Treinou Vilafranquense, juniores do Benfica e Centro Desportivo de Fátima. Aos 40 anos, Rui Vitória, vai orientar pela primeira vez um clube do escalão principal do futebol português. Paços de Ferreira é o próximo desafio do alverquense, que tem tido uma ascensão meteórica e consistente. A sua saída do Fátima gerou polémica mas o técnico diz que a verdade “não é aquela que vem nos jornais” e acredita que ficará na história do clube ribatejano. Segue de malas e bagagens para o Norte, facto que o vai impedir de continuar a leccionar na escola Gago Coutinho em Alverca. Quando é que começa a sua carreira como treinador?Aos 32 anos. De uma forma sui generis. Na altura era jogador do Alcochetense e num domingo à noite recebo o convite para treinar o Vilafranquense. Anteriormente já tinha havido uma abordagem para, no futuro, ser o treinador da equipa de Alcochete. Nessa noite decidi terminar a minha carreira como jogador e optei por ser treinador. Treinei a última vez numa segunda-feira e iniciei a minha vida como treinador na terça. A 1 de Outubro de 2002, sem nenhuma experiência como técnico, comecei a treinar o Vilafranquense, que estava na segunda divisão nacional. Esteve lá quanto tempo?O resto dessa época e a seguinte. Na altura o clube atravessava graves dificuldades financeiras. Havia vários ordenados em atraso. Foi muito difícil gerir toda a situação. Lembro-me de ter dito, nessa ocasião, que já estava a fazer um estágio para quem quer ser treinador. Levar com tudo aquilo logo no primeiro ano como técnico, não foi tarefa fácil. Confrontávamo-nos com problemas diários, mas ao mesmo tempo íamos dando resposta dentro de campo, a cada domingo que passava. Apesar de complicado, foi igualmente uma enorme lição de vida. Foi a partir daí que comecei a trabalhar uma das minhas paixões. A parte mental, os aspectos psicológicos. Acha que é aí que reside a diferença?O treinador tem de ter a capacidade de tomar decisões, em função do contexto em que está inserido. O mesmo exercício, que tenha sido bem sucedido no ano anterior, num determinado cenário, noutro contexto pode não resultar. E aqui, quem faz a diferença, são os treinadores. Pode-se ser engraçado e atractivo para os jogadores e imprensa. Hoje fazem-se inúmeras coisas para se agradar e criar mediatismo. Agora ter efeitos com isso, já é outra questão. Esse é o papel do treinador. Perceber o que está em causa. O que é preciso mexer. Associo muito a tarefa do treinador ao trabalho do cozinheiro: às vezes tem que por mais sal ou mais pimenta; misturar ali, retirar acolá, para aquilo sair bem, o que nem sempre acontece. Põe-se a medida exacta, mas às vezes é a olho. Vai-se cheirando, sentindo... Mas não há uma receita mágica.E depois do Vilafranquense?Fui treinar a equipa principal dos juniores do Benfica. Estive lá dois anos. Saí e fui treinar o Centro Desportivo de Fátima, onde estive durante quatro anos.Que análise faz da sua carreira como treinador?Chego à conclusão que sou um privilegiado. Todos os passos estão a ser dados de uma forma muito segura e consistente. As coisas não foram feitas à toa. Passei por variadíssimas situações que foram fundamentais para a minha formação enquanto treinador. Primeiro, as dificuldades de um clube amador cheio de problemas. Depois o conhecer a realidade de um clube como o Benfica. Aí, tive a oportunidade de contactar com outras equipas, culturas, formas de estar e jogar bem diferentes. Pude conhecer como é que pensam os jogadores vindos da formação a este nível e perceber as suas expectativas em relação ao futuro. No Fátima competi a um nível profissional de uma segunda divisão nacional. Em todas as experiências retirei ilações. Não sei se atingirei os objectivos – esperemos que sim – mas sinto-me preparadíssimo e sem qualquer receio de enfrentar o futuro. Os problemas que possam surgir, vejo-os como oportunidades para fazer melhor. Essa é a minha melhor motivação neste momento.Entretanto surgiu o convite do Paços de Ferreira…Sim. Na lógica de aproveitar as oportunidades, decidi que este era o timing certo para abraçar um projecto desta dimensão. Enquanto jogador não as aproveitei, porque estava na faculdade e havia aquela indefinição quanto ao meu futuro. Aqui, achei que era uma boa altura para arriscar. Para ver se tenho capacidade ou não. Se não funcionar, não funcionou. Mas não queria que ficasse comigo a sensação de que podia ter aproveitado e não aproveitei. E neste caso tive a oportunidade, vou aproveitá-la e agarrar-me, como sempre fiz. No fundo, vou experimentar o que é a carreira de treinador a sério num clube como o Paços de Ferreira. Estou muito satisfeito.É um sonho concretizado?Nunca fui muito de sonhos. Sempre disse aos meus pais, que tomara eu ter uma equipa de juniores para treinar. Por isso…Mas não tinha essa ambição?Tenho toda a ambição. Agora também tenho as minhas expectativas controladas. Porque a vida de treinador é muito flexível. Há muitos técnicos no mercado e tão depressa se chega a um clube para treinar, como de um momento para o outro se desaparece do mapa com muita facilidade. Treino em qualquer lado e qualquer equipa, seja em que divisão for, com a mesma dedicação, entrega e paixão, com que comecei a treinar e como vou treinar agora o Paços de Ferreira. Isto não é um objectivo como uma meta, mas sim uma etapa. Confesso que sinto um prazer normal e igual ao de uma pessoa que vá trabalhar para outra equipa. Encaro isto com muita naturalidade. E se as coisas correrem mal?Se tiver que subir subirei. Se tiver que descer, descerei. Quando digo descer – se bem que às vezes os desafios num escalão inferior até podem ser bem mais aliciantes – se tiver que voltar atrás, voltarei. Se for preciso ficar em casa a tomar conta das minhas filhas, ficarei com todo o prazer. Em todas as situações arranjo motivações e forma de estar de bem comigo mesmo. É assim que vejo as coisas e não abdico desta forma de pensar. Não vale a pena ter ambições desmedidas. É fundamental e defendo cada vez mais a auto-regulação. Que é o atingirmos objectivos difíceis pela capacidade de nos auto-regularmos. Saber qual é o nosso caminho, o nosso lugar e manobrarmos a nossa viatura conforme a nossa vontade. O importante é nunca saírmos do nosso caminho traçado. Isto é, não serei tão bom quando ganho, nem muito mau quando perco. Esta auto-regulação mete-nos balizados. É essa a minha filosofia.“Fico na história do Fátima e o clube fica na minha história como treinador”Tinha um acordo verbal com o Centro Desportivo de Fátima para continuar na próxima época?Não vou entrar em situações de debater o que quer que seja sobre essas questões. Sei que as pessoas têm vindo a falar. O que posso dizer é que as coisas não são exactamente assim.Então?Sobre essas questões não vou mesmo falar. Já escrevi a muita gente através de mensagens pessoais, que o Centro Desportivo de Fátima foi, é e será sempre um clube fundamental e importantíssimo na minha carreira. Esteja eu no futuro mais acima ou mais abaixo. Queira-se ou não, eu e o Fátima estivemos ligados durante 4 anos. Com êxitos, muitos sucessos e um trabalho que foi do agrado das duas partes. Marcámos uma posição. Eu fico na história do clube e o clube fica na minha história como treinador. Isto é clarinho como a água. Sobre o que se passou, não vou entrar em discussão em relação a conversas. A última coisa que quero é entrar em divergências seja com quem for, por respeito a toda a gente e ao clube. O melhor é deixar as coisas rolarem.Como reage às críticas do presidente do Fátima que são públicas?É uma situação normal no futebol. Que eu não quero sequer comentar. Na vida há sempre diferentes formas de vermos as coisas. E as duas às vezes com razão (repete a frase). Para muita gente, um treinador que está sentado no banco a olhar para o jogo, é um indivíduo que não se mexe e não dá indicações. Para outros, aquele treinador é cerebral. Está a pensar e nem sequer perturba os jogadores. E as duas partes têm razão. Isto acontece em muitas situações da nossa vida. São opiniões e formas de estar. Não entrarei por aí. Acima de tudo quero ser feliz e gostava muitíssimo que o Centro Desportivo também o fosse.Mas não receia que fique uma nuvem no ar, uma mancha negra sobre a sua saída?Não sei se ficará. As pessoas tirarão as ilações que quiserem. Há uma coisa que é importante. Quem anda no futebol a pensar que agrada a toda a gente, não o conseguirá fazer. Nem Deus que era Deus agradava. E quem pensa assim, está no mau caminho. A mim custa-me. Tenho algum lamento de sair eventualmente aborrecido com algumas pessoas. Não é esse o caso até à data. Mas custa-me se isso acontecer. Mas não estou nada perturbado com aquilo que as pessoas possam dizer. Vamos ver e aguardar o desenrolar da situação.Está de consciência tranquila?Estou. Acho que as coisas devem acontecer quando têm que acontecer. Agora que a história não é exactamente, como me parece – apesar de não ler muitos jornais – que foi contada, não é.Quer esclarecer?Não. Não vale a pena. Desejo muita sorte para toda a gente. Tenho lá muitos amigos e é isso que mais desejo ao clube.“Se não houver bons princípios em casa dificilmente há bons princípios na escola”Sendo professor há 18 anos, que análise faz do ensino?Tenho apanhado algumas modificações graduais. Nos últimos anos sinto-me mais desgostoso em relação ao ensino. Não representa bem a visão daquilo que eu acho que deve ser. Quando digo ensino refiro-me à educação. Tudo o que envolve pais, filhos e escola. Este triângulo não está a funcionar muito bem. Não estou muito agradado como as coisas estão a funcionar actualmente.De quem é a culpa?Todos têm culpa. Mas há uma coisa que considero importante. Se não houver um clima de trabalho agradável, dificilmente se conseguirá atingir o sucesso. E na escola, fruto de todas as mudanças, não tem havido um clima saudável. Há choques com os alunos e com os professores. É fundamental que se crie um bom clima e motivação, principalmente nos professores. Se eles não estão motivados as coisas ficam mais complicadas. Não quero dizer com isto que os professores são todos uns santos. Mas é preciso alguém pensar de uma forma diferente. Ver a floresta de cima, de um lado e do outro. O que está bem e o que está mal. Porque senão dificilmente as coisas terão outro rumo.Como olha para os alunos de hoje?De uma maneira muito diferente da do meu tempo. Acima de tudo a vida é-lhes muito mais facilitada hoje, mas vão pagar a factura mais tarde. O que mais me magoa e desgosta nestas questões da educação é a falta de responsabilidade, de educação, que se nota em alguns momentos, mas sobretudo a falta de empenho. Existe um certo laxismo na questão da educação. Toda a gente se preocupa com a nota que vai obter, mas ninguém se preocupa com aquilo que aprende. Vejo poucos pais preocupados em saber se o filho aprende ou não. Apenas a nota é que interessa. Agora se os conhecimentos estão lá ou não, isso é secundário. E esta visão tem modificado os alunos e por conseguinte as escolas e os professores e o seu próprio papel.Os pais passam a responsabilidade da educação para a escola?A escola jamais pode substituir os pais. Tem-se feito alguma confusão. A função do professor é acima de tudo ensinar. Se puder ensinar alunos com boa essência e bons princípios tudo se torna muito mais fácil. Mas se não houver bons princípios em casa dificilmente há bons princípios na escola. Não é um professor que vai resolver os problemas que não são resolvidos em casa. Como assim?Os pais têm hoje uma visão diferente. Os miúdos não sabem o que é viver com mais dificuldades, com problemas e ultrapassar obstáculos. Não sabem dar valor às coisas que têm nem conseguem admitir um não. Não estão preparados para a parte negativa. O serem preteridos. E isto não forma ninguém para a vida futura. Leva antes a uma falta de responsabilidade e de empenho. Digo sempre aos meus alunos: antes prefiro um aluno que quer e não pode do que aquele que pode e não quer. Da mesma forma que o digo aos meus jogadores.O menino que ia ver os jogos do Alverca com o paiFalar de Rui Vitória é falar de futebol. Hoje com 40 anos, o ex treinador do Fátima e recentemente apresentado como técnico do Paços de Ferreira para a próxima temporada, apaixonou-se pelo desporto rei quando ainda era uma criança. Desses tempos, recorda com um brilho nos olhos, as infindáveis idas com o pai – jogador e treinador do Alverca – ao estádio para ver os jogos de todos os escalões do clube. A “epopeia” começava às 09h00 e só terminava à noite. A única pausa era mesmo para almoçar. “Hoje vejo que se calhar foi aí que tudo começou. Jogava à bola na rua e em tudo o que era sítio. Sempre vi esta actividade com grande paixão e entrega. Tinha o sonho de ser jogador e estar sempre ligado ao desporto e ao futebol”, revela Rui Vitória.Aos 9 anos ingressa no Alverca onde faz toda a formação até aos seniores. Jogou em clubes de divisões inferiores e, durante 8 anos, vestiu as cores do Vilafranquense. Clube que lhe deu a primeira oportunidade para ser treinador. Rui Vitória foi fazendo carreira desportiva, conciliando sempre com os estudos. Licenciou-se em Educação Física pela Faculdade de Motricidade Humana. Antes estudou na escola Pedro Jacques de Magalhães e na secundária Gago Coutinho, que considera a “sua escola”, onde o professor Rui Vitória leccionou durante os últimos 13 anos, num total de 18 ao serviço do ensino.Os 32 anos são uma data marcante para o treinador. Foi a altura em que começou a carreira como treinador mas foi também quando um trágico acidente de viação vitimou os seus pais e um outro casal amigo, quando regressavam de um evento de pesca desportiva. Hoje, Rui Vitória fala abertamente sobre perda dos progenitores e assume que esse facto serviu para o tornar ainda mais forte. O acidente ocorreu a 21 de Setembro de 2002 e Rui Vitória começou a treinar a 1 de Outubro desse mesmo ano. “Tenho a certeza absoluta que sentiriam muito orgulho se estivessem a ver o que está a acontecer”, confessa o técnico que tem um irmão mais velho.Frontal e ambicioso mas ao mesmo tempo humilde, o técnico tem consciência das suas capacidades mas recusa embandeirar em arco. Realismo e pragmatismo são características que lhe assentam que nem uma luva. Adora desafios e garante que quando abraça um projecto, seja ele qual for, é de corpo e alma. Se as coisas correrem menos bem, prefere levantar a cabeça e seguir em frente em vez de deitar a toalha ao chão.Durante os últimos quatro anos, Rui Vitória conciliou o cargo de treinador do Fátima com o de professor em Alverca. Todos os dias – excepto o de folga – uma carrinha transportava o treinador e vários jogadores, desde Alverca até Fátima, regressando no mesmo dia. Percorriam diariamente mais de 200 quilómetros para irem treinar. O professor vai dar aulas até ao final do ano lectivo. Depois, segue de malas e bagagens para o Norte, levando, em princípio, a família consigo. A carreira de docente terá de esperar, pelo menos, um ano. O objectivo é que sejam muitos mais. Sinal de que Rui Vitória conseguiu vencer mais um desafio na sua vida. Singrar ao mais alto nível. Ele acredita em si e há muitos que acreditam nele. Durante a entrevista o telemóvel tocou algumas vezes. Não tantas quantos os acenos que Rui Vitória fez para as muitas pessoas que o iam cumprimentando quando passavam por ele.
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