anos. Numa manhã, Clotilde Raposo irrompeu da sua solidão para abrir a O MIRANTE as portas de sua casa e da galeria de arte que todos podem visitar.
Chega-se à porta daquela casa, na pacata aldeia de Vila Moreira, no concelho de Alcanena, e um painel em azulejo pintado anuncia a arte que vai no seu interior. Nas paredes e nos móveis repletos de quadros pintados a óleo e aguarela. Nas gavetas e nos recantos dos sofás em pedaços de papel engrunhados pelo tempo, onde Clotilde Raposo verteu a tinta de esferográfica os seus pensamentos. Aqueles que a acordam de madrugada e os que lhe assaltam a mente nas horas de maior solidão passadas na poltrona da sala, onde se senta, aos 94 anos, para nos contar como é que se fez escritora e pintora autodidacta, com poucos anos de escola e sem nunca ter aprendido uma única técnica de pintura.
De cabelo grisalho e braços de pele fina por culpa da idade, conta, com as mãos postas no regaço, que tudo o que aprendeu nesta vida foi sozinha, não poucas vezes para se afastar dos desgostos e sofrimento que marcaram boa parte dela. À excepção da infância que foi calma e feliz. “Numa noite em que estava triste, sentada aqui como estou agora, peguei numa cartolina e fiz o retrato da minha filha que pintei a aguarela. Foi o meu primeiro, depois nunca mais parei”, conta, recordando as exposições de arte, as bienais, em que participou e às quais já perdeu a conta. Leiria, Cartaxo, Batalha, Fátima, Torres Novas e, claro, Alcanena foram alguns dos locais por onde passou a sua arte em exposição.
Nem a escrita nem a pintura foram encaradas por Clotilde Raposo como uma salvação. Mas foram a luz em alguns dias escuros, de tristeza e solidão. Como aqueles que vieram com a morte do filho, Alberto Filipe Raposo Santos, o ex-vereador na Câmara de Alcanena que, em 2004, aos 53 anos, perdeu a vida num acidente rodoviário. “Foi horroroso e nunca mais é esquecido enquanto for viva. Tenho-me reduzido a nada, num sofrimento atroz que há-de durar até à hora da minha morte”, diz, recordando o dia em que a polícia lhe telefonou para a informar da trágica notícia. Era o terceiro filho que perdia, depois de outros dois, ainda bebés.
Uma galeria à espera dos visitantes
Na galeria de arte baptizada com o seu nome, e que é, desde 2021, gerida pela Câmara de Alcanena por intermédio de um contrato de comodato, estão alguns dos muitos quadros que pintou. A Casa na Praia, o Casal de Namorados, a Dama Azul e Tempestade no Mar dão nome a alguns deles. Outros foram vendidos a amigos e conhecidos, a apreciadores da sua arte, mas acima de tudo, da forma como sem nada saber aprendeu a transmitir sentimentos e emoções através das suas telas pintadas. Neste espaço, onde um desumidificador luta para que a humidade não se apodere dos quadros iluminados por pequenos focos de luz, mora também o sentimento de solidão de Clotilde Raposo. “Gostava que viesse cá mais gente, recebia-os com todo o gosto. Estes quadros, assim, morrem calados aqui. E um dia morro eu e não vou levar nada atrás de mim”, diz em tom de aviso.
Em pequena, Clotilde Raposo chegou a vencer um concurso inter-escolas no distrito de Santarém com um desenho de uma garrafa com certos apontamentos que o tempo já levou da sua memória. “Tinha uns oito ou 10 anos, mas depois de ganhar esqueci aquilo”. Quando os seus dois irmãos foram para a faculdade a menina da casa ficou a ajudar o pai a tomar nota, por escrito, da produção de curtumes da fábrica. A mãe insistia para que aprendesse a bordar, mas impedia-a de chegar perto de um fogão da cozinha ou de um esfregão do chão, tarefas que estavam guardadas para as muitas “empregadas” que passaram por aquela casa.
“Casei aos 21 anos e não sabia fazer nadinha, nem um arroz era capaz de fazer. Ao princípio foi uma desgraça” e, por isso, também nas tarefas domésticas que acabou a saber desempenhar foi uma autodidacta. Com o casamento veio a loja de comércio onde “vendia para todo o lado, um bocadinho de tudo”, desde roupas, a móveis, alimentação, material de construção, urnas e vinhos. À época “não havia nada igual”, atira com passageiro entusiasmo.
“A solidão é o que custa mais”
Clotilde Raposo fala n’O Sentido da Vida, o seu livro editado aos 93 anos, da visão que tem acerca de tudo o que a rodeia, das relações humanas, dos sentimentos e traços de carácter, à sua forma de encarar “a vida que é um compasso de espera”. A morte, da qual diz não ter medo, é no fundo “para aquilo que se vive”. Mas não a assusta ou atormenta. “Todos os dias, quando me deito, penso que não me levanto mais. O sofrer - pelo qual passou no casamento mas que opta por não falar, à dor de perder três filhos - foi de tal ordem que não albergo no coração o medo da morte”, diz, vincando que pertence ao grupo dos ateus, aqueles que não crêem em Deus. Mas enquanto fala e lê alguns excertos do livro, sem atropelos na voz ou no pensamento, as reflexões e o vocabulário usado são quase como um milagre para o qual até hoje não encontrou explicação. “Devorei muitos livros; mas simplesmente escrevo quando tenho um pensamento. E vem tudo em catadupa, tenho que escrever logo para não me esquecer”, explica enquanto abre uma gaveta onde encontra uma dessas folhas escritas.
Nos dias que passa entre o assento da poltrona e o jardim recatado entre as paredes da casa “a solidão é o que custa mais”. Confessa que gostava de “ter alguém para estar, em quem pudesse confiar”, mas não se acomoda muito a essa ideia, muito menos à de ir para um lar de idosos. “Assim estou na solidão, sem ninguém para estar, mas estou aqui onde gosto de estar”. Na casa onde os pincéis agora descansam à espera de serem desassossegados por um pensamento ou a vontade que por estes dias lhe tem faltado.