Opinião | 05-09-2024 07:00

Diário dos últimos dias de Agosto

Diário dos últimos dias de Agosto
OPINIÃO: JAE

Uma viagem de moto pelo bairro de Santarém e concelhos limítrofes daria para uma crónica alargada, mas fica aqui apenas o resumo, assim como pequenas notas dos últimos dias de Agosto.

Para almoçar na capital de distrito na terceira semana de agosto a uma segunda-feira corri Seca e Meca e Olivais de Santarém e só consegui depois de subir as escadas rolantes do Shopping. Aceito na minha caixa de correio a ementa dos restaurantes que se sintam ofendidos com a minha eventual ignorância.


Marquei entrevista com dois gajos de 40 anos para virem trabalhar numa das minhas equipas e falharam os dois. Um morreu-lhe a avó uma hora antes da reunião e o outro apareceu com roupa de morador de rua.


A Joana esteve em Almeirim com uma figura de um organismo do Estado que nos atura há duas dezenas de anos, desde quando ganhámos estatuto para bater com o punho na mesa, e não o reconheceu apesar do sorriso e do trato pelo nome. Subiu na hierarquia. Os bons que servem o Estado não estão muito tempo no mesmo lugar. O seu ex-presidente conhece-nos desde que andamos nesta vida e a ideia é arrancar-lhe a memória de tantas reuniões em Lisboa em que só faltou brigarmos. Só espero que ainda nos tenhamos lembrado a tempo.


Depois de três meses com as lentes estragadas finalmente fui a uma óptica porque entretanto perdi os óculos de sol na praia da Ursa, num dia que parecia de Outono, em que tomei banho de brisa. Há anos que não bebia água do banho nem conhecia uma pessoa tão profissional que conseguiu desfazer o trabalho do optometrista que me acompanha há quase 20 anos. Incrível como somos resistentes.


Entreguei para impressão dois livros que são fruto do nosso trabalho nas horas livres: "Camões, além do desconcerto", de Alexei Bueno, e "Confissões de um poeta", de Lêdo Ivo, cujo centenário se comemora este ano e é um dos meus escritores preferidos. Em meados de Setembro estarão nas livrarias. Jamais pensei que um dia ia editar um dos mais brilhantes escritores de língua portuguesa, graças à cedência de direitos de autor do seu filho Gonçalo Ivo.


Fui fazer uma viagem de mota pelo bairro de Santarém, Torres Novas, Alcanena e Golegã, onde querem construir um aeroporto internacional. Fui com uma outra motivação, mas esta ideia assaltou-me várias vezes pelo caminho. A verdade é que já nem os figos se apanham e são negócio. Os lugares multiplicam-se, o casario é muito disperso, e ali toda a gente parece que vive no fim do mundo mas onde tudo o que é terreno fica mais à mão. Como nasci e cresci numa casa entalada entre a lezíria e a charneca, o bairro parece-me sempre um lugar estranho; talvez por isso o coração veja mais do que os meus olhos.


Morreu José António Santos, Zezão para os amigos. Dizem que foi uma cirurgia simples, mas mal calculada que acabou com ele. Era pedreiro de profissão, aluno do mestre Joaquim Antunes, leva com ele os segredos de centenas de ramais de esgoto, ligações de águas pluviais e domésticas, segredos de telhados que todos os invernos metem água, paredes e muros que ainda hoje originam brigas familiares na divisão das propriedades, etc, etc. Falava pouco mas da sua profissão sabia muito. Fui seu companheiro em menino quando subíamos a "Rua do Vale" em grupo depois dos serões na colectividade da terra. Em menino é uma forma de escrever. Pertencemos à geração daqueles que nunca foram meninos, mas nem por isso deixámos de viver a vida e de deixar testemunho. JAE.

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