Entrevista | 10-12-2009 01:52
Lúcia Sigalho inspirou-se numa notícia e levou o tema da violência doméstica ao palco

A notícia sobre uma mulher assassinada pelo ex-companheiro à porta do local de trabalho foi o ponto de partida para uma peça de teatro. Lúcia Sigalho, uma encenadora com raízes ribatejanas, chamou-lhe: “E a mulher teve morte quase instantânea”. Uma alusão aos comentários que surgem quando a morte não tem justificação. Não são os polícias, as assistentes sociais ou juízes que resgatam as mulheres à tragédia, defende a encenadora. “Todos somos cúmplices destas mortes”.Leu no jornal O MIRANTE a notícia sobre uma mulher assassinada à porta do local de trabalho, no Vale de Santarém, em 2008, pelo ex-companheiro. E daí nasceu uma peça de teatro. Uma pessoa minimamente informada sabe que isto acontece. As organizações não governamentais divulgam dados com base nas notícias. A ideia surgiu-me quando estava a preparar um projecto novo. Encontrei um intérprete com um sentido trágico muito grande, que é o transformista Fernando Santos. Queria muito fazer um trabalho com ele sobre as questões do género. Pensei que isto não tivesse muito a ver, mas tem. Um homem quer transformar-se em mulher e nessa transformação transmite uma tragédia que é para lá daquilo que consigo perceber. Decidi falar sobre esta tragédia. A notícia foi o ponto de partida.Impressionou-me muito a maneira como aconteceu esta morte. O sítio, as circunstâncias. Ter o filho pela mão. Uma vida desfeita. Depois acabei por ouvir uma declaração do Francisco Moita Flores [presidente da Câmara de Santarém] que, para explicar que provavelmente ela não deveria ter sofrido, disse: ‘a mulher deve ter tido morte quase instantânea’. É uma linguagem de grande frieza, como a linguagem das autópsias. Pensei, pois, deve ter tido morte instantânea, mas quem era a mulher? De que cor eram os olhos dela? Este assunto faz-me imensa tristeza...E comove-se de cada vez que fala disso.Faz-me tristeza porque acho que é uma doença do nosso tempo. É um sítio de muita dor e sofrimento. Acho que nós todos – comunidade – estamos envolvidos. Resulta da nossa grande indiferença. Da tentação de acharmos que a dor do outro é para ser tratada por instituições especializadas e que quem sofre não é uma pessoa inteira. Quem está em aflição é tratado com um certo paternalismo para não dizer desprezo. Ninguém quer olhar para isto e perceber que isto acontece em todas as classes sociais. Também há mulheres que maltratam os seus namorados, mas a percentagem não nos deixa muita margem para a paridade. Porque é que isto continua a acontecer?Temos alguns dos melhores especialistas focados no assunto. Os estudos dizem que estes casos não caem do céu aos trambolhões. Normalmente correspondem a um historial de maus-tratos anterior que não é valorizado e que é tratado pela rede de suporte daquelas mulheres como um falhanço delas. Não é valorizado por elas que não querem dar-se por vítimas e não é valorizado pelas pessoas à volta porque acham que é falta de capacidade delas de gerir uma relação. Tem a ver também com padrões pré-estabelecidos sobre qual é o papel da mulher e do homem. Há tempos houve um assalto a uma ourivesaria no centro de Santarém. As pessoas ficam alarmadas. Veja agora a reacção quando um homem dá um tiro na mulher. A comunidade retrai-se. O que me faz muita confusão é que esse silêncio significa coisas muito más.Leia a entrevista completa na edição semanal de O MIRANTE que sai à quinta-feira.
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