O MIRANTE vai publicar Lêdo Ivo no ano do seu centenário
Lêdo Ivo vai ser publicada em Portugal pela Rosmaninho Editora de Arte, uma chancela de O MIRANTE, Gonçalo Ivo, seu filho, facilitou os direitos de autor, e André Seffrin vai prefaciar a obra editada pela primeira vez em 1979.
O MIRANTE vai publicar a biografia de Lêdo Ivo, o poeta brasileiro que este ano completa o centenário do seu nascimento. "Confissões de um poeta" é um livro fabuloso, que interessa a leitores, escritores e candidatos a poetas, onde Lêdo Ivo conta a sua infância em Maceió, mas onde também dá a conhecer uma vida plena e inspirada. Lêdo Ivo morreu no dia 22 de Dezembro de 2022, aos 88 anos, em Sevilha, no último dia da sua participação num festival de poesia que se realizou na cidade.
André Seffrin vai prefaciar a obra do poeta; é de sua autoria o texto que se publica em baixo e que é o primeiro a saudar e lembrar o centenário do nascimento do poeta que nasceu a 18 de fevereiro de 1924.
Diversidade de talentos
Literatura ‘Minha posteridade começa e termina em mim’: o centenário de Lêdo Ivo. Por André Seffrin, para o Valor, do Rio
Aos prosadores, a popularidade. Aos poetas, a glória./ Nós, escritores, somos só talento (quando o temos) e vaidade (sempre)./ No racionalismo dos poetas, está sempre presente a nostalgia da loucura./ Minhas incoerências me iluminam. Minhas coerências me obscurecem./ Anseio por uma clareza que, como a do sol ao meio-dia, ofusque o leitor./ Não tenho influências. Tenho convivências./ Chama-se autor o personagem criado pela obra./ A poesia terminou por se impor em mim como uma operação verbal destinada a ocultar a vida pessoal, gerando uma mitologia particular que substitui a verdade trivial da existência./ Fazer soneto é para quem sabe e quem pode, e os que não preenchem estes requisitos costumam falar mal dele./ A poesia é o horror da filosofia./ Como a terra, a criação poética é redonda./ A fronteira não é um limite, mas um convite à travessia./ O absurdo é o sal da vida./ Regra, convite à transgressão.
O parágrafo anterior reúne uma parcela mínima das centenas de aforismos de dois livros: “Confissões de um poeta” (1979) e “O aluno relapso” (1991). Neles, Lêdo Ivo (1924-2012) — que faria 100 anos no próximo domingo, 18 de fevereiro — alternou crônicas da vida literária, registros familiares, sentenças estéticas, poemas, meditações, provocações e queixas.
Em sua extensa bibliografia, que concentra poesia, ficção e ensaio, tudo é alimentado pela memória involuntária e uma sanguínea irreverência. Marcas indissociáveis de um artista que nunca perdeu de vista sua Maceió natal ao partir para o Rio de Janeiro, cidade na qual se estabeleceu desde cedo como uma das personalidades mais fortes de nossa literatura.
O incômodo do mundo freme do início ao fim de sua obra. Idiossincrático como muitos de nossos grandes escritores, no entanto bem menos que um de seus melhores amigos, o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Sobre Cabral, anotou em “O aluno relapso”: “Só para me causar inveja, João Cabral se queixa de angústia. Ele sabe que pertenço a uma outra família espiritual: a dos que dormem a sono solto dez horas por noite, e jamais são salteados pela insônia. Os deuses avaros não me cumularam com o sentimento da angústia”.
Foram os dois tão diversos que nada parece os irmanar, diferença refletida nos versos que Cabral lhe dedicou, em 1945, como um antecipado epitáfio: “Aqui repousa/ livre de todas as palavras/ LÊDO IVO,/ poeta,/ na paz reencontrada/ de antes de falar,/ e em silêncio, o silêncio/ de quando as hélices param/ no ar”. E é o que dá a exata distância entre o ânimo antilírico do pernambucano e o falatório pleno de lirismo do alagoano.
Lêdo Ivo foi um de nossos mais importantes polígrafos. Cabral, entre uma idiossincrasia e outra, costumava dizer que sua poesia era resultado de uma malograda intenção de fazer crítica literária, para a qual sentia-se despreparado. O que Lêdo nunca sentiu, uma vez que se dedicou à crítica e ao ensaio literário com o mesmo fervor que a poesia lhe provocou desde o início.
E nessa sua diversidade de talentos, poucos se destacaram tanto quanto ele — num passado já um tanto distante, Mário de Andrade, que se multiplicou em numerosos gêneros, em obra que pode e até deve ser analisada dentro de uma totalidade autoral para além dos gêneros praticados ou de um ou outro livro em particular. E a produção de Lêdo Ivo é também exemplar nesse sentido, com a matriz do poeta a orquestrar romances (como “O caminho sem aventura”, 1948; “Ninho de cobras”, 1973; e “A morte do Brasil”, 1984), contos, crônicas, memórias, traduções, tudo que publicou desde sua estreia poética com “As imaginações”, em 1944.
Como ensaísta, escreveu perfis bastante cruéis e por vezes até indiscretos, todavia de uma inegável fidelidade à realidade de vida e obra de personagens icônicos, muitos deles seus amigos: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Vicente do Rego Monteiro, Manuel Bandeira, Agrippino Grieco, Cornélio Penna, Breno Accioly e Clarice Lispector.
Perfis em geral motivados pela morte do personagem, em necrológios que tocam o segredo da inconformada solidão humana. O que se dá até em seus ensaios mais analíticos como “Lição de Mário de Andrade”, 1951, “O preto no branco”, 1955, (este, sobre um poema de Manuel Bandeira), e “O universo poético de Raul Pompeia”, 1963 etc., que explicam os retratados tanto quanto explicam o retratista, que não se recusa, por mais técnica a análise, ao recheio confessional. Porque na totalidade de sua obra de poeta e prosador a memória está sempre em primeiro plano, altaneira e reflexiva.
Num de seus tantos livros de ensaios — “A república da desilusão”, 1994 — está uma rápida observação sobre o poeta Manuel Bandeira: “A poesia de M.B. tem a frescura das fontes e das flores úmidas de orvalho e o calor dos ninhos e leitos amorosos. Nela, vida e arte poética se fundem e se transfundem, num enlace entranhado e duradouro. Armada de uma proteção estética e de uma aura humana capazes de evitar ou minimizar o processo danificador da posteridade, essa poesia apurada e madura ostenta, na mesa do leitor, a sua matéria nutriente como um pão”.
É pacífico substituir nessas linhas o nome de Manuel Bandeira pelo de Lêdo Ivo, e com isso não se altera a voltagem das observações. Apesar de suas imensas diferenças.
“Minha posteridade começa e termina em mim”, escreveu ele em outro de seus cintilantes aforismos. A notícia de sua morte em Sevilha, na Espanha, logo repercutiu também no Brasil no final de dezembro de 2012. Recém-chegado à Europa para uma visita ao filho, o pintor Gonçalo Ivo, a morte o alcançou repentina na “noite misteriosa”, título de um de seus melhores livros.
Morte que ele nunca deixou de cantar e súbita como um raio. No poema “O desejo”, do livro “Plenilúnio”, 2004, afirmou que preferia um voo de pássaro a tudo que é eterno.
Seus 100 anos de nascimento não passarão em branco na Europa: uma edição portuguesa de “Confissões de um poeta” sairá em março pela Rosmaninho Editora de Arte, e há edições de sua poesia previstas para os próximos meses pelas editoras Lindhardt og Ringhof, da Dinamarca, e Visor, da Espanha, onde também seu centenário será lembrado em evento na Residencia de Estudiantes de Madri.
Instituições e editores brasileiros mantiveram-se, por enquanto, em silêncio. Ao não se deixar iludir pelas pompas do mundo, Lêdo soube reger toda a sua poesia no esplendor da dúvida — entre os dois nadas que, segundo ele, nos isolam no irremediável de nossa hipotética existência.
Texto publicado no Jornal Valor Econômico de dia 16 de Fevereiro de 2024