Carlos Beato: o militar que ajudou a derrubar o regime e lamenta o fim da EPC em Santarém

Personalidade do Ano - Carlos Beato
Jovem alferes miliciano na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, Carlos Beato esteve com o capitão Salgueiro Maia no dia 25 de Abril de 1974, integrando a coluna militar que foi decisiva no derrube do antigo regime. Diz que nessa madrugada o entusiasmo suplantou o medo e, meio século depois, continua a não ter dúvidas de que valeu a pena.
Esteve no olho do furacão no golpe militar de 25 de Abril de 1974. Qual era o seu estado de espírito nesses momentos? Tinha noção que se estava a fazer História?
Os militares da Escola Prática de Cavalaria (EPC) tiveram um papel fundamental naquela madrugada libertadora da Operação Fim de Regime. Aderi desde a primeira hora a esse apelo sensível e difícil, pois na nossa coluna tínhamos todos vinte e poucos anos, incluindo o capitão Salgueiro Maia, que tinha 29 anos. Salgueiro Maia era um líder a quem não se dizia não. Era um homem carismático, um grande comandante e um grande militar.
Sentiam que iam com as costas bem guardadas tendo Salgueiro Maia como líder? Sabiam para o que iam?
Sim, sabíamos que íamos cumprir uma missão que era a queda do regime. Tínhamos consciência que era uma missão difícil, que podia não acabar bem. Mas estávamos todos entusiasmados por ir contribuir para a liberdade e para a democracia num país que tinha chegado a uma situação de orgulhosamente sós no contexto internacional. E acabámos por ser decisivos no sucesso.
Como foi viver esses momentos?
Foram momentos de grande exaltação, de grande responsabilidade, mas também de muita felicidade, especialmente quando o capitão Salgueiro Maia, no Largo do Carmo, depois de algumas horas de impasse, conseguiu a rendição do presidente do Conselho. Marcello Caetano disse que já sabia que não governava e que só esperava que o tratassem com a mesma dignidade com que serviu Portugal. E disse também que gostava de não se render a um tão jovem capitão, mas sim a um oficial general. As indicações que vieram depois foram as de que seria o general Spínola a obter a rendição do presidente do Conselho, que estava acompanhado por vários ministros.
Sentiram-se e ainda se sentem uns heróis por terem participado nesse momento histórico?
Não. Sinto-me como um militar da EPC que honrou a missão que lhe estava cometida.
A sua companheira sabia no que estava metido?
Não. Não podíamos dizer nada a ninguém, pois estávamos em tempos de ditadura e policia politica, a PIDE.
A liderança de Salgueiro Maia naqueles dias, com decisões tomadas a quente e na hora, nunca foi questionada pelos camaradas de armas que o acompanharam?
Não. Salgueiro Maia era um grande líder e era o ídolo dos militares milicianos. Tínhamos uma confiança ilimitada no nosso comandante, nessa grande figura.
Chegou a abrir fogo?
Só no Largo do Carmo, quando já passava do meio-dia e as portas do Quartel do Carmo nunca mais se abriam.
Como foi a ressaca dessa apoteose?
Estivemos mais três dias em Lisboa a fazer operações que nos foram solicitadas. Foi no local onde está a estátua de Salgueiro Maia que o povo de Santarém nos recebeu na noite de 27 de Abril de forma efusiva.
Salgueiro Maia é um ícone do 25 de Abril romantizado por quem escreveu a História da Revolução. Como era o capitão Maia de carne e osso?
Era um homem que gostava do convívio, amigo dos seus amigos, que gostava de cantar, nomeadamente cantigas da resistência, do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira, do Francisco Fanhais… Ele gostava do momento, do convívio, do que aquelas situações proporcionavam. Um dos critérios para se falar com o A e não falar com o B, sobre o que se estava a preparar, era saber se gostavam das músicas do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho e de outros.
Teve algum momento de medo nessas horas de incerteza em Lisboa?
Não, nem eu nem os meus camaradas de armas. Para mim, o momento mais difícil, ou mais sensível, daquela madrugada libertadora, foi a viagem. Foram três horas na viatura com os meus militares. Eu ia ao lado do motorista, com a G3 entre as pernas. Nessas três horas, e depois do capitão Salgueiro Maia me ter dito “a gente sabe lá se volta”, passei a viagem toda a pensar nos meus militares. Era uma grande responsabilidade, pois não sabíamos bem com o que nos íamos confrontar.
Presenciou o célebre momento em que Salgueiro Maia enfrentou um oficial superior que ordenou que um carro de combate abrisse fogo sobre os vossos homens?
Foi junto à Câmara Municipal de Lisboa que o brigadeiro Junqueira dos Reis deu ordem de fogo contra nós. O militar José Alves Costa, de Vila Verde, que era o cabo apontador do carro de combate, nunca disse que não, nunca desobedeceu ao oficial general. Mas, como ele já relatou, pensou que não podia disparar, porque ia matar os camaradas todos. E começou a arranjar maneiras de se refugiar dentro do próprio carro de combate, foi descendo e quando pôde fechar a escotilha só de lá saiu às quatro da tarde. Este, para mim, foi o momento do 25 de Abril. Se ele tem disparado o carro de combate, nunca tínhamos chegado ao Largo do Carmo. Morríamos ali todos. Isto é de uma nobreza e de uma exaltação enorme e, anos mais tarde, preparei uma proposta, com a ajuda do jornalista Adelino Gomes, para esse militar ser condecorado com a Ordem da Liberdade.
Tem havido uma tentativa de desvalorização do 25 de Abril? O país tem cumprido o legado deixado pela revolução?
Os militares milicianos tinham um slogan que era: o 25 de Abril valeu a pena. Naturalmente que, passados 50 anos, nem tudo o que estava no horizonte para ser concretizado foi levado às últimas consequências. Mas não querer reconhecer que o 25 de Abril valeu a pena e que o país de hoje não tem nada que ver com o país de Abril de 1974 é não querer ver a realidade. E o que a realidade nos diz é que os militares da EPC e de outras unidades tiveram um papel fundamental no Portugal livre, mais desenvolvido, mais justo e democrático que somos hoje. Um país que deixou de ser orgulhosamente só no contexto internacional e que até tem um português como presidente do Conselho Europeu e outro como secretário-geral das Nações Unidas.
Preocupa-o a ascensão de movimentos com ideias e valores associados ao antigo regime e à extrema-direita?
Quem não se preocupar com a ascensão que a extrema-direita está a ter no mundo é porque anda distraído. Um cidadão que esteja atento tem que se preocupar.
Tem-se falado muito também da importância do 25 de Novembro de 1975 para a consolidação de um regime democrático em Portugal. A data também merece celebrações oficiais?
Tem havido alguma polémica sobre isso. Não se podendo comparar, em minha opinião, ao 25 de Abril, reconheço que o 25 de Novembro foi uma data importante no caminho que estava a ser percorrido para a consolidação da democracia.
Salgueiro Maia nunca se envolveu na política partidária. O senhor foi militante e dirigente do extinto PRD e mais tarde autarca eleito pelo PS. A política estava-lhe no sangue?
Não. Até ao 25 de Abril nunca me meti na política. Pertencia à grande franja de pessoas que na altura se chamava a maioria silenciosa. Tinha a minha noção e os meus valores, mas nunca me meti em nada. O meu envolvimento nas acções e nos caminhos da cidadania decorrem da participação da EPC na Operação Fim do Regime.
A guerra colonial deixou-lhe marcas para a vida?
Marcou-me. Foram momentos muito difíceis. Vi ficarem lá camaradas e muitos voltaram sãos e salvos por sorte. Era uma guerra militarmente sem sentido e que tinha de ter uma solução política. Morreram lá milhares de jovens e ficaram estropiados mais de 40 mil jovens, com os traumas que também se estenderam às respectivas famílias.
Transferência da Escola Prática de Cavalaria foi uma maldade que se fez a Santarém
Nasceu no Porto Alto, concelho de Benavente. As raízes ribatejanas permanecem em si?
Sim, sou um homem do Ribatejo, gosto de touradas , gosto do fado e da maneira de ser das nossas gentes.
Que ligações mantém com a terra natal?
Não vou lá tanto quanto gostaria, vou mais a Santarém, que é a capital da nossa região. Mas sempre que se fala ou acontece algo no nosso Ribatejo, isso mexe com o meu coração.
A construção do novo aeroporto no concelho de Benavente vai transformar o território para melhor ou para pior?
Acho que vai transformar para melhor, sem dúvida alguma. Vai ser um factor de oportunidade, de mais e melhor desenvolvimento e de afirmação das potencialidades do Ribatejo.
Já há muitos anos que não vive em Santarém mas mantém lá casa. A cidade deixou-lhe saudades?
Passei em Santarém os melhores anos da minha vida. Foi de Santarém que saí no 25 de Abril, foi na EPC que me fiz militar, numa unidade de excelência onde aprendi muito e a que devo muito. Aquilo que consegui concretizar na vida com algum sucesso devo-o a três instituições: instituição militar; instituição Igreja Católica; e instituição família. São as três instituições que fizeram do rapaz Beato aquilo que tem conseguido ser na vida.
Custou-lhe assistir ao fim da Escola Prática de Cavalaria em Santarém?
Custou muito. Era algo que nunca poderia ter acontecido, devido ao contributo que a cidade e a sua EPC deram para o 25 de Abril. Foi uma maldade que se fez a Santarém e que Santarém não merecia, devido ao contributo que a cidade e a sua EPC deram para o 25 de Abril e para a Democracia.
O que sente quando regressa ao antigo quartel?
Emoção. Aquilo que a gente vê é que o espaço podia ser não só melhor aproveitado mas também melhor enquadrado e embelezado. Porque, ao fim e ao cabo, pode dizer-se que a EPC, e espero não estar a ser abusivo nas palavras, é um verdadeiro museu da liberdade.
O jovem militar do Porto Alto que ajudou a fazer História
O militar de Abril, Carlos Beato, foi escolhido para Personalidade do Ano 2024, quando se assinalaram os 50 anos da Revolução dos Cravos, por ter integrado a coluna militar liderada por Salgueiro Maia, que saiu da então Escola Prática de Cavalaria (EPC) de Santarém, na madrugada do 25 de Abril de 1974, em direcção a Lisboa. Uma força composta por jovens militares que teve um papel crucial no derrube da ditadura.
Carlos Beato, a quem Salgueiro Maia tratava informalmente por “rapaz Beato”, era alferes miliciano a prestar serviço em Santarém, e comandava o 6º pelotão da coluna da EPC que participou na Operação Fim do Regime, constituído por 25 dos cerca de 240 militares que se voluntariaram para acompanhar Salgueiro Maia rumo a Lisboa.
Natural de Porto Alto, Benavente, onde nasceu a 2 de Novembro de 1945, Carlos Vicente Morais Beato é licenciado em Gestão. É casado com o amor da sua vida, Maria de Jesus – Ju para os familiares e amigos -, que conheceu, graças a uma série de coincidências, numas férias de Verão em Grândola e com quem tem uma filha e um filho e três netos.
O pai de Carlos Beato era beirão de Castelo Branco e a mãe alentejana de Mértola, tendo-se estabelecido no Porto Alto com um restaurante, chamado A Chaminé, onde o filho trabalhava aos fins-de-semana, quando ainda era solteiro. Carlos Beato deixou o Porto Alto no início da idade adulta, tendo vivido depois em Santarém, em Grândola e em Lisboa, mas continua a acompanhar o que se vai passando no seu concelho natal e na região.
Esteve três anos em Moçambique na Guerra Colonial, participou no 25 de Abril mas nunca pensou seguir a vida militar. Quando passou à disponibilidade foi trabalhar para a administração pública, no então Ministério dos Assuntos Sociais. Nunca foi um jovem politizado mas alguns anos depois da revolução envolveu-se nesse meio. Foi secretário-geral do antigo Partido Renovador Democrático (PRD), fundado pelo general Ramalho Eanes, chefe de gabinete do grupo parlamentar do PRD entre 1986 e 1992 e também eleito na Assembleia Municipal de Santarém.
Ainda nas lides políticas, foi o primeiro presidente de câmara não comunista a ser eleito no concelho de Grândola, em 2001, como independente nas listas do PS, tendo sido reeleito duas vezes, sempre com maioria absoluta. Quando deixou a autarquia, em 2013, foi para a administração do Grupo Montepio, onde esteve uma década. Depois, passou a integrar a administração da Fundação Montepio, apesar de ter vontade de pôr um ponto final na carreira e ter mais tempo para si e para os seus.
Trabalhou também cinco anos na Companhia das Lezírias, nos tempos em que a administração da empresa pública era liderada por Hermínio Martinho, de quem é amigo. Carlos Beato recebeu o grau de comendador da Ordem da Liberdade a 10 de Junho de 2013, nas comemorações do Dia de Portugal. Na recente conversa com O MIRANTE, declarou-se muito sensibilizado e agradecido com a distinção como Personalidade do Ano conferida pelo jornal, fazendo questão de referir que a interpreta como uma homenagem a Santarém, à Escola Prática de Cavalaria, ao “grande e eterno capitão Salgueiro Maia” e à Liberdade “que se começou a construir a partir daqui”. Concluiu dizendo que a missão do jornalismo é insubstituível.