Cultura | 21-03-2024 11:29

Poetas que publicaram em O MIRANTE lembrados no dia mundial da poesia

Poetas que publicaram em O MIRANTE lembrados no dia mundial da poesia
DIA MUNDIAL DA POESIA

O MIRANTE publica poesia desde há quase três décadas, e entre dezenas de autores publicou António Ramos Rosa, João Rui de Sousa, José do Carmo Francisco, Camões e Pedro Barroso. Reunimos 2 poemas de cada um destes autores para comemorarmos com os leitores o Dia Mundial da Poesia.

Sérgio Godinho

No meio do mar e no meio do deserto
quem anda perdido também perde o medo;

o rio não guarda rancor de quem vive da pesca;

não há nada que um homem não consiga da vida
quando chega o dia de bater as asas,
mover montanhas e separar as águas;

sou um amante estúpido das coisas terrenas;
gostava de ir às putas no dia de natal
e de comer entre as suas pernas
a ceia da meia-noite.

Do Livro Poemas Políticos e Eróticos de Anne Quetzal publicado 2017


Ava Gardner

Quanto às palavras a mulher respirava; com uma única
colher criou os filhos e engordou o marido algumas
arrobas a mais.

O trabalho da mulher era pôr as raízes ao sol; ir ver
as crianças no recreio da escola e cheirar o ferro
dos portões das oficinas.

Mulher de muitos homens admirada, também pelo braço
forte contra a parede, abriu um poço no ramo de uma
árvore para matar a sede e a fome aos viajantes;
era uma mulher com um torrão de terra no peito obediente
a todas as luzes que eram sinais do sol e da lua; por isso
é que ela tremia quando a nomeavam na hora do trabalho
os pastores e as sopeiras.

Seguindo os conselhos da mãe e do pai a maria jurou
ao antónio amor para sempre; para o resto da vida foi
do antónio; nada deixou escrito da sua vida mas os filhos
ficaram com a casa cheia de recordações valiosas; antónio,
rapazinho de aldeia, hoje é um homem esperto e muito
rico, amigo íntimo do homem do banco; amante da puta
mais fina da terra; nos dias dos funerais a que um homem
influente não pode faltar antónio vai visitar a campa mais
limpa e cuidada do cemitério e recorda com saudade
e lágrimas nos cantos dos olhos a humanidade e a beleza
da sua primeira mulher.

Do Livro Poemas Americanos de Anne Quetzal publicado 2016

[FALA DO VELHO DO RESTELO]

Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente.
Com um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
O fraudulento gosto, que se atiça
Com uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas,

Dura inquietação da alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas ainda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:

Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
Não tens junto contigo o ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!

Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitector co filho, dando,
Um, nome ao mar, e, o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição.
[IV, 94-104]


Quem ora soubesse
onde o amor nasce,
que o semeasse!

De Amor e seus danos
me fiz lavrador:
semeava amor
e colhia enganos.
Não vi, em meus anos,
homem que apanhasse
o que semeasse.

Vi terra florida
De lindos abrolhos:
Lindos para os olhos,
Duros para a vida;
Mas a rês perdida
Que tal erva pasce
Em forte hora nasce.

Com quanto perdi
Trabalhava em vão:
Se semeei grão,
Grande dor colhi.
Amor nunca vi
Que muito durasse
Que não magoasse.
A dor que a minha alma sente
Não a sabe toda a gente!


Que estranho caso de amor,
Que desejado tormento:
Que venho a ser avarento
Das dores da minha dor!
Por me não tratar pior,
Se se sabe, ou se se sente,
Não na digo a toda a gente.

Minha dor e a causa dela
De ninguém a ouso fiar:
Que seria aventurar
A perder-me ou a perdê-la.
E pois só com padecê-la
A minha alma está contente,
Não quero que a saiba a gente.

Anda no peito escondida,
Dentro na alma sepultada;
De mim só seja chorada,
De ninguém seja sentida.
Ou me mate ou me dê vida,
Ou viva triste ou contente,
Não me a saiba toda a gente.

Do Livro Sonetos e outros poemas de Luiz Vaz de Camões publicado 2009

Poema do lavrador de palavras aos políticos

não me perguntem coisas daquelas que eu não creia
não me perguntem coisas daquelas que não sei
remeto para os senhores as decisões do mundo
tais como governar, fazer decretos lei

no meio da tempestade no meio das sapiências
se poeta nasci, poeta morrerei
nem homem de gravata nem homem de ciências
apenas de mim próprio, e pouco, serei rei

das decisões do mundo lerei o que entender
que dentro de mim mesmo às vezes nasce um rio
e é esse desafio que nunca hei-de esquecer
e é essa a diferença que faz o meu feitio

mas digam por favor
de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor
para lá me voltarei
e saibam já agora
que se eu lavrar a terra
me bastará que chova
que o resto eu o farei
e digam por favor
se o céu ‘inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei

mantenham com cuidado as árvores e estradas
pr'a gente poder ver, p'ra gente circular
que eu basta-me saúde e o sonho tão distante
e a boca perturbante que tu me sabes dar

e a festa de viver e o gozo e a paisagem
desta curva do Tejo, soprando a brisa leve
e na tranquilidade assim desta viagem
parar-se o tempo aqui, eterno, fresco e breve

que eu voo por toda a parte mas noutro horizonte
e vivo as coisas simples e rio-me da ambição
e ao fim de tanto ver, escolherei um monte
de onde assistirei, sorrindo, ao vosso enfarte
da ânsia de possuir, da ânsia de mostrar,
da ânsia da importância, da ânsia de mandar

mas digam por favor
de onde nasce o sol
que eu basta-me o calor
para lá me voltarei
e saibam já agora
que se eu lavrar a terra
me bastará que chova
que o resto eu o farei
e digam por favor
se o céu ‘inda nos cobre
e bastará o azul
que em ave me tornei

Riachos, 1998, Canção, in CD “Criticamente”


atlantes

Fechados no castelo
ao fim da tarde
Amantes secretos de outras vidas
Recordavam
milénios devolvidos
Esse espaço de brumas esquecidas

Outros ritos se lavraram
outras coisas
que o gesto não tem sempre a mesma dança
e o vento varre os montes
devagar
e às vezes bem mais do que alcançar
o gozo é
preparar o que se alcança

Como um passe de magia e elegância
A vontade vai crescendo
e cava fundo
E o baile das loucuras começou
enquanto a porta pesada afasta o mundo

Celebro nesse corpo o mar da vida
entregue a rituais
no meio dos montes
o prazer
ao fim de tudo
é a distância renascida
o prazer ao fim de tudo é mais do que a corrida

É a distância
mais longa
entre dois pontos

Monte do q’ Há-de haver, Vila do Bispo, Setembro 2002

Do Das mulheres e do mundo de Pedro Barroso publicado em 2003

POLIEDRO

Dizia-te o corpo
como um peixe distraído na água.
E surpreendia-me.
E desejava-te.
*
Nem tanto ardor
nem tanto viço
eram possíveis
se não fosse esse grito
de alterosas águas.


DE QUEM SABER NÃO TEM...

Um brilho de ardor insuportável
baixava-te dos olhos, insolente:
era a corda do lume, a coroa de água
que cintilante vinha das alturas
à lentidão tranquila das grinaldas
pousadas nas ancas, na frescura
do teu vulto d’algas esplendentes.

Era um sinal de aves aturdidas
na confusão dos lábios divididos
entre favos de mel e a morfina,
entre dardos de sol e a ternura.
Era - talvez - o laço do desejo
de quem saber não tem, mas adivinha.

Do livro Obstinação do Corpo de João Rui de Sousa publicado em 2017

Mãos nuas

Cheguei perto de ti com as mãos nuas
Nem o relógio nem o oiro da aliança
Estava tenso e nem olhei para as tuas
É ao fim da tarde que tudo me cansa

Havia restos de sol no chão das ruas
Varridas tão devagar pelo cantoneiro
As verdades tinham que ser as cruas
Só assim o encontro seria verdadeiro

Cidade não de colinas mas de gruas
No calor da pressa na febre de chegar
Lisboa não é uma cidade; são duas
Na outra cidade o encontro tem lugar

Cheguei perto de ti com as mãos nuas
Mas saí do encontro mais confortado
Fluxo das marés ciclo das quatro luas
A cidade diz que tu estás a meu lado


Procuro

Procuro descobrir no que tu dizes
Um espaço escondido do passado
Devem existir uns intervalos felizes
No horizonte dum deserto desolado

Procuro descobrir no que ocultas
Traços de uma antiga felicidade
Na estrada nem sempre há multas
Mesmo em excesso de velocidade

Eu procuro afinal uma excepção
Dentro da regra geral da tristeza
Para te poder dar de mão na mão
Uma palavra - semente de beleza

O tempo não se detém; antes voa
Fugindo e é areia entre os dedos
Eu vou juntar o retrato à pessoa
E juntos afastam todos os medos

Do livro Saco do Adeus de José do Carmo Francisco publicado em 2003

O que eu quero não o sei mas quero
Algumas figuras apertam-se
como se não tivessem espaço
mas o espaço é demasiado grande

Deslocá-las como se fossem manchas
ou amarelas ou vermelhas
Procurar a sombra das folhas subir a uma varanda
ver o espaço e sermos o seu fogo
correndo em linhas paralelas

Não podemos ser senão o que podemos ser
Seguir por esta rua
e sentir de súbito a lufada de um vento
enrolando a folhagem e os cabelos


Tu que chamas à crosta Lisa
abóbada e folhagem de palavras
poderás ser o meu espaço o meu vento acolhedor
a minha torre vegetal?

Cordas um pouco crespas
mas o instrumento redondo
O que posso é o que posso ser
um murmúrio um silêncio uma sombra um filamento

A minha mão não é uma folha nem uma chama
mas o estremecimento da sua semelhança
e por isso o que escrevo é o fruto do vento
que deslumbrado ignoro

Do livro Versões / Inversões de António Ramos Rosa publicado em 1997

A LÁGRIMA

A lágrima ia na aragem
(Fugindo talvez à dor)
E na doce linguagem
Repetia a cada flor:

- Abre-me o cálice! da mágoa
A triste filha sou eu,
E serei a gota de água
Que tu suplicas ao céu!

E a lágrima ouvia aflita
Cada flor dizendo: não!
És a filha da desdita
E eu da ventura a expressão!

E vendo â praia os limites
Ei-la ao mar logo a dizer:
- No teu seio não permites
Que enfim me possa esconder?

- Não te quero; no universo
Eu lágrima também sou,
Eu sou o pranto disperso
Da tormenta que passou!

- Eis-me enfim, diz, no deserto!
(E ao solo ardente sorri)
Um abrigo, um seio aberto
Afinal encontro aqui!


O CANTO DA SEREIA

Oh música celeste! augustas melodias!
Calai-vos porque eu sofro! arqueja-me convulso
o peito em ânsias tais, se escuto os vossos sons;
Fazeis-me tanto mal! que as minhas alegrias,
Se acaso as tenho, em dor as volve um estranho impulso,
Da meiga e santa voz, que os justos faz mais bons!

Requebros divinais! a solidão noctuma
Se em mim derrama a luz dum lúcido cometa,
Em paz me faz cismar, sou bom, contemplo os céus!
Ressoais; da emoção porém transborda a uma,
E em mim desperta logo a eterna borboleta,
Que muitos chamam alma, e outros chamam Deus!

Em mim sinto agitar-se um mundo grande e belo!
De cada esfera a luz, na vastidão celeste,
Eu cuido ver por mim somente além brilhar!
E triste, nunca sinto o fio dum escalpelo,
Rasgar-me a fibra inerte, o vínculo terrestre
Que impede a borboleta, aos orbes, de voar!


Quisera antes viver num mundo pequenino:
Um mundo sem visões, de que eu tocasse a meta,
Sem nada mais sonhar, sem nada mais sentir!
Queª doce embriaguez desse luar divino
E os suspiros febris de terna Julieta
Não viessem jamais turbar o meu dormir!

Do livro Antologia Poética de Guilherme de Azevedo publicado em 1998

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