Cultura | 09-11-2025 10:48

Alves Redol e José Cardoso Pires no centenário do autor de O Delfim

Alves Redol com José Cardoso Pires. foto arquivo pessoal de José Cardoso Pires
Alves Redol com José Cardoso Pires. foto arquivo pessoal de José Cardoso Pires

António Mota Redol, filho e único herdeiro do escritor Alves Redol, escreveu um texto de antologia para salientar a amizade que havia entre seu pai e José Cardoso Pires, contestando o facto de numa biografia recente essa amizade entre os dois escritores ter sido omitida. O texto chega numa altura em que decorre uma exposição no Museu do Neo-Realismo, homenageando Cardoso Pires no ano do centenário do seu nascimento, em que o curador é precisamente António Mota Redol.

Neste ano de 2025, comemora-se o centenário do nascimento de José Cardoso Pires, um dos mais importantes escritores de toda a história da Literatura Portuguesa.
O Museu do Neo-Realismo tem patente, de 30 de Setembro a 26 de Abril de 2026, uma pequena exposição cuja curadoria é da responsabilidade do autor do presente texto, e publica uma brochura, da responsabilidade do mesmo curador, que contém muita informação que, pela primeira vez, aparece junta em publicações. Também contém uma biografia que, embora baseada em informação anterior, contém muitos aspectos inéditos, em parte resultantes dos contactos de António Mota Redol com o escritor.
Em 2021, foi publicada uma biografia que negligencia a importância do Neo-Realismo na Literatura Portuguesa, manifestando preconceitos comuns na comunidade literária, em particular universitária, ignora ou menoriza a ligação de Cardoso Pires com os neo-realistas e a admiração que ele tinha por eles, deturpa acontecimentos.
Nas consultas de documentação que o autor da citada biografia realizou, e foi bastante, ignorou documentação importante existente em espólios de neo-realistas e no Museu do Neo-Realismo.
Em particular, reduz a relação de José Cardoso Pires com Alves Redol e outros neo-realistas, com excepção de Mário Dionísio, a episódios insignificantes, ignorando nos textos do próprio Cardoso Pires as suas opiniões sobre o Neo-Realismo e aqueles.
José Cardoso Pires e Alves Redol conheceram-se nos 40. Nessa altura, o primeiro, que por vezes não se exímía a ser provocador, e por influência de alguns amigos surrealistas de então, mas com quem mais tarde cortaria relações, confrontou Redol com opiniões negativas a propósito da sua escrita.
Isso não impediu Redol de ser, com Armindo Rodrigues, Alexandre O’ Neill e talvez outros, de acordo com declarações do próprio Cardoso Pires a um jornal, financiador do primeiro livro deste, Os Caminheiros e Outros Contos, publicado em 1949, numa editora, o Centro Bibliográfico, uma espécie de cooperativa, onde estavam Redol – então, o mais importante, o mais popular e o de maior êxito editorial entre os neo-realistas - Armindo Rodrigues, Alexandre Cabral, Rogério de Freitas, Orlando da Costa e outros.


Homenagem a Alves Redol. Grupo de Amigos da Vértice. Jantar com Jorge Amado. Golpe de Beja.

Em 1951, Cardoso Pires participa num jantar de homenagem a Alves Redol no Restaurante Chave de Ouro, em Lisboa, a propósito de este ter sido galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências pelo romance Horizonte Cerrado. Estão presentes António Sérgio, Ferreira de Castro, Mário Dionísio, Adelaide Félix, Vergílio Ferreira, Fernando Piteira Santos, Mário Soares, Francisco Ramos da Costa, Francisco Lyon de Castro, Mário Neves, Álvaro Salema, Roberto Nobre, Assis Esperança, Natália Correia, Maria Armanda Falcão (Vera Lagoa), Alexandre Cabral, Romeu Correia, Alexandre Castanheira, este em representação do MUD Juvenil, provavelmente também representado por António Abreu igualmente presente, e muitas outras pessoas.

Em 1952, participam os dois no designado Grupo de Amigos da Vértice, constituído por vários intelectuais mais ou menos ligados ao PCP, que reúne em Lisboa para discutir a orientação da revista Vértice, com a qual não concordavam. Mas afastaram-se os dois a breve trecho, por discordâncias.
Em 1953, participam ambos num jantar de homenagem a Jorge Amado no Aeroporto de Lisboa - proibido de entrar em Portugal -, organizado por Francisco Lyon de Castro, com a presença de Ferreira de Castro, Roberto Nobre, Maria Lamas, Fernando Piteira Santos, João José Cochofel, Mário Dionísio e Carlos de Oliveira, vigiados de perto por vários inspectores e agentes da PIDE, entre os quais Rosa Casaco.
Nos anos 50 e 60, ambos frequentam uma tertúlia na Pastelaria Suprema, na Avenida de Roma, portanto perto de suas casas, onde também vão Castro Soromenho, Alexandre Cabral, Leão Penedo e Rogério de Freitas.
Em 31 de Dezembro de 1961, realizou-se em casa de Alves Redol uma passagem de ano em que estiveram Cardoso Pires, Álvaro Guerra (visita assídua desta casa), Fernando Piteira Santos e Stella e outras pessoas. Sem explicação, Piteira Santos saiu muito cedo. Cardoso Pires comentou para a mulher, Edite, que tem a sensação de que não verá Piteira durante muito tempo. De facto, Piteira Santos irá participar no chamado Golpe de Beja, tendo entrado na clandestinidade após o falhanço deste e, depois, partido para o exílio, de onde só regressou após o 25 de Abril. Segundo Edmundo Pedro confidenciou a António Mota Redol depois desta data, Alves Redol sabia que se ia realizar aquela tentativa revolucionária, mas, habituado ao segredo das organizações clandestinas, não é crível que tivesse informado Cardoso Pires. Tratava-se do “faro” que era habitual neste último.

Alves Redol e José Cardoso Pires - fotos dr

1962: Alves Redol, Director na Agência de Publicidade Êxito, convida Cardoso Pires e Baptista Bastos para um programa no Rádio Clube Português e na Rádio Renascença para as donas de casa, intitulado “Pequena Crónica do Banal”, e financiado por uma marca de sopas de que aquela Agência fazia a publicidade. Era uma iniciativa inovadora, capaz de cativar dois jovens escritores. As crónicas diárias seriam lidas pelos seus autores, Senhor A, Senhor B e Senhor C, cujas identidades eram desconhecidas das ouvintes. Se do primeiro existem os textos dactilografados e foram lidos aos microfones, de Cardoso Pires não há notícias.
Ainda em 1962, assinam ambos um abaixo-assinado de 69 membros da Sociedade Portuguesa de Escritores de apoio às Associações de Estudantes encerradas e o texto intitulado “Solidariedade para os universitários portugueses”, assinado por 145 intelectuais entre escritores, arquitectos, actores, pintores e outros ligados à Cultura, de apoio à luta estudantil em resultado da proibição do Dia do Estudante.


2ª Prisão de Alves Redol.
1963: Um importante dirigente clandestino do Partido Comunista Português denuncia uma grande lista de intelectuais, entre os quais os pertencentes a uma célula integrada por Alves Redol, Alexandre Cabral, Alberto Ferreira, Orlando da Costa e José Cardoso Pires, célula que realizou várias reuniões na casa de Alves Redol no Freixial. Apenas os três primeiros foram presos em 30 de Outubro desse ano. Cardoso Pires só sairá do PCP depois do 25 de Abril.
Num filme a propósito do centenário de Alves Redol e sobre este realizado por encomenda da RTP a Francisco Manso, e exibido várias vezes, Alexandre Castanheira assumiu-se como “controleiro” daquela célula durante um certo período, e testemunhou as frequentes trocas de perspectivas literárias diferentes entre Redol e Cardoso Pires, entre um escritor muito empenhado numa literatura mais ligada ao povo, à sua cultura, aos seus sentimentos e suas maneiras de ser e um escritor mais urbano, exprimindo outros sectores da sociedade e de frase mais contida, embora ambos com as mesmas raízes ideológicas.
Quando os participantes numa dessas reuniões tendo como “controleiro” o citado Alexandre Castanheira - que esteve no jantar de homenagem a Alves Redol em 1951, antigo colaborador da biblioteca da Incrível Almadense, de Almada, responsável no MUD Juvenil -, regressavam a Lisboa, sem o primeiro, claro, e como recorda Orlando da Costa numa carta para Castanheira já no Séc. XXI a que o autor deste texto teve acesso, José Cardoso Pires veio toda a viagem a tentar saber a entidade daquele, o que manifestava uma grave falha das regras de segurança numa estrutura clandestina, sujeita, portanto, a regras conspirativas muito rígidas. Recorde-se que os militantes eram tratados entre si e citados apenas pelos pseudónimos.


25 anos de Gaibéus. «15 anos de convivência quase quotidiana».
Em 1964, Cardoso Pires participa, com Baptista Bastos, num colóquio em Vila Franca de Xira integrado numa homenagem a Alves Redol comemorativa de 25 Anos de Neo-Realismo (Gaibéus, recorde-se, é de 1939), organizada pela Secção Cultural da União Desportiva Vilafranquense, a qual dura vários dias naquela vila e arredores e em que estão presentes vários escritores.
Segundo Cardoso Pires escreveu num texto intitulado “Uma incomodidade deliberada”, publicado na revista Vértice em 1965, na sequência daquela comemoração dos 25 Anos de Gaibéus, a propósito da sua relação com Redol: «15 anos de convivência quase quotidiana».
A partir talvez de 1954, os dois residiam em Lisboa no designado Bairro das Estacas, junto ao Areeiro e conviviam quase diariamente. Nessa casa, Alves Redol era visitado por muitos escritores, actores de teatro e outras pessoas ligadas à Cultura, de tal modo, que teve de alugar uma casa na aldeia do Freixial, na freguesia de Bucelas, para poder estar sozinho e poder escrever nos fins de semana e nas férias, pois trabalhava todos os dias em Vila Franca de Xira numa empresa familiar de que era sócio.
Naquele texto, Cardoso Pires, que tinha por Alves Redol uma profunda admiração pessoal e literária, também escreveu:
«E mais: em que medida o itinerário tão impetuoso do romancista Alves Redol não resulta das possibilidades de interpretação que oferece a teoria do Movimento de que ele próprio foi o pioneiro e que, pela abundância de temas e de expressões, se iria demonstrar como um dos mais amplos e decisivos da Literatura Portuguesa?».
[…]
«Cabe agora perguntar se da revelação desse novo romance e dessa nova corrente não viriam a beneficiar até os escritores das outras tendências. E eu penso que sim. Que beneficiaram esses e mais ainda, como é natural, os jovens da minha geração».
[…]
«Quando em 1950 [1949] publiquei o meu primeiro livro, já Redol, Manuel da Fonseca e Carlos de Oliveira (para falar dos romancistas que mais me tocaram) tinham descoberto horizontes novos na Literatura Portuguesa, enriquecendo-a com exemplos seguros e indiscutivelmente diferenciados na sua expressão artística».
[…]
«[…] Barranco de Cegos – para mim, um dos três maiores romances deste meio século português». [Nota – os outro dois eram A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro e Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio; claro que os três em 1965; noutras ocasiões, não se inibiria de juntar, com razão e sem falsas modéstias, o seu romance O Delfim].


Prémio Camilo Castelo Branco para Cardoso Pires. Londres.
Também em1964, o romance O Hóspede de Job recebe o Prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Grémio dos Editores e Livreiros, o mais importante prémio literário da época no nosso país. Realiza-se no Hotel Embaixador um jantar de homenagem com largas dezenas de escritores e outra gente ligada à Cultura. Alves Redol está presente.
Entretanto, Alves Redol muda a sua residência para Caxias, mas Cardoso Pires continua a aparecer, embora já menos frequentemente. Mário Ventura Henriques (ou Mário Ventura) é agora o mais assíduo.
No final de 1969, José Cardoso Pires vai para Londres como professor no King’s College. Num almoço de despedida com Redol, e sabendo que ele está muito doente, suspeita que não voltará a vê-lo, pois já tem um ar horrível. Falaram das suas vidas, do Regime, do matador de toiros Paco Camino. São ambos aficionados. Redol queixa-se do fígado, parece que sequelas do paludismo em Angola, quando estivera à morte a primeira vez. Mais tarde, ainda nos anos 30, outra vez, quando foi operado ao estômago. Enfraquecera, deixara de poder praticar desporto. E faria dieta toda a vida a partir daí.

O livro que está, em parte, na origem deste texto de António Mota Redol. foto dr


Já no Hospital de Santa Maria, Redol escreve a Cardoso Pires para Londres. Queixa-se da sua doença numa linguagem tauromáquica e, depois: «Foi o que sucedeu ao teu velho António».
E: «Eu sou um dos que morre na incomunicabilidade do seu teu tempo», uma linguagem usada sobre a prisão política quando os presos eram mantidos sós e sem visitas. Referia-se às limitações que tivera na comunicação com os seus concidadãos pela escrita e pela fala, sujeitas às pressões do Regime Fascista e à Censura. Embora fosse dos escritores com mais popularidade, edições e presença na comunicação social.
1969: Falecimento de Alves Redol. “Carta aos Amigos Comuns”.
No dia 21 de Novembro de 1969, Cardoso Pires escreve uma carta a Carlos de Oliveira:
«Chegaram-me há minutos notícias terríveis do António.
Não sei se ainda o tornarei a ver quando aí fôr, não compreendo bem a consciência que ele tem do seu estado – só sei que é uma injustiça terrível perdermos o nosso velho Redol […] e doi, caramba, custa ver o sistemático triunfo dos canalhas e a derrota sistemática dos dignos».
[..]
«Deixamos de ter aquele companheiro compreensivo, seguro, sempre tranquilo mesmo quando todos nós nos indignávamos com as torpezas de que era vítima. E se algum de nós tem sido maltratado e segregado, o Redol foi-o muito mais. Nenhum escritor português deste século foi escolhido, como ele, para símbolo e alvo do ódio dos fascistas. E apesar disso, não desvairou um só instante, nunca o vimos em oportunismos por mais discretos que fossem e a sua amizade foi sempre uma coisa certa e calorosa».
[…]
«Como não estará satisfeita a esta hora a canalha das “elites” literárias que tanto o maltratou em vida?».
Em 29 de Novembro de 1969, Alves Redol morre no Hospital. Cardoso Pires não assiste ao funeral porque está em Londres, mas Edite lá estará, juntamente com milhares de pessoas. Em nome do marido, ela assina o livro de pêsames existente na Casa da Imprensa, onde Redol está em câmara ardente.
Em Novembro/Dezembro de 1970, a revista Vértice publica um número de homenagem a Alves Redol, com depoimentos de vários escritores e uma biobibliografia elaborada por Joaquim Namorado. Nele veio publicado um texto de Cardoso Pires intitulado, ”Carta aos Amigos Comuns”, um dos mais belos e sentidos textos de um escritor sobre outro escritor amigo recentemente falecido. Mas, ao mesmo tempo, extremamente revoltado e amargo. Escreve:
«Esta manhã chegou-me o telegrama da Edite. Morreu o Redol.
Fiquei diante da janela do quarto, a olhar, ou a não olhar, sei lá bem, o pátio coberto de neve – e tudo branco, tudo puro, o nada, e a notícia ali na mão a dizer-me que tínhamos perdido o nosso velho António, o nosso querido e paciente amigo. Que pátria madrasta, a nossa. Coisas boas que se perdem, gente grande demais para tão mesquinho espaço […] Que tempo. Que terra».
[…]
«Se algum escritor português sofreu injustiças e as suportou com tolerância excessiva (excessiva, sim) esse foi o António. O António, o Alves Redol que abriu um capítulo novo ao nosso romance – o mais rico, decerto, e o que mais variedades de vozes ofereceu – e que jamais fez disso galardão. O romancista que, a seguir a Camilo, apresentou maior multiplicidade de temas e que nos deixou o Barranco de Cegos como uma das mais importantes criações da novelística portuguesa.
Mesmo assim as incompreensões não faltaram dum lado e doutro da república. Era, no fundo, a má consciência dos acomodados, no fundo era isso, deixemo-nos de coisas, perante um democrata que não desistia de clarificar. Era a incomodidade, a aristocracia culposa dos preciosos de província perante um escritor que não usava de ambiguidade de convívio, apesar de ser, com todos nós sabemos, o mais aberto leitor de todas as vozes literárias».
[…]
«Os outros, os estrangeiros de dentro que se passeiam pelas Travessas da Inteligência ao Camões com a última palavra debaixo do braço, esses calar-se-ão finalmente. Espero que sim. Na pátria que eles desconhecem e por onde divagam a esterilidade e a literatura de sovaco, a obra de Redol é um peso demasiado contundente».
[…]
«Lembrar que a ele, pois a ele, e ao Aquilino, se deve a fundação da Sociedade de Escritores; que foi pela mão de Redol que surgiu Pereira Gomes; que já no ponto alto da sua carreira não hesitou em sacrificar os seus interesses editoriais para se juntar a escritores muito menos representativos […]».
[…]
«Mas revolta amigos.
Que terrível é recordar alguém que foi uma presença diferente no nosso caminho, que está vivo dentro de nós, e só ver neve à volta, neve e mais neve a rasar o mundo por igual».


A Comissão “Legado Alves Redol”
Pouco antes de falecer Alves Redol manifestou a vários amigos no Hospital de Santa Maria, o desejo de, após a sua morte, uma parte dos seus direitos de autor serem aplicados em apoio a bibliotecas de colectividades populares. Segundo Mário Ventura, referiu-se especificamente a Fanga. E escreveu-o nas costas de um envelope indicando Alberto Ferreira, José Cardoso Pires, Mário Ventura e o filho, António Mota Redol, como seus “legatários”. Este decidiu prescindir de todos os proventos de direitos de autor para concretizar a ideia. Esta foi divulgada numa sessão de homenagem ao escritor falecido no Clube de Teatro 1º Acto, em Algés, quando também foi apresentada pela primeira vez em público o já referido texto de Cardoso Pires “Carta aos Amigos Comuns”.
Constituiu-se a Comissão “Legado Alves Redol“, que em conferência de imprensa na Casa da Imprensa em 9 de Abril de 1970, com a presença de todos, revelou a sua constituição e objectivos e Cardoso Pires anunciou a agregação de vários outros escritores: Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Fernando Assis Pacheco, Fernando Namora, Manuel Ferreira e Mário Dionísio. A Comissão “Legado Alves Redol” acabou também por organizar as Obras Completas do escritor com a intervenção daquele outro grupo, interveio no contrato com Publicações Europa-América, organizou uma exposição itinerante que percorreu o país (70 locais), organizou mais de 30 sessões, fomentou a constituição da Cooperativa de Consumo Centro Popular Alves Redol em Vila Franca de Xira, que encetou contactos com distribuição de documentos, cartazes e vinhetas por todo o país, lançou a ideia de uma Casa-Museu Alves Redol naquela vila; em 1979 e até 1982, organizou uma série de iniciativas comemorativas dos 40 Anos de Gaibéus, tendo montado a exposição Gaibéus e o Seu Tempo , que, em quatro exemplares, percorreu cerca de 160 locais de Norte a Sul do país, e organizaram-se mais de 50 sessões. Esta Comissão durou até 1982, tendo Cardoso Pires participado sempre que estava em Portugal, sempre com uma atitude colaboradora e vigilante na defesa da obra de Alves Redol.
Em 1972, por sugestão do jornal Vida Ribatejana a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira decidiu atribuir o nome de Alves Redol a uma rua da vila, mas muito fora do centro, onde afinal, o escritor vivera e desenvolvera actividades culturais e desportivas. O assunto deu polémica, abaixo-assinados, comunicados distribuídos à população, o Diário de Lisboa deu voz aos protestos e José Cardoso Pires escreveu o texto “A Morte Burocrática”, de página inteira, em que mais uma vez escreveu sobre Alves Redol (certamente, o escritor sobre quem mais escreveu sobre assuntos não especificamente literários). Dois passos desse texto, em que declara não ser «sensível a este tipo de imortalização»:
«Logo que o escritor silenciado entra no silêncio final, então, muito compreensivamente, apressa-se a reconhecer-lhe virtudes que antes lhe recusava […]».
[…]
«Rua Alves Redol? Seja. Mas que rua? E onde e com que relevância? Cantinho à margem ou merenda de pobre na herdade paternalista?».
[…]
«A menos que a avenida, a praça ou o monumento tenham a profunda, a sentida convicção de uma glória que se festeja e que disso se faça honra consequente. Que seja mais do que uma comemoração burocrática ou gesto regional de “apreço”».
Afinal, só depois do 25 de Abril houve Rua Alves Redol e esta última frase se concretizou.
E quando nos anos 80 ou 90 no mesmo Vida Ribatejana surgiu uma contestação de gente conservadora à localização da rua escolhida e já inaugurada há anos, a seguir ao 25 de Abril, Cardoso Pires volta a escrever e afirma que escritor é este que tantos anos após a sua morte ainda concita ódios. E tinha pena que com ele não sucedesse igual situação muitos anos após a sua morte.
Em 1991, a RTP produziu e exibiu um filme sobre Alves Redol realizado por Jaime Campos intitulado Alves Redol – Vida e Obra, baseado numa entrevista ao escritor por Igrejas Caeiro, gravada em disco editado pela Sasseti. Foram entrevistados vários intelectuais entre os quais Cardoso Pires, que afirmou: «É óbvio, é indiscutível que o Neo-Realismo é um Movimento fundamental, um Movimento de referência muito importante na trajectória da Literatura Portuguesa Contemporânea. E é evidente, também, que é um passo, é pelo menos um percurso que vem em frente a partir do Naturalismo, do Realismo Naturalista, e do Modernismo. […] A referência, quanto a mim, a grande referência do Neo-Realismo são romances como Finisterra de Carlos de Oliveira e o extraordinário Barranco de Cegos de Alves Redol, que considero um dos maiores romances da Literatura Portuguesa do Século XX».
Em 2011, no centenário do nascimento do escritor, a RTP encomendou a Francisco Manso um outro filme intitulado Alves Redol – Memórias e Testemunhos. Tendo já falecido Cardoso Pires, foi sua mulher, Edite, a entrevistada. Declarou, então: «Eles [Redol e Cardoso Pires] gostavam muito um do outro. O António mostrava ao Zé muitas vezes os trabalhos que estava a fazer e gostavam muito de saber a opinião do outro sobre o que escreviam».
Ao contrário do que a opinião universitária e a comunicação social dominante pretendem fazer crer, José Cardoso Pires, além de ter partido duma escrita neo-realista, embora adaptada aos novos tempos (a que os primeiros neo-realistas também se adaptaram nos anos 60), reconhecia a importância do Neo-Realismo na Literatura Portuguesa e a influência exercida nas novas gerações literárias. Além disso, foi amigo muito chegado de vários neo-realistas.


1 Em conversa muitos anos depois, Cardoso Pires contou a António Mota Redol que numa reunião, que se presume ser de uma célula idêntica, Alves Redol e António José Saraiva tiveram uma discussão violenta, o que seria raríssimo com o primeiro, pessoa afável e cordata. É de supor que tal discussão tenha tido a ver com concepções diferente de literatura. Recorda-se que Saraiva esteve ao lado de Cunhal na célebre “Polémica Interna do Neo-Realismo”, tendo escrito o conhecido texto “A Ponte Abstracta”, publicada na revista Vértice. Aliás, no espólio de Alves Redol existem duas cartas de Saraiva dos anos 50 expondo os seus pontos de vista, no fundo considerando textos de Redol como insuficientemente revolucionários. Também Saraiva e Óscar Lopes não tratam muito bem Redol e o Neo-Realismo no Dicionário de Literatura Portuguesa. No mesmo sentido, Óscar Lopes fez observações negativas a romances de Manuel da Fonseca e Carlos de Oliveira.

2 Numa sessão em Vila Franca de Xira, em 2002, de apresentação do livro Alves Redol – Testemunhos dos Seus Contemporâneos, José Saramago faria idêntica afirmação.

3 Noutras ocasiões, Cardoso Pires afirmou que Alves Redol foi o escritor português mais castigado pela Censura. Referia-se, também, à Censura prévia a que Redol foi sujeito durante cerca de 12 anos, só interrompida em 1958, quando Francisco Lyon de Castro resolveu arriscar e publicar A Barca dos Sete Lemes sem o enviar à Censura prévia.

4 Já em 1946, Redol fora um dos mais activos na organização do PEN Clube Português, filiado no PEN Club International, uma ideia de Mário Dionísio, em que Aquilino Ribeiro fora o Presidente da Direcção e Alves Redol Secretário-Geral. Não surpreende que agora fosse quem propôs a nova organização dos escritores.

5. Referia-se á editora Centro Bibliográfico.

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