No Couço molda-se a tradição e os artesãos da cortiça resistem ao tempo

Paulo Nunes e Arlindo Pirralho dedicam-se à arte de transformar a cortiça. Mas se a técnica se aprimora com os anos, o futuro do ofício é incerto. A falta de matéria-prima, as dificuldades económicas e o desinteresse das novas gerações ameaçam uma arte que resiste no fio da navalha.
Paulo Nunes e Arlindo Pirralho fazem parte de uma geração de artesãos que moldam a tradição com engenho e paciência, transformando a matéria-prima bruta em peças únicas. No Couço, concelho de Coruche, onde o montado desenha a paisagem, o artesanato não é apenas ofício – é um gesto de resistência contra o esquecimento.
Natural de Santa Justa, freguesia do Couço, Paulo Nunes cresceu a criar os próprios brinquedos com madeira, cortiça e cana. O gosto pelo artesanato acompanhou-o ao longo da vida, mas foi há cerca de uma década que passou a dedicar-se de forma mais séria à criação de peças únicas. Entre as suas obras encontram-se tarros, cochos, cestas e tropeços, mas também móveis para jardim e até mobília de cortiça – desde mesas de cabeceira a lavatórios – produzida para um alojamento local. “Muita coisa depende da matéria-prima que há disponível”, explica.
O artesanato é uma paixão que cultiva no tempo livre, alternando entre o aconchego da lareira no Inverno e o trabalho ao ar livre no Verão. A cortiça exige um processo minucioso, e fazer um tarro, usado para guardar alimentos, é um dos maiores desafios. “Tem de ir várias vezes ao lume e precisa de cortiça de primeira, daquela que até vai para a NASA”, refere o artesão de 58 anos.
As mudanças climáticas dificultam o acesso a cortiça de qualidade. “Antigamente, 35 graus já era um exagero. Hoje chegamos aos 45º e a porosidade da cortiça já não é a mesma”, lamenta. Por isso, trabalha maioritariamente com cortiça de refugo, que molda e coze em água quente até atingir o ponto certo. Para ele, o verdadeiro artesanato nasce da matéria-prima em bruto e não de imitações feitas a partir de derivados.
“Temos de pôr dinheiro do nosso bolso para andar nisto”
Apesar da dedicação, Paulo Nunes tem a jardinagem como actividade principal, pois considera impossível viver apenas do artesanato. “Temos de pôr dinheiro do nosso bolso para andar nisto”, desabafa. As feiras são uma constante no seu percurso, mas refuta a ideia de que são um negócio lucrativo. “Ninguém está lá para ganhar dinheiro”, garante.
O futuro do ofício preocupa-o. Considera-se “o artesão mais novo que anda por aí”, pois os jovens não demonstram interesse. “Ninguém quer nem vai aprender. Mas se for para comer e beber, aparecem”. Ainda assim, mantém-se fiel às tradições. Recentemente, serviu sopas de carne a um grupo num alojamento local, cozinhadas em panela de barro, símbolo de um tempo em que a cultura popular era mais valorizada. “É isso que me motiva, porque o resto é para esquecer”, diz.
Também da vila do Couço, Arlindo Pirralho transforma a cortiça em arte. O artesão septuagenário, natural de Santa Justa, dedica-se a criar figuras, utensílios e objectos decorativos, levando a sua paixão a feiras de artesanato por todo o país. Aves como perdizes, pintassilgos e cegonhas dão vida às suas criações, mas também fabrica presépios, caixas e fruteiras. O reconhecimento chega nas feiras, sobretudo no Alentejo, onde sente que os artesãos são mais valorizados.
O artesanato veio com a reforma
Desde pequeno, inspirado pelo pai, que esculpia colheres de pau e outros artefactos, Arlindo cultivou o gosto pelo ofício. Trabalhou na construção civil, mas foi na reforma que se entregou ao artesanato, primeiro com madeira e depois com cortiça. “A madeira exige mais força, enquanto a cortiça pede jeito e uma faca bem amolada”, explica.
A cortiça de qualidade é cada vez mais difícil de obter, já que a melhor se destina à produção de rolhas. Diz que se paga pela cortiça de melhor qualidade, mas é quase preciso pedir por favor para a conseguir. Ainda assim, enquanto tiver material e inspiração, continuará a dar vida à cortiça, garantindo que cada peça carrega a história e o carinho de um verdadeiro mestre.
O futuro do artesanato preocupa-o. Já deu uma aula de artes visuais na Escola Secundária de Coruche e viu interesse nos alunos, especialmente numa menina que esculpiu um coração quase perfeito. No entanto, sente dificuldades em passar o legado. “Não sei se conseguirei ensinar alguém, porque eu próprio nunca aprendi”, confessa. Gostaria que o neto seguisse os seus passos, mas a geração de hoje parece distante do ofício. Ele só quer o telemóvel, refere o avô e artesão. Ainda assim, acredita que a arte da cortiça resistirá ao tempo. “Em 100 pessoas, há sempre uma ou duas que se interessam. Daqui a 20 anos, alguém continuará a trabalhar este material”, afirma com convicção.
Transmissão do conhecimento no sector da cortiça em conferência
O papel da transmissão do conhecimento no sector da cortiça esteve em debate, a 1 de Março, no Observatório do Sobreiro e da Cortiça, em Coruche, numa conversa que reuniu artesãos, autarcas e especialistas, destacando os desafios e oportunidades desta arte ancestral. A importância da preservação e transmissão do saber-fazer no sector da cortiça esteve no centro do debate que encerrou uma iniciativa, promovida pelo Programa Nacional Saber Fazer Portugal, que decorreu entre 27 de Fevereiro e 1 de Março.
A conferência contou com a participação dos artesãos Arlindo Pirralho e Paulo Nunes, ambos de Coruche, assim como Adélio Real e António Luz, de Portalegre e São Brás de Alportel, respectivamente. A conversa contou com moderação de Carlos Faísca. Dois dos quatro artesãos participaram ainda, durante dois dias da semana, em oficinas de experimentação para alunos e seniores do concelho de Coruche.