Vítor Serrão: "O meu pai sempre me acompanhou e incentivou. Era uma formiguinha a trabalhar"

Vítor Serrão, 72 anos, é filho de Joaquim Veríssimo Serrão, e formou-se em História da Arte graças aos conselhos do seu pai que o incentivou a estudar uma área na altura pouco explorada na cultura portuguesa a partir das universidades. É o próprio que o confessa numa entrevista a O MIRANTE na casa de seu pai, às portas de Santarém, que herdou e que agora habita a tempo inteiro.
Vítor Serrão aceitou falar do centenário do nascimento do seu pai e do que pensa da sua Obra. Sobre o trabalho da actual direcção do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão não quis tecer comentários porque diz respeitar o seu principal responsável e que é a sua irmã, Adriana Serrão, que trata directamente os assuntos, e que só comparece a algumas reuniões quando é solicitado.
A conversa começou pela relação entre pai e filho e a resposta veio pronta. "Era um grande homem. Creio que nunca magoou ninguém deliberadamente. Gostava muito da polémica mas era parte da sua vida intelectual. Foi um homem que também lutou a partir de baixo. Eu olho para mim. Nasci no meio de livros. Tive um pai que em pequenino me levou a Toledo ao Louvre, pude viajar com ele, empurrou-me literalmente. Ena pá, tens aqui um caminho, não há ninguém a trabalhar a história da arte em Portugal. Foi ele que me empurrou aos 20 anos. Tenho também um preito de gratidão por um pai que foi também um Inspirador. Depois houve as brigas que Freud pode explicar, também de rebelião em família, que é natural, como ele teve com o pai dele. Foram grandes brigas mas hoje muitas delas nem deixaram memória, como é normal”.
O seu pai é um Homem pouco valorizado e ainda censurado pelo meio intelectual.
É a política. O meu pai nunca foi um homem de direita. É um equívoco completo. Foi puxado pela extrema direita. Quiseram fazer dele um ícone mas escolheram a pessoa errada. A nível humano era único. Por causa da sua ligação a Marcelo Caetano foi abandonado por toda a gente, mas o que ele fez é muito bonito. O meu pai acreditou como tanta gente na reforma do Estado, na chamada primavera marcelista, mas falhou. E ele foi uma das vítimas.
O livro com as cartas trocadas com Marcelo Caetano no exílio e depois o relato das suas visitas noutro livro são documentos que jamais podem ser apagados da História dos tempos da Revolução de Abril. São livros que fazem falta nesta comemoração do centenário porque são os que estão em falta, e algumas partes foram censuradas.
Temos que esperar mais 20 anos para podermos publicar as cartas. Têm que ser publicadas na íntegra mas já não será no meu tempo.
Não há figuras de Estado na comemoração do centenário do seu pai em Santarém?
Pois não. Mas eu não posso responder por isso, não faço parte da organização. O que lhe posso dizer é que está previsto para Outubro, em Lisboa, um encontro com gente ilustre, de Portugal e de Espanha, onde haverá uma maior participação oficial de outras entidades.
O Centro de Investigação podia ter feito muito melhor?
Ao nível do trabalho feito só espero que no futuro haja uma nova dinâmica ao nível do tratamento da sua biblioteca de forma a ficar acessível a toda a gente. É uma biblioteca muito importante para quem estuda o regional e o local.
O Senhor e a sua mãe foram sempre de esquerda, ligados ao Partido Comunista, isso trouxe alguns problemas de relacionamento ao longo da vida...
Que sempre se foram resolvendo. Como já lhe disse o meu pai gostava muito de mim, nunca faltou, empurrava-me e estimulava-me, nunca deixou de comparecer a uma das minhas provas, de mestrado e doutoramento, entre outras importantes na minha vida.
O meu pai não era um radical de direita. Isso é o que querem fazer passar. Não esquecer que ele foi mandatário da candidatura de Cavaco Silva. E posso testemunhar que uma vez almoçou ao lado de Álvaro Cunhal e que ficou com boa impressão dessa conversa.
Conhece o espaço dedicado a Marcelo Caetano no Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro ? Como é que guarda a memória da ligação entre o seu pai e Marcelo Caetano?
Lembro-me daquele homem a pegar-me ao colo no comboio, quando íamos para Paris era eu ainda um miúdo. Um homem que ria muito. O meu pai era amigo íntimo, amigo do peito de Marcelo Caetano.
Que Marcelo também cultivava e retribuía fazendo elogios à Obra de seu pai e pedindo conselhos e expondo as suas amarguras e alegrias.
Verdade. Nunca deixaram de se acompanharem e de se respeitarem. Daí as "Confidencia no Exílio" e outros livros onde está muito da História de Portugal desses tempos conturbados que um dia têm que ser mais conhecidos. O meu pai esteve na greve académica antes do 25 de Abril, mas ninguém fala disso. Como abandonou o cargo de Reitor foi demitido pelo regime. O regime era horrível. Não vale a pena branquear.
A amizade do meu pai pelo Marcelo Caetano era muito bonita. A minha mãe chegou a ir ao Rio de Janeiro com ele.
Deve ter sido um grande desgosto para ele ser casado com uma mulher que militava no partido comunista?
Todos temos as nossas escolhas e acho que o meu pai respeitava isso embora pudesse não gostar.
Seu pai deixou algum testamento relativamente à forma como gostava de ver tratada a sua obra.
Deixou um pequeno texto que acompanha o legado à Câmara, em que explica "está aqui a minha vida". É um texto muito bonito.
Ainda podemos ter mais um volume da sua História de Portugal?
Não. O que ele deixou é uma caixa com apontamentos que não têm forma. Estão lá para um dia alguém investigar. Jamais poderão ser um volume que dê continuidade à sua História de Portugal. Quando foi para o Lar levou a máquina de escrever e ainda tentou acabar o volume 20, mas já não foi capaz.
Voltando ao Centro de Investigação, o Senhor está por trás da reestruturação que se adivinha e que tanto se deseja?
Não. A minha irmã é que acompanha. Estou mais envolvido porque vim morar para a casa do meu pai. Desde que me reformei e que a minha mãe morreu, vim viver para Santarém e, ironias da vida, vim parar aqui a esta casa. Colaboro. Vou às reuniões da Mátria, mas não me quero imiscuir.
Escreveu a História de Portugal como ninguém o tinha feito até agora.
É pioneiro a contar a História de Portugal a partir de baixo; valoriza a pequena comunidade, periferia, a conjuntura local, para depois dar a ver os grandes fenómenos. É um trabalho que nunca tinha sido feito. Ele era verdadeiramente uma formiguinha trabalhadora.