Inestética é mais que um projecto cultural: é um grupo que gosta de reinventar a arte e agitar pessoas

Personalidade do Ano Cultura - Inestética
Em vila Franca de Xira a Inestética é mais que uma produtora de espectáculos culturais que agita o meio cultural fora de Lisboa, mostrando que é possível desenvolver projectos irreverentes onde até a ópera ou a dança podem ser manifestações acarinhadas pelo público. Com a direcção artística de Alexandre Lyra Leite ele próprio fundador da companhia em conjunto com um grupo de amigos que pensa a arte para além dos conceitos tradicionais, a Inestética é um meio de desafiar convenções e explorar novas linguagens. O sonho do fundador e de quem com ele eleva a cultura é transformar a companhia numa fundação para lançar artistas emergentes.
Qual é que foi a necessidade de criar o projecto Inestética?
O projecto surgiu de forma muito natural porque um grupo de jovens de Vila Franca de Xira sentiu necessidade de agir culturalmente sobre a cidade. Informalmente, nos cafés que frequentávamos, eu e amigos com interesses, comuns pela cultura, de forma irreverente mudámos o panorama cultural da cidade. Nos anos 90 abanámos a prática teatral. Inovámos e promovemos massa crítica em relação ao que é a prática artística contemporânea.
A Inestética tem tabus?
Nunca senti qualquer tipo de autocensura ou limitação por questões externas. Sempre tive total liberdade criativa e não sinto tabus. Todos os assuntos são potencialmente interessantes para serem tratados do ponto de vista performático. Mas a matriz da Inestética é a poesia, a semente de tudo o que acontece. Somos um projecto multidisciplinar. Fazemos teatro, ópera, performances, produzimos eventos de dança, com artistas muito distintos, que vêm de diferentes áreas.
Tem memória da peça mais polémica?
A performance mais inquietante que fizemos chamava-se “Confort Zone” e foi estreada num momento em que perdemos apoios financeiros. Vimo-nos numa encruzilhada em que o projecto podia ficar por ali. Mas a estreia da peça onde partíamos ovos na cabeça de actores acabou por ser um sucesso e foi vendida a uma série de festivais, fez um circuito nacional de apresentações. Isso demonstra que muitas vezes a energia dos momentos mais difíceis pode ser catalisadora de algo pertinente.
Quais eram as reacções que vos chegavam dos espectadores?
A peça tinha um certo jogo de humilhação consentida e muitos espectadores vinham falar comigo no final do espectáculo e diziam que se sentiam assim quando iam para o trabalho. Agradeceram-nos porque conseguimos materializar de forma artística o que sentiam quando eram ultrapassados pelos outros. Curiosamente esta foi uma das peças mais minimalistas, com menos meios.
A gestão financeira é mais difícil do que produzir espectáculos?
O apoio do Estado é fundamental para a expressão cultural de um país. Se nos rendermos a objectos artísticos que só têm como objectivo principal a questão comercial estamos a espartilhar a arte que se produz. Uma ópera é um espectáculo bastante caro porque temos músicos ao vivo, cantores líricos, compositores, uma equipa artística. Se cobrássemos aos espectadores o preço de um bilhete que pagasse a produção seriam caríssimos e estaríamos a limitar o acesso a uma elite com capacidade financeira. O apoio do Estado serve para que não se discrimine espectadores.
A Inestética tem um público específico?
Pela nossa irreverência e pela dimensão experimental a Inestética assume-se como um projecto que preenche lacunas na oferta. Não é institucional, é uma oferta que tem maior risco artístico. Mas temos sido cada vez mais abrangentes e vamos desde ciclos de jazz a dança contemporânea, ópera e outras performances. Somos abrangentes para diferentes nichos de público. Não somos um projecto que agrada a toda a gente, nem temos essa pretensão. Mas temos tido cada vez mais público e isso quer dizer que a vertente alternativa atrai muita gente.
A maior parte do vosso público é da Área Metropolitana de Lisboa. A população de Vila Franca de Xira não dá valor à Inestética?
Pagamos a factura de estarmos colados à capital. Vila Franca de Xira tem pouca massa crítica. Há uma falta de cultura e hábitos de fruição cultural e afastamento das novas linguagens, que não é de agora. Vila Franca de Xira cristalizou enquanto cidade. A nossa missão é tentar expandir essa massa crítica para que as pessoas não fiquem satisfeitas com espectáculos mais fáceis de entender e se desafiem a ver coisas diferentes.
Quer dizer que não têm concorrência?
A nível da produção de ópera contemporânea somos uma estrutura de referência a nível nacional. Somos precursores de um formato de ópera de câmara inspirado em poesia. Já fizemos óperas a partir de Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e Edgar Alan Poe. Prova disso foi a nossa participação no Festival de Ópera do Porto.
O que dá mais trabalho realizar?
As óperas que produzimos porque envolvem muitas pessoas. Uma equipa que pode ir até cerca 20 artistas, muitos ensaios, um trabalho rigoroso e exigente do ponto de vista artístico. Envolve dança, canto, linguagem teatral, composição de novas óperas que podem demorar entre seis a nove meses, no minino, a compor.
Em que se inspira para os projectos?
Muitas vezes vou buscar inspiração à poesia, a poetas que vou descobrindo ou que me acompanham desde a juventude. As temáticas a abordar têm sempre a ver com o mundo em que vivemos e ao nosso estado de espírito. Depois de ter sido pai algo se transformou nas minhas preocupações e escolhas. Quando tinha 20 anos os autores que escolhia para trabalhar eram diferentes dos que escolho hoje. A maturidade que fui alcançando ao longo dos anos leva-me por outros caminhos.
O teatro físico e o teatro digital fazem sentido coexistir ou complementarem-se?
O nosso trabalho é muito tecnológico. O facto de eu ter estudado cinema é uma das características que marca o meu trabalho enquanto encenador. As produções são muito visuais. Essa dimensão visual e estética não recusa a utilização dos meios digitais. Na última ópera as imagens do cenário foram geradas por Inteligência Artificial, que pode ser usada enquanto ferramenta, tal como o software para controlar as luzes e som. Não temos nada a temer, porque a Inteligência Artificial não vai conseguir substituir um cantor ou um bailarino.
Disse que não escrevia peças deste 2016. Já recomeçou a escrever?
Tenho escrito libretos para as óperas a partir de poemas que selecciono. Textos originais deixei de escrever há alguns anos porque o meu trabalho é mais coreográfico e visual, o que significa que o texto aparece menos nas últimas produções. Agrada-me sempre regressar a uma série de autores como Franz Kafka, Baudelaire ou Edgar Alan Poe. Não tenho tido a vontade de escrever textos teatrais convencionais como escrevi até determinada altura.
O que implica o vosso trabalho diariamente?
A Inestética tem um plano que foi criado para a candidatura que fizemos à Direcção Geral das Artes e fomos avaliados positivamente. Isso implica termos, no mínimo, duas criações novas por ano e eventos nas mais diferentes áreas da formação. Por ano produzimos o único festival de dança contemporânea do concelho de Vila Franca de Xira, o Dança Invisível. De dois em dois anos produzimos o Speak Low, ciclo de Jazz, e produzimos regularmente o Imagina, festival dedicado ao público infantil, entre outros eventos em que convidamos artistas nacionais e internacionais. Temos um programa de residências artísticas no Palácio do Sobralinho, editamos livros e as óperas que produzimos. É um trabalho diversificado e para uma equipa de cinco pessoas por vezes estamos assoberbados em trabalho.
Alguns autarcas criticaram o uso do Palácio do Sobralinho por parte da Inestética. Como vê essas críticas?
É uma falsa questão porque quando a Inestética foi convidada a dinamizar o palácio não havia praticamente nada a acontecer. A ideia era precisamente dar vida a um património que estava de alguma forma esquecido e tanto lhe demos vida que o colocámos no mapa. Por isso é que muitos dos nossos espectadores acabam por contactar a camara para fazer alugueres de espaço. É óbvio que se estreamos aqui uma ópera e sendo o nosso espaço de residência artística temos que ensaiar aqui. Isso são questões do foro político e não correspondem à realidade. Os cidadãos que querem alugar o espaço têm acesso, excepto as datas que constam na nossa programação e aí achamos que estamos a contribuir com cultura para o nosso concelho.
Como escolhe a sua equipa?
Muitos é por afinidades artísticas, construídas ao longo dos anos. Há uma série de intérpretes que volto a convidar porque gostei de trabalhar com eles. Fazemos castings e audições e seleccionamos pessoas dessa forma para não nos fecharmos. A Joana Pais de Brito, por exemplo, uma comediante conhecida, veio às nossas audições, entre outras que tiveram um percurso fulgurante e que começaram em produções nossas.
Nunca se aventurou no cinema e televisão?
Gosto muito mais de espectáculos ao vivo. Sou um fã de cinema, mas sinto que me realizo mais em estar a trabalhar um espectáculo durante vários meses e sentir noite após noite a adrenalina de receber o público e ver a reacção das pessoas. O meu trabalho implica a prática videográfica. Eu filmo e edito. Essa dimensão está presente no meu trabalho.
ESCOLAS DEVEM OLHAR PARA PROJECTOS ALTERNATIVOS
As escolas deviam ter um papel mais activo, para fomentar o gosto pelo teatro?
Existem projectos mas são tímidos. Noutros países as artes têm um papel mais forte que o nosso. Existem núcleos de teatro nas escolas, algumas idas ao teatro, mas acho que deviam ampliar a oferta e não só levar os alunos a ver Gil Vicente, mas projectos alternativos e outras linguagens. Ainda há um caminho a fazer relativamente à dimensão da arte na formação individual. O Ministério da Educação devia ir mais longe.
Já teve uma crise existencial e pensou ir para outro projecto?
Nunca porque não me consigo imaginar a fazer outra coisa. Encontrei o meu lugar no Mundo e o trabalho que tenho vindo a desenvolver é o que me realiza enquanto pessoa e criador. Estou absolutamente seguro disso.
O que perspectiva para o futuro da Inestética?
Espero que continue o seu percurso como tem vindo a fazer até agora, de forma sustentada, arriscando e conseguindo alcançar os meios para que o trabalho possa acontecer. A distinção que O MIRANTE nos confere é bastante importante porque demonstra o reconhecimento da sociedade em relação ao nosso trabalho. Isso torna o trabalho pertinente porque se não fosse, ninguém falaria dele nem ninguém iria ver.
A Inestética pode existir sem o Alexandre Lyra?
Confesso que um dos sonhos que tenho é deixar um legado. Que a Inestética viesse no futuro a ser uma fundação e que pudesse apoiar novos artistas. Se tivermos um sonho e sentirmos que encontrámos a nossa missão, isso dá-nos uma grande força interior. Gostava de deixar uma marca de um projecto que sempre foi irreverente e que questiona os tempos que vivemos.
A primeira companhia profissional do concelho de Vila Franca de Xira
A Inestética foi fundada em 1991 por Alexandre Lyra Leite e um grupo de amigos com diversos interesses culturais. A companhia tem vindo a produzir projectos multidisciplinares que privilegiam uma abordagem contemporânea e experimental, com uma forte componente autoral, nas áreas do teatro, ópera e performance. A estrutura artística residente no Palácio do Sobralinho iniciou em 2013, com o apoio do Município de Vila Franca de Xira, um projecto de programação cultural, com o objectivo de estimular a criação artística e o acesso da comunidade a espectáculos e eventos culturais de qualidade, nas áreas da música, teatro, ópera, dança, literatura, gastronomia, artes visuais, cinema e performance.
Entre 2006 e 2012, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, desenvolveu actividade no espaço Inestética Lounge, em Vila Franca de Xira, especialmente vocacionado para a promoção de projectos artísticos emergentes e de natureza pluridisciplinar. Em 1998 tornou-se a primeira companhia profissional do concelho de Vila Franca de Xira, tendo produzido mais de quarenta e cinco espectáculos, alguns dos quais apresentados em festivais nacionais e internacionais.
A Inestética promove ainda a realização regular de workshops e um programa de residências artísticas para novos criadores e é uma estrutura financiada pela República Portuguesa – Cultura, Direcção-Geral das Artes, Câmara de Vila Franca de Xira e União de Freguesias de Alverca do Ribatejo e Sobralinho. A companhia é composta por uma estrutura fixa de cinco pessoas e anualmente contrata cerca de 40 profissionais entre actores, cantores, cenógrafos, músicos, bailarinos, técnicos, compositores e figurinistas.
Alexandre Lyra Leite é o rosto da Inestética. Licenciou-se em Cinema, na Escola Superior de Teatro e Cinema, e estudou Produção e Gestão Teatral no Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral. É director artístico da companhia, autor, encenador e produtor. Em 1996 foi distinguido com a Placa de Mérito Cultural da Cidade de Vila Franca de Xira. Casado com Rita Leite, co-directora artística e produtora executiva da Inestética, alimenta o sonho de um dia a Inestética poder vir a ser uma fundação para apoiar artistas emergentes.