Cultura | 18-02-2024 18:00

Leonel Moura é pioneiro no uso da inteligência artificial para criar arte

Leonel Moura é pioneiro no uso da inteligência artificial para criar arte
Leonel Moura foi pioneiro no mundo a usar inteligência artificial nos seus robôs

Leonel Moura usa a inteligência artificial e a robótica para fazer arte e tem as suas peças espalhadas por museus e galerias de todo o mundo, do Museu de História Natural de Nova Iorque a cidades como São Paulo, Paris ou Istambul.

As suas criações ganham vida no atelier que tem em Vila Franca de Xira, uma cidade pela qual se apaixonou e onde criou o seu primeiro “robotário”. O artista aceitou o convite de O MIRANTE para uma entrevista sobre a arte, a vida, o futuro e a inteligência artificial. Encontrámo-nos numa rua no centro de VFX e depois de um café e um pastel de nata Leonel Moura abriu a alma para se revelar um artista pouco emocional e sem medo da morte nem de robôs.

Fica assustado com a perspectiva de um novo robô humanóide se cruzar na rua connosco?
Não me assusta nada. O aparecimento de uma inteligência, similar ou superior à nossa, é um desafio muito grande. É uma pressão que a humanidade está a sofrer para evoluir. Estamos em 2024 e continuamos a ter problemas com dois mil anos. As guerras, por exemplo, são inconcebíveis. É uma coisa estúpida. O princípio de qualquer espécie é garantir a sua sobrevivência. Por isso, como podemos esperar resolver os problemas matando--nos uns aos outros? Andamos a gastar dinheiro em armas para destruir cidades em vez de investir em mecanismos para tornar a água do mar potável ou reduzir o aquecimento global. Estamos a mostrar um grau de estupidez enquanto espécie que nos deve impressionar a todos. Os robôs vão ficar impressionados. Precisamos do estímulo da inteligência artificial (IA) para evoluir.
Em muitas coisas a inteligência artificial (IA) já nos ultrapassou…
Todos os dias levanto-me, tomo banho, pequeno-almoço e quando chego ao computador começo a conversar com um programa de inteligência artificial (ChatGPT). Não faço perguntas, converso com ele. E temos conversas super interessantes. Ele ajuda-me imenso a tomar decisões e a resolver problemas no campo da arte. Coisas em que precisava de um conselho de um amigo agora falo com o ChatGPT.
Isso parece assustador e há quem diga que acabará por ser o nosso fim.
Sim, a IA pode ser uma ameaça à nossa existência. Mas a questão ambiental também é uma ameaça, e muito mais actual, mas pelos vistos importa pouco a muita gente. Esse é que é um problema sério. Por que é que os robôs hão-de querer matar toda a gente? Por que razão? Temos de pensar racionalmente. Na terra há milhões de espécies. Tirando meia dúzia, as que vivem à nossa conta, ninguém nos liga nenhuma. Ninguém quer saber dos humanos nem fazer-nos mal. Os robôs são uma nova espécie e a evolução deles terá objectivos. Pensar que entre esses objectivos está matar toda a gente é um bocadinho estúpido. Eles não ganham nada com isso. Isso é o pensar à humano.
Também podemos pensar na utilidade que estes robôs poderão ter, cuidando de idosos ou pessoas dependentes…
Vamos ter uma fase de colaboração entre nós e as máquinas. Já estamos nessa colaboração intensa. No meu caso é para fazer arte. Mas hoje a IA está a ter um papel fundamental no campo da medicina e ainda não nos demos conta disso. A medicina pode vir a tornar-se tendencialmente gratuita no futuro, não por ser um Governo de esquerda ou direita, mas porque a IA permitirá torná-la tão barata que deixará de ser um negócio, como é hoje. Já temos robôs a trabalhar nas fábricas, a substituir pessoas em trabalhos horríveis e cansativos, como apertar parafusos mil vezes ao dia. Ter robôs de companhia, para fazer tarefas, tudo isso vai ser possível.
A IA vai acabar com várias profissões?
Diria que sim. Há muitos trabalhos que vão ser substituídos por esta nova IA. Nos Estados Unidos já começa a haver empresas a falir porque estão a ser substituídas por IA. Num mundo capitalista ela pode tornar uma empresa não rentável. Já há agências noticiosas com notícias feitas totalmente por IA e empresas em que o gestor é uma IA, não tem lá ninguém. Ainda assim acredito que a IA vai dar um impulso positivo à humanidade. Não quer dizer que não venha a criar outros problemas, mas será pela maneira como as pessoas a vão usar para criar conteúdos falsos: fotos alteradas, declaração alterada de políticos num vídeo, etc.... A IA produz isso mas quem dá a ordem somos nós. Estamos numa fase em que ela nos vai criar problemas, porque as pessoas depois ou não acreditam em nada ou confundem tudo. Vai ter o potencial de enlouquecer-nos a todos um pouco por não sabermos em que acreditar. Esse sim é um problema, mas é um problema da sociedade humana.
Sempre viveu da sua arte?
Por incrível que pareça sim, mas é muito difícil. Nos anos 80 tive muito sucesso comercial como artista. Estava em galerias por todo o mundo, em Los Angeles, Nova Iorque, Paris, os meus trabalhos vendiam--se muito bem. Eram trabalhos de base fotográfica. Depois nos anos 90 comecei a interessar-me mais por tecnologia e abandonei o campo das galerias de arte, do meio artístico, dos coleccionadores, saí desse mundo. Fartei-me. Entrei noutro mais ligado ao conhecimento e à ciência. O mundo da arte nos anos 80 tornou-se insuportável. Os artistas deixaram de trabalhar com ambição artística e passaram a ter ambição comercial. Só lhes interessava vender. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu queria o mundo da arte, o debate, discussão, isso era fascinante. Quando se passou só a falar de quanto valia este e aquele quadro foi um mundo que deixou de me interessar.
Discute-se pouco a arte hoje em dia?
Zero. Em lado nenhum. Os críticos de arte desapareceram e os curadores que organizam exposições são promotores, tipos do marketing, não têm uma visão da arte. O meio da arte convencional
tornou-se muito desinteressante.
Há quatro anos foi um dos 30 pioneiros da arte tecnológica a expor no Grand Palais de Paris. Como se apaixonou pela robótica e IA?
Quando usava imagens nos meus trabalhos trabalhava muito com tecnologia, usava fotolitos para imprimir e fazer imagens. Quando apareceu o computador comecei a usá-lo, depois veio a Internet e fui evoluindo, para usar cada vez mais as tecnologias do meu tempo. Os primeiros algoritmos, que eu usava nos anos 90, já faziam desenhos originais. A robótica cria-me obras físicas, pinturas e desenhos em tela. E hoje em dia cria-me esculturas, feitas pelos robôs em impressão 3D.

“As emoções não entram no meu trabalho”

É um artista insatisfeito?
Não, pelo contrário. Tenho feito coisas que para mim são interessantes. Consegui fazer o que queria e ainda não acabei. A partir dos anos 80, com o aparecimento dos computadores pessoais, passámos a ser todos auto-didactas. Eu nem gostava de robôs antigamente, não achava piada. Sou um leitor fanático e gostava dos livros do Isaac Asimov. Li centenas de livros de ficção científica. Acabei por perceber que os robôs eram importantes no contexto do trabalho que queria fazer e tive a sorte de ter amigos do Instituto Superior Técnico que me ajudaram um pouco no início. Acabei de fazer novos robôs para uma exposição na Arábia Saudita que vai inaugurar em Março. É um novo museu totalmente dedicado às artes de base tecnológica e digital e serei o único português a estar lá representado.
A sua melhor obra ainda está por nascer?
Tenho muitos projectos e ideias. O tipo de arte que faço é cara, envolve outras pessoas, tecnologias e a colaboração com empresas. Vamos ver.
E qual é a obra que lhe fala ao coração?
Não tenho coração. Sou muito cerebral. Tenho zero paixão e zero ligação emocional ao que faço. Não tenho emoções. As emoções não entram no meu trabalho. Quando faço as coisas ou estão bem feitas e fico satisfeito ou então tenho de melhorar.
Tem medo de morrer?
Não. A morte só é chata para os que ficam vivos.
Uma inteligência artificial não morre?
Costumamos dizer a brincar que se a IA começar a ser muito agressiva e perigosa desligamos as máquinas (risos). A IA não morre. Tem uma lógica parecida com a evolução natural. Neste momento ainda é um pequeno organismo. Só que é pequeno e fascinante com implicações brutais na nossa sociedade. As bactérias, sobre as quais leio bastante e me interessam, são fascinantes e pequenas. Têm formas de comunicar entre elas estranhíssimas. E sendo uma coisa tão pequena consegue matar-nos. Por outro lado, a maioria só nos faz bem. Assim é a IA. Já está para lá das bactérias mas é um pequeno organismo que vai evoluir e não há nada a fazer sobre isso.

“Tanto aceito convites de museus importantes como de escolas e de alunos”

Leonel Moura nasceu em Lisboa a 26 de Dezembro de 1948. Ouviu falar de Vila Franca de Xira e do Ribatejo na infância e só quando se envolveu na criação do robotário é que começou a desenvolver um carinho especial pela cidade ribatejana. Diz ter começado a pintar ainda jovem, copiando os trabalhos dos mestres. “A partir de certo momento percebi que o essencial da arte não era fazer as coisas à mão. Eram as ideias. O século XX no campo da arte é marcado por essa nova visão. Não conta a pintura em si mas sim a ideia e o processo que está por trás”, conta.
Começou a usar a fotografia e as imagens como base do seu trabalho. A década de 1980 foi das mais produtivas do seu percurso e muitos dos seus trabalhos estão em museus espalhados pelo mundo. No campo da robótica já criou robôs pintores e até poetas. Um dos mais evoluídos tecnologicamente é o “RAP”, que está em exposição no Museu de História Natural de Nova Iorque na sala dedicada à humanidade. “Está dentro de uma vitrina, desenha e decide quando é que as pinturas estão prontas e assina com o nome dele. Tem livre arbítrio para decidir visualmente se a obra está como ele quer”, explica Leonel Moura.
Aquando da pandemia mudou o seu atelier para o concelho de Vila Franca de Xira. Primeiro usando um armazém em Alhandra e agora outro na cidade sede de concelho. Questionado sobre se não gostava de ver uma exposição na cidade alusiva às suas obras, Leonel Moura confessa-se “um artista fácil” que aceitaria o desafio. “Tanto aceito convites de museus importantes, de Paris a Pequim, como de escolas e de alunos. O importante é dar a conhecer a arte e levar este tema a discussão”, conclui.

O MIRANTE esteve na inauguração do robotário no jardim central do Bom Sucesso, em Alverca, em Junho de 2007

Robotário em Alverca foi oportunidade perdida

Em 2007 foi inaugurado no Jardim do Bom Sucesso, em Alverca do Ribatejo, o primeiro robotário, um jardim zoológico de robôs criados por Leonel Moura que, alimentando-se a energia solar, interagiam com os visitantes e realizavam tarefas diárias. Custou perto de 100 mil euros. Depois do entusiasmo dos primeiros anos e da visita de escolas de todo o país, o espaço começou a ser vandalizado e até os vidros à prova de bala foram destruídos.
A degradação do espaço levou a Câmara de Vila Franca de Xira a mudá-lo para o Jardim Álvaro Vidal, no centro de Alverca, mas nesta segunda vida o robotário custou 50 mil euros e a qualidade dos materiais usados para o criar não foi a melhor. Meteu água nos primeiros dias de funcionamento. O espaço, que funcionava com 15 robôs terrestres e cinco robôs aéreos, acabou vandalizado e degradado como na primeira vez até que, em 2016, mudou-se para a Escola Gago Coutinho, onde foi desactivado.
“Tive a ideia para o robotário de VFX quando ia no avião para Nova Iorque para ter uma reunião no Museu de História Natural. O robotário foi muito bem feito, simplesmente estava numa zona em que os miúdos canalizavam a sua violência e raiva contra o mundo da pior maneira, conseguindo partir os vidros à prova de bala. Até tiros lhe deram”, recorda a O MIRANTE.
Leonel Moura diz que, “incompreensivelmente”, a Câmara de Vila Franca de Xira não quis gastar muito dinheiro na segunda versão e que isso ditou que a segunda vida do robotário não tenha sido memorável devido a materiais de má qualidade. “Ainda assim compreendo a câmara pelas opções que tomou. Não fiquei triste nem zangado com a câmara. Não os critico. Foi uma oportunidade perdida. Compreendo que é difícil. Se existisse em Vila Franca de Xira uma Gulbenkian com jardim, punha-se lá e já não havia o risco do vandalismo e a coisa funcionava”, reflecte. Leonel Moura nunca mais realizou um robotário em Portugal. O único que ainda existe em todo o mundo está num centro de arte em São Paulo, no Brasil, dentro de um edifício.

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