José Veiga Maltez: médico, autarca, defensor do mundo equestre, que detesta o espírito provinciano

Personalidade do Ano Vida - José Veiga Maltez
José Veiga Maltez tem uma vida recheada de episódios, entre a rebeldia e o pragmatismo. Um quarto de século passou-o na vida autárquica, tendo elevado a Golegã a capital nacional do cavalo e tornou-a uma referência mundial do mundo equestre. Foi presidente de câmara cinco vezes e presidente da assembleia municipal uma vez. Está vacinado dessa vida, recusando falar sobre política local, e dedica-se à sua paixão pelos cavalos, dirigindo a Associação Nacional de Turismo Equestre, e fazendo algumas excentricidades como pegar na mota e andar quatro dias sem destino. Diz que será médico toda a vida, atende quem o procura com problemas de saúde seja na associação, na rua ou à mesa do restaurante e intercede por quem precisa de um tratamento urgente. Do que já fez na vida, elege como o seu maior feito ter salvado quem estava à beira da morte.
Dá-se melhor com pessoas de sangue azul ou pessoas do povo?
Fui habituado a lidar com toda a gente. Para mim o importante é as pessoas poderem dar-me o que gosto de receber, que é a fraternidade, a amizade e sobretudo a partilha das nossas vidas e do que pensam e sentem, porque sou um observador, espectador e interveniente.
Cresceu num “berço de ouro” e sendo de uma família importante, a sua educação deve ter sido muito rígida.
Foi rígida e com disciplina. Passei a minha infância em Lisboa e os fins-de-semana e férias eram na Golegã. Não era rapaz de fazer asneiras e dava-me com todos os miúdos, jogava ao berlinde, fazia as tropelias normais. O que me era exigido era chegar a horas, não fazer coisas que fossem contra os valores sociais, de resto tive alguma liberdade.
Atendendo à sua educação, como é que vê os valores da sociedade?
Há ausência de princípios e de valores que são importantíssimos para a sociedade ser mais saudável. Isto tem a ver com a falta de responsabilidade. A liberdade e a responsabilidade devem conviver e nós devemos saber os nossos limites e não ultrapassar a órbita gravitacional dos outros, respeitando o espaço, os ideais e as ideias dos outros.
Quem é a pessoa mais importante na sua vida?
Não há uma pessoa importante, há muitas importantes. Com humildade, digo que são aqueles que me deixaram ser quem eu fui e quem sou, sobretudo a corroborar a idiossincrasia do concelho da Golegã, histórico-cultural e identitária. A minha família é a primeira importância da minha vida, que é quem sustenta a minha forma de ser que não é fácil, umas vezes mais rebelde, outras, mais pragmática. Indiscutivelmente os meus pais são os mais especiais, porque deram um fruto que não é amargo, mas às vezes agridoce.
Sente-se um excêntrico?
Sou um excêntrico com limites, fujo muito da rotina e gosto muito das minhas excentricidades porque isso é que completa o dia-a-dia.
Qual foi a excentricidade que mais gostou?
Não sei se é uma excentricidade, mas foi óptimo sair durante uns meses para fazer um Interrail e fazer a minha vida sossegado, sem ligar a ninguém e foi melhor ainda por não haver telemóveis nessa altura.
E actualmente que extravagância gostaria de fazer?
Responderia se tivesse tempo (risos). Mas aos 68 anos é não ter de ligar a limites nem controlos, nem paredes e muros. Depois do meu percurso, quando se chega a esta idade, já não estamos reféns da crítica negativa se quisermos fazer algo fora do corrente.
Apetece-lhe por vezes fugir?
Imenso! Há uma fuga que tenho permanentemente, que é uma fuga de espírito. Apetece-me sempre fugir fisicamente, mas estou sempre refém do sítio onde vivo, onde fui criado, das minhas raízes, daquilo que me envolve. Por isso, se fugisse, seria sempre temporariamente.
Não consegue deixar de ter a vida que tem porque tem medo?
Primeiro é preciso ter coragem para sair da zona de conforto. Em segundo não poderia fugir definitivamente porque há determinadas coisas que me fazem muita falta, que estão nas minhas vivências. Era incapaz de quebrar esta minha maneira de viver, sentir e de estar.
Para uma pessoa viajada, não conseguir sair da Golegã não é provincianismo?
Adoro a província, mas detesto o espírito provinciano. Portanto, de provinciano não tenho nada, apenas prefiro estar fora dos centros cosmopolitas.
Qual é o seu maior prazer?
Tenho vários prazeres, como estar sozinho, apesar de detestar a solidão que é uma coisa que me assusta. O maior prazer é viver a vida como sinto que devo viver. Gosto de andar de moto e partir três ou quatro dias sem destino. Gosto de viajar e estar com as pessoas que dão gosto em estar com elas.
Acha que vai conseguir ficar conhecido na Golegã como um exemplo de vida?
Gostaria de ficar como sendo uma pessoa de referência para alguns, mas sobretudo gostaria de ficar como um presidente de câmara que para muitas pessoas deixou saudades. Isso para mim é o mais importante. Acredito que as gerações que me acompanharam, as crianças que visitei nas escolas e os adultos a quem resolvi situações importantes para eles e para a comunidade, se vão lembrar de mim.
Gostaria de ter uma estátua na sua terra?
Detesto, sempre detestei, homenagens póstumas, e uma estátua não me interessa nada. Prefiro que as pessoas reconheçam o meu trabalho em vida. Só os que têm falsas modéstias é que não gostam de ser reconhecidos. Se eu dissesse que não gosto de ser reconhecido estou a mentir a mim próprio e aos outros. Sensibiliza-me que as pessoas sejam gratas e reconheçam. As pessoas têm sempre uma necessidade de minorar o que fizeram, mas continuo a ter um respeito imenso por mim próprio e isso faz-me muito mais forte.
Como é que se sente quando as pessoas lhe prestam vassalagem, quando o tratam como se fosse o rei da Golegã?
Na realidade às vezes sou tratado dessa forma. Mentia se dissesse que não sentia que isso por vezes acontece. Mas isso nada me eleva, ou me transpõe para outra área. Mas também tive de vencer obstáculos. A família de onde venho, o médico que sou e o presidente da câmara que fui é um obstáculo. Para mim isso não foi coisa boa porque há pessoas que não gostam, que conspiram contra isso. Sou alvo fácil para motivo de inveja e de desdém.
Quantas vezes já sentiu que ajudou pessoas que não mereciam?
Senti algumas vezes. Sei o que dei às pessoas e sei que houve pessoas que não mereceram. Também sei o que dei à comunidade. Mas também senti muitas vezes a gratidão e reconhecimento. Uma ou outra vez também senti que algumas pessoas me podiam ter ajudado em algumas questões e não o fizeram porque não quiseram. Detesto a mediocridade, pugnei sempre pela excelência. Hoje a câmara e o concelho são muito exigíveis e não basta para ser presidente ser uma pessoa útil. Enquanto cá estive ensinei as pessoas da comunidade a serem exigentes, a pugnarem pela excelência e a fazerem diferente.
Acompanha o actual mandato autárquico? Como é que reage ao que vai sendo feito?
Muitas pessoas me perguntam o que acho do novo executivo autárquico. Não se ouviu uma opinião minha, não se viu algo escrito sobre o mandato. Acho que é uma questão de educação e de respeito. As pessoas foram eleitas e o tempo é deles porque foram os munícipes que os puseram lá. Os portugueses vivem muito a glória do passado, mas o passado só tem interesse se for um estímulo para o presente e uma referência para o futuro. O que nós fizemos na câmara deveria ser mantido, melhorado e ampliado.
Ainda sente o chamamento da vida autárquica?
Já não durmo com a câmara, já não adormeço nem acordo com a câmara, mas com algo que me confrange, que é as coisas não serem feitas como eu gostaria que continuassem a ser feitas. Mas compreendo que as pessoas são diferentes e são elas que fazem os cargos e não o contrário. Para mim a câmara acabou em 2021. Se o voto fosse obrigatório tinha ganho as eleições, não tenho dúvida alguma. Muitas pessoas não foram votar porque deram a minha vitória como um dado adquirido.
Na altura, quando perdeu as eleições, disse que a Golegã tinha sido madrasta. Já perdoou?
Perdoar, perdoei, mas não esqueço as pessoas que elevei e dignifiquei e que foram as primeiras a apunhalar-me. Estas pessoas cometeram aquilo que considero a pior traição, revelando uma ingratidão de espírito. Houve uma conspiração contra a minha pessoa por parte de pessoas que me queriam retirar do cargo, pessoas que coloquei como chefes ou com responsabilidades em várias áreas, que até à última fizeram-me crer que era a pessoa ideal e que me traíram, fazendo com que passasse de bestial a besta.
O que é que mudou na sua vida ao desvincular-se totalmente da vida autárquica?
Hoje a minha vida é tranquilíssima e não me sinto obrigado a fazer coisas, porque quando estamos em cargos de responsabilidade há coisas que temos de fazer mesmo não gostando de as fazer. Dependo de mim próprio e não me interessa nada a opinião dos outros sobre mim e sou uma pessoa livre. Quando estamos num cargo como o de presidente da câmara temos que contar muito com a opinião dos outros e detesto isso. Nisso sou egoísta e narcísico, porque gosto muito da minha opinião.
Do que é que tem mais saudades?
Da minha parte criativa para novos espaços e cenários, que era o que eu gostava no dia-a-dia. Havia sempre qualquer coisa para mostrar de novo.
Como é que quer ver o concelho da Golegã nos próximos tempos?
A respeitar a sua história, a sua cultura e a sua identidade. E progredir unindo a tradição à modernidade, como fiz sempre questão.
Sente-se a pessoa mais importante da sua terra?
Nós somos o que os outros querem e nos deixam ser.
O homem irreverente que fez obra na Golegã e gosta de ser reconhecido como médico
A medicina e os cavalos estão na vida de José Veiga Maltez como se fizessem parte do seu corpo. O ex-autarca da Golegã, homem irreverente, que não presta vassalagens, ignorando as máquinas partidárias, dizia que autarca seria enquanto o povo quisesse, mas médico será sempre. Não tem paciência para retóricas que levam a nada e admite ser uma pessoa polémica.
Licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade Clássica de Lisboa desde 1981, ganhou a Câmara da Golegã nas eleições de 1997 e dirigiu o concelho até 2013 quando a lei de limitação de mandatos o impediu de se candidatar. Fez quatro anos como presidente da assembleia municipal e voltou presidir à câmara de 2017 a 2021. Não se mete na vida autárquica, nem comenta as decisões do actual executivo de independentes. Nunca foi militante partidário, apesar de ter sido eleito com o apoio do PS. O chamamento para a vida autárquica estava-lhe no sangue porque o seu avô e o tio foram presidentes do município e o trisavô foi vereador. Conseguiu o feito político raro de liderar um executivo monocolor, sem eleitos da oposição no mandato de 2009 a 2013.
José Veiga Maltez, nascido em 1956, é o presidente da Associação Nacional de Turismo Equestre, onde passa algum tempo a desenvolver iniciativas de promoção do sector e promoção da arte equestre, da Golegã e do país. É também na sede da instituição que atende os conterrâneos que precisam da sua experiência de médico, tal como fazia no seu gabinete de autarca.
Enquanto autarca proclamou a Golegã como “Capital Portuguesa do Cavalo”, criando o primeiro picadeiro coberto, o Centro de Alto Rendimento de Portugal para Desportos Equestres e o Equuspolis com uma componente mais ligada às artes e à ciência. Conseguiu que as escolas do concelho incluíssem a Equitação como complemento curricular. Foi durante a sua presidência que surgiu a ExpoÉgua, uma feira que rapidamente atingiu uma expressão internacional, seguindo-se a Romaria de São Martinho e a Feira Internacional do Cavalo Lusitano.
José Veiga Maltez estudou no liceu público em Lisboa, onde os pais tinham casa, e não num colégio como os seus amigos, porque o pai entendia que ele tinha de estar com as pessoas simples com quem teria de lidar no futuro. Começou a exercer medicina em Lisboa, às vezes substituindo o pai que também era médico, e diz que não tem jeito para ganhar dinheiro, chegando a ajudar pessoas que não tinham condições para pagar a consulta. Para o também proprietário agrícola e criador de cavalos o que se pensa à noite é para começar a fazer de manhã.