Serões de antigamente à volta do croché recordados em Samora Correia
Entre linhas finas e gestos herdados, as mulheres de Samora Correia voltaram a dar corpo a uma arte que se confunde com a própria história da terra. No Palácio do Infantado, colchas de renda feitas há décadas são hoje testemunhos de vida e de serões partilhados nos tempos em que os telemóveis não existiam.
As mãos cansadas do trabalho no campo transformavam-se em instrumentos de precisão e ternura quando a noite caía. À luz do petromax, do candeeiro a petróleo ou, mais tarde, sob lâmpadas incandescentes, as mulheres de Samora Correia faziam renda. Sentadas junto à lareira, entre conversas e risos, laçavam a linha branca que, ponto a ponto, se tornava colcha, toalha ou naperom. Hoje, muitas décadas depois, essas mesmas peças voltam a ver a luz do dia na exposição “Colchas de Renda - Mãos Sábias, de Amor, na Linha do Tempo”, um projecto que devolve à comunidade um fragmento da sua memória colectiva.
A mostra, organizada por Joaquim Salvador e com a participação de várias mulheres, nasceu do desejo de preservar e celebrar uma arte que uniu gerações. As colchas expostas, algumas com meio século de história, são testemunhos silenciosos de um tempo em que o labor manual era sinónimo de paciência, amor e identidade. “Eu devia ter uns 13 anos quando a minha sogra começou a fazer a minha colcha”, recorda Manuela Carola, diante da peça que agora se exibe. “Elas faziam renda até nos intervalos do trabalho. Almoçavam a correr para poderem pegar na agulha. Ainda nem sabia que aquela colcha era para mim”, conta.
As histórias repetem-se, com ligeiras variações. Em todas elas há uma mulher, uma agulha e uma linha. Leonilde Marques recorda a avó Damiana e as colchas bordadas com iniciais. “Mandavam pôr lá os nomes. Tenho uma com o D e o M, de Damiana e Manuel. Era muito engraçado o trabalho que faziam, tudo com cuidado, tudo com orgulho”, recorda.
Joana Almeida, uma das mulheres que ainda hoje pendura as colchas à janela durante as festas de Agosto, conta como aprendeu a fazer croché sozinha, inspirada pelas revistas que se compravam às terças-feiras na papelaria. “Comprávamos as revistas. Fazia as minhas colchas a seguir ao trabalho, enquanto o leite fervia no fervedor. Aquilo era uma festa para mim, um desporto. Gostava tanto de fazer croché”. Cada pedaço de renda representava horas, dias, meses, às vezes anos, de dedicação. Era trabalho paciente, feito aos poucos, com os restos de tempo que sobravam entre o campo, a casa e a família. “Os bocadinhos eram todos aproveitados”, diz.
Também Amélia Santos cresceu entre linhas e agulhas, mas foi mais longe ao transformar a herança familiar numa missão pedagógica. “Dou aulas de croché na Universidade Sénior”, explica. É um escape, um momento de paz. “As mãos podem já não ser as mesmas, mas o prazer é o mesmo. Quando recomeçam, as mulheres ficam felizes, voltam a rir. É como se voltassem a casa”. Esta tradição é mais do que estética, é também terapêutica e social. “O croché tem um papel de saúde mental. É convívio, é partilha, é reabilitação emocional. Chamamos à aula a tertúlia de croché porque é mesmo isso um espaço de cavaqueira e de amizade”, vinca.
“Trocaram o croché pelos telemóveis”
Durante muito tempo, aprender a fazer renda era uma espécie de rito de passagem. As filhas observavam as mães, que por sua vez tinham aprendido com as avós. O saber era passado de mulher para mulher, numa cadeia de gestos e ensinamentos. As rendas faziam parte do enxoval e tinham valor simbólico. Representavam amor, dedicação e estatuto. As colchas brancas, em especial, eram usadas em dias festivos, casamentos e baptizados. Em Samora Correia, era tradição pendurá-las nas janelas e varandas durante as procissões de Agosto, em honra da padroeira.
“A minha mãe fazia renda à lareira, à luz do candeeiro a petróleo”, recorda Maria João Duarte, autora de uma das colchas expostas. “Demorei mais de um ano a fazer a minha. Era depois do trabalho, um bocadinho de cada vez. Hoje a vida é diferente, não há tempo. As pessoas trocaram o croché pelos telemóveis”. A artesã aprendeu com a mãe e guarda boas memórias dos tempos em que os serões eram momentos de partilha. “Jogávamos às cartas, conversávamos, ríamos. Agora as pessoas estão até à meia-noite sem falar. Tenho saudades daqueles tempos”.
Fazer uma colcha exigia paciência, mas também algum investimento. As linhas eram caras e compravam-se a pouco e pouco, nas antigas lojas de Samora Correia e do Porto Alto, tais como a loja do Carteiro, a loja do Laurentino, a loja do Jaime, a loja do Povo ou a loja da Maria Cândida. As marcas mais procuradas eram Âncora, Coração e Corrente, cada uma com preços e características próprias. O preço das linhas e o tempo despendido davam ainda mais valor ao trabalho. “As pessoas ganhavam pouco, os ordenados eram uma miséria”, diz Amélia Santos. “Mas o que não tinham de dinheiro para comprar, tinham de habilidade, de gosto e de vontade em fazer coisas bonitas”.
Hoje, muitas dessas peças permanecem guardadas em arcas, gavetas e cómodas, mas o gesto de as expor voltou a ter significado com a exposição no Palácio do Infantado. Joana Almeida, que continua a pendurar colchas à janela durante a procissão de Samora Correia. “Sou só eu na minha rua que ainda o faço. Antes éramos muitas. Agora venho da missa e ponho as colchas à janela. É a minha maneira de honrar a tradição”, diz.
A mostra, organizada por Joaquim Salvador do sector da cultura da Câmara Municipal de Benavente e com a participação de várias mulheres, nasceu do desejo de preservar e celebrar uma arte que uniu gerações. As colchas expostas, algumas com meio século de história, são testemunhos silenciosos de um tempo em que o labor manual era sinónimo de paciência, amor e identidade.
Cada colcha é um retrato de vida
Ao percorrer a exposição, percebe-se que cada colcha é um retrato de vida. Há o padrão da sogra que ensinou ou o ponto inventado pela avó. Pequenas diferenças que revelam, no fundo, o desejo de deixar marca. Talvez seja esse o fio condutor que atravessa o tempo, o mesmo que uniu as vizinhas da Rua 31 de Janeiro, as raparigas da Tapada e as mulheres que hoje voltam a reunir-se na Universidade Sénior, de agulha em punho, a repetir gestos antigos com um brilho novo no olhar.


