Filipa Francisco: um “Mundo em Reboliço” e a dança como forma de pertença em Abrantes
A coreógrafa abrantina Filipa Francisco, fundadora da associação Mundo em Reboliço, tem construído um percurso singular na dança contemporânea portuguesa, levando a arte a prisões, escolas e comunidades rurais.
Nascida em Abrantes e criada entre Almada e o sonho de dançar o Mundo, Filipa Francisco descobriu cedo que o corpo podia ser uma forma de diálogo, um espaço de encontro entre o que se sente e o que não se consegue dizer. Aos onze anos já sabia que a dança seria o seu caminho. O palco chegou primeiro em Almada, cidade de intensa vida cultural, e mais tarde em Lisboa, onde estudou na Escola Superior de Dança. Seguiu-se Nova Iorque onde aprofundou a formação e percebeu que queria ir além da interpretação. Filipa Francisco queria dirigir, criar e unir pessoas através do movimento.
Hoje, continua a dançar, mas sobretudo a coreografar encontros. É fundadora e directora artística da Associação Mundo em Reboliço, estrutura nascida em 2011 da vontade de dar corpo a um projecto que acabou por se tornar um modo de vida quando Filipa criou “A Viagem”, espectáculo que juntava dança contemporânea e tradição popular, em colaboração com o rancho folclórico do Pego. O que começou como uma experiência local transformou-se numa rede viva, que leva a dança a prisões, escolas, aldeias e bairros sociais.
“Percebi que a arte não precisa de ficar fechada num estúdio, nem a dança deve existir apenas em grandes teatros”, explica Filipa Francisco a O MIRANTE. “Ela tem de deslocar-se para sítios onde não existe, criar pontes entre o dentro e o fora, entre gerações e culturas”, acrescenta. Foi esta convicção que, no ano 2000, a levou ao Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, um dos espaços mais inesperados para um projecto artístico, onde durante sete anos trabalhou com homens e mulheres privados de liberdade, num processo que chamou “Resistir”. “Ali percebi que a arte pode curar, reconstruir e devolver humanidade”, recorda. Desde então, não deixou de desenvolver projectos com comunidades diversas.
Mundo em Reboliço define-se como uma associação de dança contemporânea, mas distingue-se pela forma como atravessa fronteiras e disciplinas, misturando arte, cinema, livros, investigação e formação, trabalhando com bebés e seniores, desde pequenas aldeias até grandes teatros: “queremos dar igual importância a um espectáculo em Lisboa e outro apresentado numa aldeia. É preciso tornar centro o que sempre foi tratado como periferia”, defende Filipa Francisco. É com essa filosofia que mantém a sede da associação na aldeia de Água das Casas, em Abrantes.
Filipa Francisco revela que os jovens artistas e associações devem aprender a respeitar o tempo dos processos e das comunidades, considera que há uma tendência para querer crescer depressa. Aprendeu esta lição nas prisões, onde o silêncio foi o primeiro obstáculo. “A arte participativa não é expor e fragilizar as pessoas, é ouvi-las. É dar-lhes espaço e voz. É preciso tempo para ganhar o coração e a confiança das pessoas”, sublinha a coreógrafa.
Para a coreógrafa, o impacto da arte vai muito além da estética. Considera, contudo, que a distância entre o centro e os territórios de menor densidade populacional continua a ser demasiado grande. “Faltam transportes, faltam oportunidades, e há uma baixa auto-estima colectiva. Muitas vezes, quem vive num território nem o conhece verdadeiramente. A arte pode ajudar a reatar esse laço e a valorizar o que é nosso”, vinca. Projectos como Barro, em Arganil, ou o trabalho com antigos vidreiros da Marinha Grande tornaram-se experiências de partilha e reencontro. Abrantes, a terra natal, é hoje o centro desse movimento, é o único território onde estão o ano inteiro. “É aqui que os projectos ganham profundidade, porque só o tempo permite isso”, afirma. “E é bonito que seja aqui, na minha terra”, refere Filipa Francisco.
Entre Água das Casas, Lisboa e o resto do país, Filipa Francisco vai desenhando pontes, acreditando no poder da arte para unir, curar e transformar o medo em gestos. Ainda este ano, dinamizou o projecto “Compartilhamento de Matérias” na Escola Doutor Manuel Fernandes, em Abrantes. E ainda irão trabalhar com o tema do Plano Nacional das Artes “Para além do medo” envolvendo alunos numa reflexão sobre o medo, com música ao vivo e improvisação. Depois seguirá para Viseu, onde trabalhará com uma comunidade cigana.
Filipa Francisco constrói uma obra feita de movimento e raízes, acreditando sempre em que “a dança deve sair do estúdio e encontrar as pessoas onde elas estão”, e é isso que tem feito, levando o corpo e o mundo em reboliço até aos lugares onde o silêncio ainda espera pela sua música e dança.


