Especiais | 19-03-2025 09:00

Bernardo Duque Neves: a burocratização do acto médico dificulta a prática da medicina

Bernardo Duque Neves: a burocratização do acto médico dificulta a prática da medicina
ESPECIAL PERSONALIDADES DO ANO

Personalidade do Ano Prestígio - Bernardo Duque Neves

Bernardo Duque Neves sempre respirou medicina e música. Perto de completar 38 anos, o especialista em Medicina Interna trabalha no Hospital da Luz e faz parte da Orquestra Internacional de Médicos (World’s Doctors Orchestra), tendo ajudado a fundar, mais recentemente, a Orquestra Médica Ibérica. Natural de Tomar diz que a sua cidade é, como disse Umberto Eco, o umbigo do mundo.

O que define um bom médico?
Um bom médico, em primeiro lugar, tem de ser capaz de estar presente e de ter tempo para comunicar e estabelecer uma relação empática com as pessoas. Acho que isso é o mais importante. Claro que os conhecimentos teóricos e científicos também são importantes. Mas ter tempo para ouvir é fundamental. Porque muitas vezes é isso que as pessoas procuram. Alguém que compreenda os seus problemas e que as ajude e oriente da melhor maneira possível.
Mas hoje é cada vez mais difícil um clínico ter tempo. Ainda há médicos de proximidade?
Penso que sim. E ainda há muitas pessoas que continuam a ir para medicina pela vocação e por gostar de estar com pessoas e ajudá-las. É verdade que a profissão se modificou nas últimas duas décadas. A profissão médica é cada vez mais técnica e tem uma especialização muito grande. Também há exigências de outras naturezas. Há uma burocratização do acto médico e isso também dificulta a própria prática da medicina. Há muitos anos não havia os recursos que há hoje para tratar as pessoas, mas havia uma disponibilidade maior do médico em poder estar presente e não ter uma série de outros compromissos e exigências.
A doença do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é a falta de médicos?
A minha experiência profissional está muito longe do SNS. Não tenho a certeza que o problema seja a falta de médicos. Provavelmente é mais um problema de organização e de utilizar de maneira mais eficiente os recursos que temos.
Há um preconceito em relação ao SNS?
Há óptimos profissionais em todo o lado. Há maneiras melhores e piores de gerir os recursos e de conseguirmos atingir os objectivos. Há pessoas muito boas e muito competentes no sector público e no privado.
A carreira de médico devia ser mais atractiva?
Nos últimos anos tem havido uma deterioração das condições da prática da medicina e, sobretudo, da carreira médica. Quando falo com colegas mais novos sinto que existe uma ausência de perspectiva de carreira, que era uma coisa que pessoas de gerações mais velhas tinham. Acho que a medicina continua a ser muito atractiva para quem gosta desta área. Mas é importante solidificar e melhorar as condições da carreira médica.
Porque é que o sector privado na Saúde tem crescido de forma significativa?
Porque há necessidades que precisam de ser colmatadas. Vivemos numa altura em que, ao contrário daquilo que acontecia há 30 anos, lidamos essencialmente com doenças crónicas. A maneira mais eficiente de lidar com doenças crónicas é começar na sua prevenção. Portanto, existe mais pressão para haver mais recursos e isso muda o paradigma da maneira como a saúde é prestada. O Estado não tem recursos suficientes para oferecer os melhores cuidados de saúde à população.
As doenças crónicas são consequência dos maus hábitos de vida?
É uma conjugação de factores. A esperança média de vida, felizmente, aumentou. As pessoas vivem mais, mas ao viverem mais também vão acumulando várias doenças, principalmente doenças cardiovasculares e oncológicas. O nosso estilo de vida, mais sedentário, e alguns hábitos alimentares, também promovem o aparecimento deste tipo de doenças.
Porque estamos a assistir a um constante encerramento de serviços?
Não sou perito em políticas de Saúde, mas imagino que seja difícil gerir recursos quando são escassos.
O Hospital da Luz, em Santarém, vai ser uma pedrada no charco?
Espero que sim. Enquanto pessoa que veste a camisola da Luz Saúde e que acredita que temos uma missão importante e que trabalhamos em prol de uma melhor saúde para os nossos doentes, acredito que vai ser uma mais-valia para a região ribatejana.
Imagina-se a trabalhar na região?
Não sabemos para onde o futuro nos leva. Continuo com ligação a Tomar e tenho actividade clínica limitada que mantenho em Tomar e que gostava de explorar no futuro. Espero poder contribuir no futuro, directa ou indirectamente, para a melhoria dos cuidados de saúde na nossa região.
O vencimento de um médico está adaptado às competências que tem?
O vencimento do médico, como o de muitos outros profissionais no nosso país, está muito abaixo daquilo que são as expectativas legítimas. Ficámos para trás em relação a outros países e realidades. O problema é geral, mas os médicos sentem-se frustrados com aquilo que é a sua compensação.
É promíscuo um médico acumular funções públicas com privadas?
Não acho que seja promíscuo, se isso não implicar um conflito de interesses. Vejo isso como uma oportunidade, que pode não estar relacionada com a questão do vencimento. Pode ter a ver, por exemplo, com a necessidade do profissional se querer diferenciar noutras áreas, de querer ganhar experiência. A vida do médico é muito pautada pela experiência que vai adquirindo. Os doentes só têm a ganhar quando são acompanhados por alguém com uma vasta experiência.
O burnout é um fenómeno que também está a afectar a profissão médica?
Sim, há vários estudos que o demonstram. Está relacionado com vários factores, nomeadamente com o facto de a profissão médica exigir uma multiplicidade de tarefas que vão desde a parte administrativa, às decisões serem cada vez mais complicadas e terem que ser partilhadas. Muitas vezes no bom sentido, porque os casos são complexos e requerem várias análises. Mas a realidade é que há uma excessiva burocratização na prática médica e isso é desgastante.
Consegue colocar-se na pele de um utente que tem de fazer centenas de quilómetros para uma consulta ou cirurgia e bata com o nariz na porta?
Isso é inadmissível e traduz falências em vários níveis. A telemedicina não resolve tudo, mas devemos parar um bocadinho para pensar e redesenhar a maneira como as coisas são feitas. Existem muitas consultas de seguimento que podem ser remotas. Isso não tira a necessidade de termos hospitais e acesso a equipamentos nos locais e nas populações mais isoladas. Têm que continuar a existir, mas pode ser uma boa maneira de colmatar as assimetrias.
Que opinião tem sobre a não renovação por parte do Governo das parcerias público-privadas nos hospitais?
Não querendo entrar muito em políticas, o que me interessa é se as coisas funcionam e se atingem os resultados propostos, como diminuir os tempos de espera e aumentar os números de consultas, por exemplo. Se quem gere é o privado ou o público, não quero saber. Quero é que o meu dinheiro, enquanto contribuinte, seja bem empregue e que a melhor solução possível seja encontrada para que as coisas funcionem.
Qual é o momento mais marcante da sua carreira?
Há sempre doentes que nos marcam e experiências que nos modificam enquanto pessoas e médicos. Ainda estamos muito próximos da pandemia de Covid-19 para não dizer que isso foi o evento mais marcante da minha vida.
Como é o seu dia de trabalho?
Enquanto internista vejo um bocadinho de tudo. Neste momento, fruto do percurso que estou a fazer, tenho menos actividade clínica. Continuo a ver doentes todos os dias, maioritariamente em consulta, menos já na enfermaria, porque estou a dedicar também grande parte do tempo à investigação. Estou a terminar um doutoramento em Engenharia Biomédica, muito na vertente da análise dos dados em saúde para tentar extrair mais informação dos nossos dados clínicos. O meu objectivo é ser capaz de desenvolver ferramentas que ajudem os médicos a tomar melhores decisões. Fala-se muito que os dados são o novo ouro, e é verdade.
É possível não se deixar afectar pelo drama dos seus pacientes?
Sim, tem mesmo de ser. O distanciamento é muito importante para a nossa saúde mental. É claro que há casos onde é mais difícil desligar.
Um médico tem de ter fé?
O processo de tomada de decisão do médico é complexo. Baseamo-nos na ciência, mas a psicologia mostra que, muitas vezes, a tomada de decisão do médico também é intuitiva. Algures por aí devemos entrar no campo da fé, intuição, experiência, feeling. Há uma coisa que acho importante referir: não estamos aqui apenas para pedir exames, dar diagnósticos e prescrever medicamentos. O contacto médico-doente tem um lado emocional e é muitas vezes terapêutico. O facto de conversarmos com as pessoas, de lhes explicarmos, de as acalmarmos, tem um efeito terapêutico que vai para além das coisas que depois pedimos para fazerem.
Como surge a sua ligação à música?
Lembro-me sempre de ter um piano em casa. Comecei a tocar na banda Gualdim Pais, em Tomar, com sete anos. Tenho boas memórias desse tempo. As filarmónicas são uma escola de vida. Pessoas de diferentes estratos sociais conviverem através da música é uma aprendizagem. Quando vim para Lisboa desliguei-me da música porque o curso de Medicina é muito exigente. Nos últimos anos tenho tido oportunidade de voltar a essa paixão. Comecei por integrar a Orquestra Mundial de Médicos, a World Doctors Orchestra, que trouxe a Portugal para fazer dois concertos. Reúne músicos de todo o mundo que ensaiam e fazem concertos de beneficência. Já toquei nos Estados Unidos da América, Holanda e Austrália. Sou percussionista e também toco piano. Recentemente ajudei a fundar a Orquestra Médica Ibérica com o meu grande amigo Sebastião Martins. Aproveito para divulgar que a 6 de Setembro vamos tocar na Aula Magna, em Lisboa.
Tomar é a cidade monumento do Ribatejo?
É a cidade mais bonita do mundo. É o umbigo do mundo como disse Umberto Eco.

Um homem de família que tem na música e na medicina as suas grandes paixões

Bernardo Duque Neves nasceu a 16 de Março de 1987 em Lisboa, mas foi em Tomar que cresceu e viveu até regressar à capital do país para ingressar na Faculdade de Ciências Médicas, na Universidade Nova de Lisboa. A medicina sempre fez parte da sua vida. É filho de António Duque Neves, conceituado médico cardiologista que trabalhou durante décadas no Hospital de Torres Novas. A música, tal como a medicina, é outra das suas grandes paixões. A sua mãe, professora de música, incentivou-o a fazer parte da banda filarmónica da terra, actividade que mantém ao fazer parte da Orquestra Mundial de Médicos e tendo ajudado a fundar a Orquestra Médica Ibérica com um dos seus grandes amigos. Casado com Rita Piedade Silva, também médica, é pai de três filhas e garante que nunca as vai influenciar a seguir a sua profissão porque o dever dos pais é garantir ajuda a escolher aquilo que as faz feliz.
Depois do curso de Medicina, Bernardo Duque Neves fez o Internato nos hospitais centrais de Lisboa. Em 2013 entrou para o Internato de Medicina Interna no Hospital da Luz, onde ainda se mantém, actualmente com o estatuto de um dos clínicos mais respeitados da instituição. Está a terminar um doutoramento em Engenharia Biomédica, na vertente da análise dos dados em Saúde, para desenvolver ferramentas que ajudem os médicos a tomar melhores decisões.
Bernardo Duque Neves não gosta de dizer quantas horas trabalha por dia, mas reconhece que são muitas. Gosta de ouvir os pacientes e falar com eles, e não tem dúvidas de que um bom médico é aquele que tem tempo para ouvir e compreender os problemas das pessoas. Reconhece que a sua profissão se modificou nas últimas décadas, muito por culpa da burocratização do acto médico que dificulta a prática da medicina.
Assume que o vencimento do médico está muito abaixo das expectativas e que é importante solidificar e melhorar as condições da carreira. Para Bernardo Duque Neves as doenças crónicas são o grande problema na Saúde actualmente e afirma ser essencial apostar na sua prevenção, nomeadamente combatendo o sedentarismo e adquirindo hábitos de vida saudáveis.
Embora a medicina se baseie na ciência, reconhece que a sua tomada de decisão do médico também é intuitiva. Bernardo Duque Neves diz que o contacto médico-doente tem um lado emocional e é muitas vezes terapêutico e que os profissionais de não devem existir apenas para pedir exames, dar diagnósticos ou prescrever medicamentos.

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