Cultura | 21-03-2023 07:00

A poesia é uma fome de todos os dias

A poesia é uma fome de todos os dias

Dia Mundial da Poesia comemora-se esta terça-feira, 21 de Março.

O MIRANTE edita livros há mais de 25 anos; pelo meio inauguramos uma colecção de poesia onde foram publicados livros de António Ramos Rosa, Guilherme de Azevedo, João Rui de Sousa, Pedro da Silveira, Amadeu Baptista, José do Carmo Francisco, entre muitos outros. A aposta da editora O MIRANTE tem recaído em autores da região que não encontram oportunidades em grandes editoras e distribuidoras nacionais.

“Sonetos e outros poemas, de Luiz Vaz de Camões, é um dos livros que teve uma tiragem de muitos milhares de exemplares e que foi distribuído gratuitamente para todos os assinantes quando se comemorou o 10 de Junho em Santarém. “Poemas da Guerra”, de José Niza, tive igualmente uma edição de 30 mil exemplares que também foi distribuída gratuitamente com o jornal. No dia em que se assinala o Dia Mundial da Poesia, que se celebra esta terça-feira, 21 de Março, O MIRANTE publica um poema de alguns livros de poesia com a sua chancela.

“Sonetos e outros Poemas de Luís Vaz de Camões”

de Luiz Vaz de Camões

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

“Poemas de Guerra”

de José Niza

UMA BALA PERDIDA

Um soldado perdeu uma bala
e
que nem um tiro
o cabo disparou
a levar a notícia ao furriel
que
de imediato
a transmitiu ao sargento
estava na latrina a latrinar
mas puxou as calças e correu a informar
o oficial de dia
embora fosse de noite

o capitão
ciente da má nova
foi acordar o major
que estava a sonhar
com as mamas da Sofia Loren
e praguejou
porra
o que é que se passa
que horas são
já um gajo não

foi ele quem alertou o tenente-coronel
que via rádio comunicou
meu coronel
há uma bala perdida não se sabe
exactamente onde nem porquê
nem por quem nem quando
eu até penso que

chega
o que é preciso é avisar o nosso brigadeiro
disse o coronel em pijama de flanela
às riscas
vai ser o bom e o bonito
quando o nosso general souber

uma bala perdida
uma bala perdida
gritou o general
procurem-na imediatamente
mensagem urgente
a todos os comandos
encontrem-me essa bala
tragam-me essa bala
viva ou morta
está em causa a honra do nosso batalhão
a minha carreira
a minha condecoração
quem perde uma bala
também perde uma guerra
faça-se um inquérito
levante-se um auto
vírgula
palavras do general
convoque-se o conselho de guerra
cancelem-se todas as saídas
as licenças as guias de marcha
apaguem-se as luzes das casernas
constitua-se o tribunal militar
decrete-se o alerta geral
e o estado de sítio
em que sítio meu general
perguntou o alferes
aqui minha besta onde é que havia de ser
quero sentinelas reforçadas
até ordem em contrário está tudo proibido
excepto o que não está
que a filha da puta dessa bala
há-de aparecer
a senha é
cherchez la balle
e a contrasenha é
a contrasenha é sei lá
que se lixe
agora não há tempo para essas merdas

dias depois
a bala
foi finalmente encontrada

dentro da cabeça do soldado

“Cântico à Minha Terra”

de Francisco Henriques

Declaração de Amor a Almeirim

AMO-TE...
Porque foste o meu Presépio,
quase tão pobre como o de Belém...
Pese ao Destino, que vestiu de crepe
o menino-jesus de sua mãe.

AMO-TE...
Porque foste o meu Rincão,
o meu Vergel, o meu Jardim Florido
Embora nem um palmo do teu chão
alguma vez me tenha pertencido.

AMO-TE...
Por aqui se haverem dado
as Cortes em que orou Febo Moniz...
Conquanto não se tenha proclamado
esse rei português que o povo quis.

AMO-TE...
Por aqui haver sonhado
que seria de Artista o meu destino...
Se bem que nunca visse realizado
O meu ingénuo sonho de menino.

AMO-TE...

Porque em ti posso manter
os meus olhos abertos à Beleza...
Mau grado sobre mim sinta descer
as névoas da saudade e da tristeza.

AMO-TE...
Porque em ti nasceu Aquela
que iluminou a minha obscura estrada...
Apesar de hoje a luz brilhante e bela
ser uma triste lâmpada apagada.

AMO-TE...
Porque dás ao Ribatejo
o verde esperança que é a tua flora...
Ainda que o risonho Val' do Tejo
seja meu val' de lágrimas agora.

AMO-TE...
Porque dás aos Visitantes
à imitação de Cristo, o Pão e o Vinho...
Mesmo que por efémeros instantes
eu sinta fome e sede de carinho.

AMO-TE...
Porque exaltas no teu Povo
os valores da Honra e do Trabalho...
Quando eu, que me não fiz valer em novo,
agora que sou velho nada valho.

AMO-TE...
Porque exaltas na Campina
o cântico de amor à Liberdade...
E contudo o teu jugo me domina
como se fora uma prisão sem grade.

AMO-TE...
Não obstante esse contraste
de alegria e tristeza, luz e sombra...
Para haver rosas, há espinhos na haste;
há folhas mortas, para haver alfombra.

Tu és a minha Terra Prometida
E quem, na comunhão dos sentimentos,
faz promessa de amor por toda a vida,
tem de aceitar os bons e os maus momentos.

“Das Mulheres e do Mundo”

de Pedro Barroso

Se esse homem mexe contigo, amiga, avança.
dá o corpo ao prazer e ao delito
e sustenta o peso enorme da leveza
e arrisca uma vez mais o ser mulher
e tudo o mais que houver será bonito.

“Nocturnos Litorais”

de Luís de Miranda Rocha

Ouve-se canta esse rumor vasto suave deflagra
ouve-se canta é um rumor é um clamor agreste rouco
ouve-se canta um estertor ouve-se canta na cabeça

Esse rumor esse clamor devastador imenso e grave
anda no mundo anda no ar ouve-se forte é um furor
é um excesso grave de mais cantando triste nos ouvidos

“As emboscadas do esquecimento”

de José do Carmo Francisco

(...) Alguns teimosos ainda fazem pão verdadeiro porque
recusam o pão de plástico no hipermercado.
De vez em quando um cabo trava o movimento das velas.
Tal como a âncora que imobiliza o navio
No sossego da tarde.
No tempo suspenso.

“Versões/Inversões”

de António Ramos Rosa

Se fosse possível não pensar
instaurar uma clara lua sobre o corpo exausto
e dormindo num corpo prodigiosamente simples
seriamos tão ténues em flutuantes intermitências solares
O desejo quer ascender a uma corola
para se estender num vago prodígio
que circula entre o não ser nada e ser todo
(...)

“Poemas Ausentes”

de Pedro da Silveira

O vento esperta,
varre a terra e os pensamentos
adormecidos na minha cabeça.
Desde ontem, parece
que estas ervas cresceram.
Março:
entre as tuas mãos frias
o mundo é lume.

“Obstinação do Corpo”

de João Rui de Sousa

Que ser era esse que te alegrava,
que açulava o teu corpo como à beira
de um feliz crepúsculo?

Que ser era esse inscrito numa rosa
com pétalas de assombro fascinadas?

“Cartas ao Coração de Lisboa”

de José Falcão Tavares

Sei que sou clandestino
nem no campo trabalho
nem na cidade construo o risonho destino
das rações de combate

Juntos no hálito de fuga
outra íris nos arde
quando leio Alexandre O'Neill
semáforos da cidade

“As Tentações”

de Amadeu Baptista

Resgatar a ferida
sacia
o criador do veneno.

A cascavel precede
a mordedura.

“As brasas da minha lareira”

de Álvaro F. do Amaral Netto

Rouxinol do Tejo

A uma voz humilde do povo que fez do fado uma canção sublime.
Bendita sejas tu, mulher! que trazes
um rouxinol oculto na garganta,
quem em vez de mil gorgeios solta frases
de uma doçura que embriaga e encanta!
Bendita sejas, sim! pelo que fazes
de bem a quem te chama às vezes Santa!
Quantos no mundo,- diz-me! -, são capazes
do teu olhar fitar, se se levanta?
Cantas o fado,- eu sei!-, mas tua voz
segreda queixas que nem todos nós
podemos entender com fria calma!
Pois nela existe, quando chora e vibra,
um humano coração que se desfibra
por reflectir da Pátria a própria alma!

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1694
    11-12-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1694
    11-12-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo