José Pedro Aguiar-Branco: devassar a vida privada dos políticos faz com que só fiquem os de carreira e isso não é bom para a democracia

Personalidade do Ano Nacional - José Pedro Aguiar-Branco
José Pedro Aguiar-Branco despertou para a política em 1974, ano da revolução que derrubou o regime ditatorial, tornando-se militante na Juventude Social-democrata e depois no PSD, tendo sido deputado e presidente do grupo parlamentar, ministro da Justiça e posteriormente da Defesa. Advogado desde 1980, tendo constituído a primeira sociedade de advogados em Portugal, está a imprimir um novo estilo na condução dos trabalhos do parlamento como presidente da Assembleia da República. Diz que agora com o tempo contado ao segundo e um corte do microfone para quem atingir o limite, há um sistema mais democrático. Considera que o escrutínio sem razão dos políticos afasta as pessoas de bem da participação cívica e corre-se o risco de um dia só haver políticos de carreira.
Ultimamente houve vários deputados envolvidos em casos que podem configurar crimes. O meio político está a ficar mais mal frequentado ou é apenas um reflexo do país que temos?
O meio político é mais que os deputados, que são uma parte do meio político e são eleitos pelo povo num sufrágio livre, directo e universal que lhes dá legitimidade para estar na Assembleia da Republica. Não há deputados convidados ou escolhidos. Para ir ao encontro da pergunta, eles emergem da sociedade, que está assim representada na assembleia. Ao longo dos anos criou-se cada vez menos condições para a intervenção e participação cívica. As pessoas de bem ao não participarem tanto, ao não terem condições para o fazer, significa que houve uma certa degradação do que tem a ver com a atmosfera política.
Teme que o panorama, essa atmosfera, piorem, atendendo ao escrutínio exacerbado, ao “voyeurismo” político?
Não confundamos escrutínio com voyeurismo. Quem está no exercício de funções públicas tem um dever acrescido de transparência e deve estar sujeito ao escrutínio. Deve haver uma exigência muito grande em três coisas: na transparência, no registo de interesses e numa penalização de quem viola esse registo de interesses. Coisa diferente é quando não há sequer motivos para se fazer o escrutínio e se faz a devassa total da vida das pessoas para satisfazer apenas, de forma demagógica, o voyeurismo que depois não é benéfico e afasta as pessoas da política.
Não teme a degradação da política?
Claro que temo, mas isso obriga a participar, a intervir, a ser um construtor da democracia. A minha função hoje tem uma importância muito grande, porque tendo um parlamento que está muito fragmentado, isso significa que são as minhas decisões e o meu pensamento que impactam em relação à democracia. Quero contribuir não para que haja degradação, mas que haja regeneração.
Mas continuando neste sistema em que parece que tudo o que as pessoas fazem no passado é mau ou suspeito, qualquer dia só teremos políticos que sejam funcionários públicos ou académicos…
Temos todos que cuidar da democracia. A democracia representativa é isso mesmo. Quem está na Assembleia da República deve representar os diversos interesses da sociedade: os agricultores, os professores, os trabalhadores da função pública, etc… Uma coisa é cuidar-se do seu próprio interesse, outra é defender os interesses da sociedade. É isso que faz a diferença entre ser um político ou um interesseiro. O conjunto dos interesses da sociedade é que faz o interesse nacional e é essencial que quem esteja a representar os portugueses represente efectivamente toda essa pluralidade. E quem conhece melhor essa pluralidade é quem está no terreno, quem vive a sociedade, quem trabalha e tem vida para lá do que é a mera dimensão politica. Se não corremos o risco de termos só políticos de carreira e isso não é bom para a democracia.
A liberdade de expressão, de que é um grande defensor, tendo imprimido um novo estilo na condução dos trabalhos no parlamento, deve permitir tudo, até mesmo o insulto de baixo nível?
A liberdade de expressão é uma coisa. A forma de a exprimir e que condicione o debate politico é outra. Um deputado tem a liberdade para poder dizer o que pensa em relação a tudo. Essa liberdade de expressão está consagrada na Constituição, que também concede a imunidade em relação ao discurso politico para que este seja livre. Isso é um dado adquirido. Cada deputado é responsável pelo que afirma e esse espaço tem de ser garantido. Diferente é se um determinado deputado para exprimir as suas ideias faz um insulto a outro deputado, faz uma ameaça ou tem um discurso injurioso ou agressivo que condiciona a própria relação dialéctica que o parlamento tem de ter. Nessa situação até está a condicionar o livre debate das ideias, isso é que não é aceitável e nesse caso tenho a obrigação de intervir e impedir que isso aconteça. Tenho que assegurar a igualdade de armas. Tenho que assegurar que face a uma ideia que seja expressa, outro deputado possa nas mesmas condições, sem coacção, contraditar essa ideia.
Tem-se dito que a qualidade média da classe política tem vindo a diminuir. É uma realidade ou uma percepção?
Há exemplos de tudo. Prefiro ver a questão mais pelo lado construtivo. Temos que criar condições para que seja possível mobilizar os melhores da sociedade, para que seja possível ter uma capacidade de recrutamento para a acção política, de criar condições para que a disponibilidade das pessoas aconteça. Efectivamente, hoje em dia essa realidade não é uma certeza, pelo contrário. Temos a obrigação, para qualificar a nossa democracia, para conseguir construir a democracia todos os dias, de criar condições para a mobilização dos diversos sectores da nossa sociedade. Hoje, parece-me que é unanime dizer-se que essa realidade não acontece.
E o que é que se pode fazer em relação a isso?
Em democracia a única maneira que temos de ultrapassar as dificuldades é intervindo, participando… Não é com a abstenção, porque ninguém faz por nós aquilo que não estivermos dispostos a fazer.
Insinua-se muitas vezes haver uma promiscuidade entre o poder político e os escritórios de advogados, havendo inclusivamente deputados que são advogados. Isso incomoda-o?
As insinuações incomodam sempre e não é só em relação a esta profissão, é a qualquer outra. Quando não é baseada em factos concretos é criar-se uma atmosfera demagógica, de confusão, que degrada o debate político. A promiscuidade, seja em relação a escritórios de advogados, seja a qualquer outra situação é algo que temos de condenar, de penalizar. Não podemos é achar que a promiscuidade existe só porque se é advogado, ou médico ou carpinteiro… Só quem não faz nada na vida é que tem total impossibilidade de ter essa insinuação. A promiscuidade tem de ser analisada em relação a situações concretas, se não cria-se um anátema em relação a todas as pessoas.
Criou um novo estilo na assembleia com um rigor do tempo das intervenções ao segundo. A pontualidade é um ponto de honra no seu quotidiano?
É, porque isso também é uma questão de respeito pelos outros. A questão do tempo na assembleia não foi um capricho. Avaliámos as situações e verificou-se que havia uma extensão do tempo normal em cerca de 30 por cento, com mais um minuto agora, um minuto depois. Podia-se considerar que o presidente da assembleia podia favorecer uma força ou outra, ou que dava mais tempo a um do que a outro, ou que tinha mais simpatia por algum deputado. O actual sistema, com o corte automático, é muito mais democrático, todos têm o mesmo registo, incluindo os membros do Governo e o primeiro-ministro. O presidente também tem um botão que pode cortar tudo, que só usei uma vez.
No ano passado presidiu à inauguração do Festival de Gastronomia em Santarém, numa altura em que se negociava o Orçamento de Estado e havia dúvidas quanto à sua aprovação. Foi uma forma de espairecer ou de aproximar o parlamento das pessoas?
É mais a segunda situação, embora a primeira hipótese também seja válida numa perspectiva mais pessoal. Defini como objectivo neste mandato abrir a Assembleia da República aos cidadãos, para a sentirem mais perto, nomeadamente as forças vivas dos distritos, não só com a dimensão política com autarcas, mas também no que tem a ver com os actores económicos das regiões.
É melhor dar o direito a criticar, mesmo a quem não tem razão, do que haver um regime sem crítica
Uma pessoa que vai para a política sabendo que vai deixar de ter vida própria, que vai estar a ser criticado, às vezes até enxovalhado, é masoquista ou resistente?
É o cumprimento de um dever cívico, que é crítico para preservar o regime democrático. É uma missão.
Já se sentiu desanimado com alguma crítica?
Não me desanimo com facilidade, mas sinto injustiça por vezes quando as críticas não são verdadeiras, o que me obriga a ter uma capacidade de resistência maior. A única maneira de combater essas situações não é estar numa posição de queixume, é uma questão de reacção. Tenho mais tendência para reagir do que para deprimir. Mas é melhor dar direito a criticar mesmo a quem não tem razão, do que termos um regime em que a crítica não é possível.
O que é que lhe dá mais dores de cabeça, ser advogado, ser político, ou ser presidente da Assembleia da República?
Nenhum me dá dores de cabeça. Cada uma dessas dimensões tem as suas exigências muito fortes. Na advocacia quantas vezes achamos que a solução não é aquela que achávamos que devia acontecer. É um desafio muito grande resolver os problemas às pessoas enquanto advogado. Na Assembleia da República, num parlamento muito fragmentado, em que é necessário conseguir que todas as forças se exprimam com igualdade de circunstâncias e tentar encontrar consensos, tem muito também da qualidade de advogado.
Como antigo ministro da justiça, como é que vê este sector?
A justiça é um sector importante para o Estado de Direito e é preciso que ela evolua no sentido de ser cada vez mais célere. Não é só haver uma decisão justa, é que seja em tempo útil. É preciso também restaurar a credibilidade dos agentes da justiça perante a opinião pública e que os portugueses sintam que têm um acesso à justiça sem discriminação em relação à maior ou menor condição financeira. É preciso também que a justiça comunique muito melhor.
Um tripeiro de gema que imprimiu um novo estilo na presidência da Assembleia da República
O presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, recebeu os jornalistas de O MIRANTE no seu gabinete na manhã de 27 de Fevereiro, quando se ultimavam os preparativos para a recepção ao Presidente da República de França, Emmanuel Macron. Era notório algum bulício, mas a segunda figura do país não deixou transparecer qualquer stress. Sempre disponível, cordial e bem-humorado, o advogado e político nortenho comprovou que é uma lufada de ar fresco no exercício de tão nobre e relevante cargo e uma figura agregadora e apaziguadora em tempos de convulsões e polémicas políticas.
Casado há 44 anos, tem “cinco filhos da mesma mulher”, como frisa com humor, e um neto. Os filhos foram nascendo bem espaçados no tempo, tendo idades entre os 24 e os 43 anos, pelo que tem testemunhado como pai as preocupações, anseios e reacções de várias gerações. É um homem do Porto que vive parte do seu tempo na capital e sente-se confortável com isso, referindo que assim é possível tirar o bom das duas cidades. Mas se tivesse de escolher só uma, optaria pela cidade natal, confessa este “tripeiro de gema” e adepto do Futebol Clube do Porto.
Na secretária do seu gabinete na Assembleia da República e noutro móvel estão expostas dezenas de canetas que evidenciam a sua faceta de coleccionador. A caneta preferida é a que o pai lhe ofereceu há muitos anos, com a qual assinou a tomada de posse como ministro da Justiça. Outra que merece menção especial é a que lhe foi dada pela esposa e que foi usada para assinar a posse como ministro da Defesa.
José Pedro Aguiar-Branco tem cuidado com o físico e faz exercício com regularidade, nomeadamente caminhadas e ginásio. A leitura é o seu passatempo preferido nos tempos livres, apreciando ensaios relacionados com questões sociológicas e biografias e não tanto ficção. Embora goste muito de Agustina Bessa-Luís e de outros clássicos nacionais, como Eça de Queiroz ou Camilo Castelo Branco, que considera estarem sempre actuais. Tem também atenção às novidades que vão surgindo na área da política. Confessa-se um aficionado de jazz e gosta de cinema, sobretudo em casa.
Presidente da Assembleia da República desde 27 de Março de 2024, José Pedro Aguiar-Branco tem afirmado a sua condição de homem livre, que recusa condicionar a liberdade dos outros ou ser polícia dos deputados eleitos por voto secreto, directo e universal. Tem procurado também aproximar esse órgão de soberania dos cidadãos, marcando presença em eventos onde habitualmente a segunda figura do Estado não participava, como aconteceu quando presidiu à inauguração do último Festival Nacional de Gastronomia em Santarém.
José Pedro Correia de Aguiar-Branco nasceu no Porto em 18 de Julho de 1957. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1980, ano em que iniciou o exercício da advocacia. Foi ministro da Justiça do XVI Governo Constitucional, ministro da Defesa Nacional dos XIX e XX Governos Constitucionais e deputado à Assembleia da República de 2005 até 2011 e de 2015 até 2019. Foi presidente do Grupo Parlamentar do PSD e, a nível autárquico, foi presidente da Assembleia Municipal do Porto entre 2005 e 2009. Entre outros cargos, foi também presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados e membro do Conselho Superior da Magistratura, eleito pela Assembleia da República.