David Monge: “Bom Sucesso tem uma multiculturalidade que me apaixona”
A vida de David Monge dava um filme e não há papel suficiente para contar todo o seu percurso de vida. Foi dinamizador de actividades do movimento associativo, é músico e um bairrista doente que não se vê a sair do Bom Sucesso, em Alverca do Ribatejo. É responsável técnico e de programação do Centro Cultural do Bom Sucesso e diz que o palco despe os artistas de todas as máscaras deixando-os nus. O fim do voluntariado, teme, vai condenar as associações à extinção.
Nascido a 11 de Dezembro de 1972 em Vila Franca de Xira David Monge esteve desde a infância ligado ao Centro Social e Cultural do Bom Sucesso. Dinamizou o primeiro campeonato de skate do Bom Sucesso, esteve ligado ao Juvecentro, a secção de jovens do centro social onde foi DJ, dinamizou as Alverquíadas de desporto, encontros de banda desenhada, música experimental e teatro infantil, tendo sido o fundador da Associação de Jovens POPA.
Foi membro e tocador de viola, cavaquinho e bandolim no rancho folclórico do centro social e esteve envolvido em várias bandas, incluindo os Tequilla Pura, Hot Pussy, DAFE e Karpe Diem, onde é guitarrista desde 2007. Apaixonado por fotografia, é também road manager dos UHF há oito anos. A junta de freguesia elogiou os seus múltiplos talentos, competências e sensibilidades artísticas, juntamente com o empenho em servir a comunidade, como argumentos para justificar ter-lhe entregue este Verão o galardão de mérito cultural da cidade.
Tem saudades do Bom Sucesso da sua infância?
Tive uma infância de rua quando o bairro quase não tinha prédios. Onde hoje existe o centro cultural era uma encosta com hortas. Foi essa vida de rua que me levou ao coro infantil do Centro Social e Cultural do Bom Sucesso, associação onde estou até hoje. Sempre fui mais Deep Purple do que Carlos do Carmo. Não diria que era rebelde mas não gostava de ser igual aos outros. Nunca gostei dos movimentos de carneiros nem fui capaz de estar quieto. Sempre quis fazer algo pelo próximo sem ganhar nada, ajudar o meu bairro e a minha terra. O Bom Sucesso tem uma multiculturalidade que me apaixona. De um lado os minhotos e nortenhos; do outro os alentejanos.
Há maior sentimento de comunidade no Bom Sucesso do que no resto de Alverca?
Sem dúvida, porque Alverca já começou a receber muita gente de fora. Aqui no bairro todos temos as nossas raízes e nos conhecemos. Infelizmente a pandemia veio mudar algumas coisas. As pessoas ficaram mais egoístas e desapegadas do contacto humano. Os cafés que dantes estavam sempre abertos à noite agora fecham à hora de jantar.
Já não é o bairro perigoso que foi há uns anos?
Esse foi um preconceito perigoso e enganador. É como em todo o lado. Há sempre gente que seguiu caminhos perigosos, da droga ou prostituição. Hoje em dia não vejo isso mas nos anos 80, com o período pós-hippie e a descoberta das drogas, foi pior. Tive amigos que se perderam nesse caminho e alguns até já morreram. Quando apareceu a heroína morreram 17 jovens que eu conhecia aqui.
Quão difícil é promover eventos culturais aqui no centro?
Muitos dos nossos espectadores são de fora do bairro. A cultura não pode ser sazonal. Tem de ser apresentada todo o ano. Infelizmente o trabalhar por carolice está a desaparecer e as colectividades vão ter grandes dificuldades para manter corpos sociais porque as gerações actuais não querem trabalhar voluntariamente. Ou alguém arranja uma fórmula para motivar as pessoas a quererem voltar a trabalhar em prol da comunidade ou então não sei. A tecnologia infelizmente meteu os miúdos em casa e eles hoje não saem à rua, não têm um ponto de encontro. As associações têm os dias contados se nada for feito. Temos de tentar salvar a cultura de bairro.
E quando alguma coisa se faz há sempre quem se queixe…
Tira-me do sério gente que nunca fez nada pelo bairro e está sempre a queixar-se. Se fazemos é porque fazemos, se não fazemos é porque não fazemos. Dá-me calafrios ver gente a queixar-se do ruído nas festas de Alverca. Essas pessoas ou moram há pouco tempo em Alverca ou são de Marte. Ainda sou do tempo das festas de São Pedro e da cidade serem feitas ao mesmo tempo no largo da igreja, no jardim do bairro e na casa de São Pedro, no exterior do lar de idosos. São cinco ou sete dias e as pessoas reclamam do ruído. É uma vez no ano. Por favor saiam de casa, vão viver a festa, conviver, se não gostam do cartaz comam uma fartura e divirtam-se. Não fiquem a reclamar nas redes sociais.
Esperava receber o galardão de mérito cultural da cidade?
Nada mesmo. Comecei a tremer quando o presidente da junta me deu a novidade. Caiu-me tudo ao chão porque não faço o que faço para ter reconhecimento. Nunca pensei ganhar isto ou aquilo. Sou uma pessoa pacata e recatada que acredita que um país sem cultura é um país pobre e sem identidade.
Isso contrasta com o seu papel em palco enquanto músico de guitarra e baixo dos Karpe Diem…
Não gostava de ser um músico famoso. Gosto de estar recatado e a fama não me fascina, mas gosto de fazer música, estar em cima do palco e abrir a minha alma. O palco despe-nos de máscaras e deixa-nos nus. Quem vai para o palco e não sente o que está a fazer não deve ir. Já tocámos para 20 pessoas e para mil. A sensação de subir a palco, sentir as mãos e as pernas a tremer e deixar lá tudo, para o bem ou para o mal, é única. Às vezes vemos músicos a subir a palco e a fazer um frete, não pode ser. Cada concerto tem de ser o concerto das nossas vidas.
Os Karpe Diem são um nome já conhecido da praça mas nunca alcançaram um estatuto maior…
A banda existe desde os anos 90 e estamos a terminar o terceiro álbum. Nunca quisemos ir para a primeira divisão, digamos assim. Queremos ser os melhores que soubermos ser na segunda divisão (risos). Sermos genuínos a nós próprios. Só tocamos originais. Compor uma canção tem um lado saudável. Infelizmente, hoje em dia a música é toda de plástico e as rádios já não passam canções que tenham guitarras. Há uma ou outra que passa mas a maioria muito pouco. As rádios querem matar o rock. Agora em casa é facílimo fazer uma música. Qualquer um mete um beat a tocar e faz música com o autotune a afinar a voz para ficar tudo bonito. Construir uma canção de raiz, com duas guitarras, solos, bateria, ter acordes dentro do tom e bem trabalhados, ter a essência de uma canção com letras com conteúdo, isso sim, é difícil. Não posso considerar música o que actualmente passa nas rádios.
A música é o seu melhor anti-depressivo?
Sim. Costumamos dizer depois de um ensaio que foi a melhor consulta ao psicólogo (risos). Quando me pedem borlas pergunto às pessoas se não têm água e luz para pagar como eu. Muita gente não tem noção que a música é uma arte que custa dinheiro.
Ser road manager dos UHF é um trabalho que o apaixona? O que faz ao certo?
Há oito anos que sou o responsável por programar o aluguer das carrinhas, ver a distância entre os locais, fazer a ponte com os agentes, técnicos de som e luz, locais, refeições, marcação dos voos, marcação dos horários de ensaio e saída da banda, hotéis, marcar almoços e jantares, fazer a programação. É um trabalho muito desafiante e energético que me permite conhecer o país de norte a sul. O road manager é o único com capacidade de chegar a um local e ter autoridade para ver se determinado espaço não tem condições para receber o concerto.
Como sonha ver o futuro do centro cultural?
O futuro do centro cultural está a ser trabalhado hoje em dia oferecendo espectáculos para todos os gostos, dos ranchos aos concertos e comédias de stand-up. Queremos incutir na comunidade o gosto para vir assistir a espectáculos. Dia 21 de Outubro vamos ter o BS Music Fest, a quinta edição do nosso festival de bandas, onde vamos receber várias bandas. A entrada é livre e os concertos começam pelas 20h00 e cada banda tocará 45 minutos.