Vila Nova da Erra reviveu memórias e tradições que o tempo ameaça fazer esquecer

Festival Terras Sem Sombra passou pelo concelho de Coruche e foi em Vila Nova da Erra que se promoveu iniciativa para recriar cenários de outros tempos. Memórias e Tradições juntou várias dezenas de pessoas e foi uma celebração da cultura rural e identitária da vila.
Entre cantigas antigas, gastronomia tradicional e recriação de quadros rurais, Vila Nova da Erra viveu no sábado, 12 de Julho, uma viagem ao passado. O tempo pareceu recuar enquanto os habitantes se juntavam à volta das suas próprias histórias, num reencontro com gestos e saberes que moldaram a identidade da aldeia. A iniciativa, intitulada Memórias e Tradições, integrou-se no programa do Festival Terras sem Sombra, que percorre o interior do país com propostas que cruzam música, património e comunidade, entre outras actividades culturais.
A iniciativa arrancou no Largo do Pelourinho e encaminhou os curiosos para a Igreja de S. Mateus, onde foi dada uma contextualização histórica sobre a localidade e as suas tradições. Seguiu-se a recriação de um casamento, naquela que seria a primeira de várias encenações de quadros típicos de outros tempos, como bailaricos, encontros entre namorados junto à fonte local ou a confecção de pão e linguiça artesanal. A tarde não terminou sem um lanche entre todos os intervenientes e o público, em que se partilharam as iguarias tradicionais da vila e várias histórias.
Amorim Peseiro é um dos principais impulsionadores das tradições da Erra. Trabalhador no ramo da alta-costura, sendo costureiro no atelier da conceituada artista Joana Vasconcelos, equilibra os dois lados da sua vida, o de Lisboa e dos trabalhos pelas principais capitais europeias, com a ruralidade e paixão pela terra que o viu crescer. A paixão pela costura surgiu na Erra, onde procurava até bonecas no lixo para costurar e dar asas àquele gosto de miúdo que se foi desenvolvendo. “Existe muita cultura aqui na terra, mas as pessoas começaram a morrer, os mais velhos vão-se e os mais novos desaparecem”, lamenta Amorim Peseiro, que mesmo sem filhos, atraiu os sobrinhos para participar nas actividades do Rancho de Vila Nova da Erra, entidade organizadora do evento. “Faço recolhas etnográficas desde os 10 anos, pois tenho receio que tudo isto se perca”, admite. Devido à sua carreira profissional, é o próprio que elabora os trajes que são utilizados pelo rancho, num contraste curioso com o tipo de moda que costuma abordar no seu ramo. “Numa semana estou no atelier da Dior e na outra estou a costurar estes fatos”, admite, salientando que é a ligação à terra e aos seus que lhe dão vida.
A iniciativa fez parte da componente de “Património e Comunidade” do festival Terras Sem Sombra, que este ano cumpre a sua 21.ª edição. Fundado há mais de duas décadas, o festival nasceu com o objectivo de descentralizar o acesso à cultura e dar palco a territórios do interior, cruzando três pilares: a música erudita, a salvaguarda da biodiversidade e a valorização do património imaterial.
“Somos um festival que se reinventa constantemente”, explica José António Falcão, director do projecto. “Este ano o tema central é o papel da mulher na música, mas há outras linhas que atravessam a nossa programação. Trabalhamos muito com o património rural, com o montado, e faz todo o sentido criar pontes com concelhos vizinhos, como Coruche, que têm realidades semelhantes”, afirma. O director deu ainda uma “aula de história” sobre a identidade da localidade, especialmente sobre a arte sacra presente na Igreja de S. Mateus, num momento que despertou a curiosidade da população, que desconhecia a origem e significado de várias figuras presentes na estrutura. A organização do festival reconhece o sucesso da iniciativa, alcançando na perfeição aquele que é o objectivo do evento. A actividade, segundo a organização, evocou a história local e valorizou os seus costumes e tradições populares. Ao longo da tarde ouviram-se histórias de lavoura, de festas religiosas e de rituais antigos, partilharam-se especialidades e vários abriram a porta de casa para acolher a iniciativa.
