Entrevista | 30-06-2011 10:58

O barbeiro que sempre teve o bichinho da política

O barbeiro que sempre teve o bichinho da política
Alfredo José tinha uma barbearia aberta na parte nova da cidade de Tomar, conhecida antigamente como o bairro “de Além da Ponte”. Começou como tesoureiro e chegou a presidente de Junta de Santa Maria dos Olivais, desempenhando o cargo entre 1985 e 1993, período em que chegou à população água canalizada, electricidade e novas vias de comunicação. Também lhe coube a responsabilidade de construir uma nova sede para a junta, que hoje se encontra numa esquina, ao fundo da Alameda Um de Março. Enquanto autarca recorda os tempos em que tinha que ir à fábrica da Fiação de Tomar “angariar” mulheres para o cortejo da Festa dos Tabuleiros.O facto de ter uma barbearia ajudou a que conseguisse ser presidente de junta?Eu sempre gostei muito da minha terra. Tudo o que fosse em benefício de Tomar, as pessoas sabia que poderiam contar comigo. Mas essa resposta deve ser dada pelos meus eleitores. Com certeza que não foi pela minha cara que me elegeram mas porque reconheceram qualidades para isso. Sempre me senti vocacionado para essa função.Gostava de política?Sim, acho que sempre tive o bichinho da política. Aliás, fui das primeiras pessoas a serem recenseadas nesta freguesia. Tenho o cartão de eleitor n.º 39. Fui um entusiasta pela mudança do regime e era admirador do Sá Carneiro pelas suas intervenções anti-salazaristas. Fiz-me militante do PPD depois do 25 de Abril. Como é que surge o convite para ser cabeça de lista à junta?Quando foi formada a Aliança Democrática (AD), o PPD de Tomar veio convidar-me para ser cabeça de lista à Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais mas não aceitei porque tinha uma porta aberta e o cargo de presidente de junta acarreta a criação de amigos e inimigos. Isto em 1979. Indiquei que fosse falar com o “Joaquim dos Estores”, Joaquim Freitas Duarte, mas ele disse que só concorria se eu integrasse a lista. Pedi para ficar num lugar não elegível mas acabei por ser tesoureiro durante dois mandatos. Findo esse período foi extinta a Aliança Democrática. Ou seja, o Partido Social Democrata e o CDS concorriam isoladamente. Foi essa divisão que determinou o seu futuro político?Sim, porque o Joaquim dos Estores concorreu pelo CDS, apesar de lhe ter pedido para que continuasse pelo PPD. O Dr. Júlio Bento, que era o presidente do PSD disse-me que se o Joaquim dos Estores não aceitasse eu tinha que ser o responsável pela situação. Assumi que aceitava e disputámos os dois a presidência de junta. Ele pelo CDS e eu pelo PPD.Estava à espera de ganhar contra o antigo presidente de junta?Não. Fiquei eufórico. Gostei bastante. Mas tive bastantes prejuízos monetários no meu negócio, já que não ganhava nada e deixava muitas vezes o meu estabelecimento entregue a empregados para atender às situações. Às vezes a minha mulher vinha cá chamar-me porque tinha a casa cheia de clientes à espera. Andava sempre cá e lá. A antiga junta de freguesia era na Rua Voluntários da República e o salão um pouco mais acima. Quando tomou posse quais foram as prioridades que traçou para a freguesia?Preocupei-me, principalmente, em atender a população com dignidade. Uma exigência que fazia às minhas funcionárias era que atendessem toda a gente com simpatia. Nessa altura, a freguesia já tinha cerca de 12 mil habitantes. Uma coisa que me confrange ver, nos dias de hoje, é a antipatia de certas secções de repartições públicas a receber os utentes. Não posso com a antipatia das pessoas. Depois, quis dotar a freguesia com água canalizada, electricidade e construir vias de comunicação. Nessa altura, a freguesia era muito carenciada neste aspecto. Finalmente, como tínhamos uma sede velha, onde chovia como se fosse na rua, coube-me a mim a responsabilidade de encontrar uma nova sede para a junta.Como é que se chegou ao actual edifício?Tinha 1500 contos do Estado para a sua construção. Um dia, reuni-me com o Dr. Jerónimo Graça, presidente da Câmara de Tomar na altura, e com o Dr. Bento Baptista, que era o presidente do PSD de Tomar, e fizemos uma reunião na minha quinta. Ofereci-lhes o almoço e foi ali determinado que se ia fazer a sede da junta. Perguntei-lhes com que dinheiro e eles disseram-me para arrancar com as obras que o dinheiro ia aparecer. Apareceu mas foi à custa de muita canseira e muitas arrelias. Perdi noites a pensar onde é que ia buscar o dinheiro para a sede. Fartei-me de pedir aos construtores, ao comércio, à indústria de tijolos, às cerâmicas… Cheguei a pagar contas com cheques do meu bolso. Quanto é que a obra custou realmente?Ficou em trinta e tal mil contos. O terreno era municipal e arrancámos com as obras em 1988. O edifício foi inaugurado a 15 de Agosto de 1990, com Pedro Marques na presidência da câmara. Lembro-me que o falecido vereador socialista Lino Cotralha me disse que era uma grande asneira fazer a sede neste canto, mas mais tarde deu-me razão. Acho que a sede está muito centralizada. Tem, desde há quatro anos, uma placa com o seu nome numa das portas …Não por vontade minha. Não gosto de fachadas. Foi o actual presidente da junta, o Sr. António Rodrigues, que me pediu autorização se podia pôr lá o meu nome. Respondi que se fosse eu a dispor que não punha mas que agora cabia-lhe a ele essa decisão. Também o ano passado pediu-me uma fotografia para ampliar e colocar numa das paredes, juntamente aos outros presidentes de junta: Joaquim Freitas Duarte, Guilherme Nunes, Carlos Silva e eu. Os dois primeiros já faleceram.Como é que era esta freguesia nos anos 40, 50?Eu sou do tempo em que a freguesia de Santa Maria dos Olivais, era o bairro Além da Ponte. Éramos os “espanhóis”. Os lá de baixo, da margem direita do Nabão, eram os portugueses (risos). Existia muita rivalidade. A ponte nova era mesmo uma fronteira. Lembro-me ainda que nos meus tempos de garoto, as bandas da Nabantina e da Gualdim Pais guerreavam-se. Do ponto urbanístico, a freguesia de Santa Maria dos Olivais, era constituída por cinco ruas. A rua Voluntários da República, a Rua Marquês de Pombal, a Rua do Centro Republicano, a Rua Carlos Campeão e um bocado da Rua de Santa Iria. O resto era só oliveiras e é essa a razão porque se chama freguesia de Santa Maria dos Olivais que foi fundada em 1933.Ajudou a criar uma paróquia e converteu-se ao catolicismoFoi o senhor que criou a Paróquia de Santa Maria dos Olivais…A paróquia de Santa Maria dos Olivais funcionava na Igreja de São João Baptista e quis mudá-la para aqui. Pedi ao pároco de Tomar da altura, João Borga, autorização para ir falar com o bispo Dom António Francisco sobre este assunto. Disse-me que ia ver se conseguia arranjar um padre para aqui dar missa. Meses depois recebo uma comunicação do padre João Borga a dar-me os parabéns porque a paróquia de Santa Maria dos Olivais ia passar para aqui. Era uma pessoa ligada à Igreja?Curiosamente, eu não era frequentador da igreja mas um dia, no 1 de Março, feriado da cidade, fui assistir a uma missa e gostei tanto das palavras na homília do bispo Dom António Francisco Marques (1.º bispo de Santarém), na homilia, que a partir desse momento me converti católico. Mais tarde, já depois de me reformar, fui convidado para fazer um curso de cristandade e ele fez uma grande festa quando me encontrou lá. Fez questão de me fazer o Crisma, tinha eu sessenta e tal anos. O Mário Santos, actual secretário da junta, é que foi o meu padrinho. Tenho pouca cultura oficial mas tenho-me cultivado à minha custa, mercê dos convívios, das leituras que faço. Gostou de ser presidente de junta?Para mim foi uma felicidade. Monetariamente não ganhava nada mas foi muito enriquecedor. Tinha gosto em receber bem as pessoas. Certo dia tive problemas com o tesoureiro, que era ex-subchefe das finanças e dono de uma antipatia muito grande. Há uma senhora que aparece em minha casa a chorar a queixar-se que foi mal recebida na Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais. Disse que tinha perguntado por mim e que o senhor que lá estava lhe tinha respondido mal. Desloquei-me à junta e disse que a situação não podia voltar a acontecer. Mas ele levou a mal e entregou-me as chaves. Qual foi a situação que recorda mais da experiência de autarca?Tive vários momentos de satisfação. Nessa altura já assistia a pessoas carenciadas. Mais tarde fiz parte da Cáritas, onde estive 12 anos. Andava a distribuir alimentos. Formei um grupo de Cantares Regionais de Santa Maria dos Olivais que ainda existe. Também formei um grupo de cantares dos reis com fins de benemerência. Numa ocasião, andámos a cantar para arranjar dinheiro para um televisor a cores para o lar de São José. No segundo ano, cantámos para comprar um aspirador industrial para o Centro de Integração e Reabilitação de Tomar. A minha actividade baseava-se muito em ajudar os necessitados. Ainda hoje sou assim. Gosto de estar onde sinto que sou preciso. Ainda é reconhecido na rua?Sim, sou muitas vezes confrontado com pessoas que, confesso que já não reconheço. Dizem-me “Sr. Alfredo está bom?” e eu respondo sempre “ajude-me lá e diga-me de onde o conheço”. Acho que a boa educação é sempre de louvar. Hoje em dia há muita instrução mas há pouca educação. Tem 83 anos mas é muito activo. A idade é uma coisa psicológica, portanto?Há uma frase que uma senhora velhota que conheci e que achei muito interessante disse: velho não é quem parece, é quem se julga”. Há homens de 40 anos que me dizem que estão cansados. Não me considero velho. Ainda me considero relativamente válido. Tenho muitas distracções. Tenho a minha propriedade onde vou todos os dias e tiro lá praticamente tudo para a alimentação. Gosto de ler e todos os dias passo duas horas na biblioteca a ler. E faço parte do Coro Misto Adulto da Sociedade Filarmónica Gualdim Pais. Gosto muito de cantar. “Hoje é mais fácil arranjar pessoas para a festa”Gostava de organizar a Festa dos Tabuleiros?Sim, com muita satisfação. Cheguei a fazer quatro festas. Duas como secretário e duas como presidente da junta. Houve um ano em que fizemos 120 tabuleiros. Foi muito trabalhoso. Mas um dos momentos de satisfação era a organização da festa dos tabuleiros. A freguesia de Santa Maria dos Olivais sempre foi pioneira nisso. Ainda hoje é a freguesia que dá mais tabuleiros, este ano penso que perto de duzentos. Hoje é mais fácil arranjar pessoas para a festa. O Cortejo dos Rapazes deu um novo fôlego à festa. As escolas participam com crianças e há muitas senhoras, através do Centro de Emprego, a fazer flores. Há uma adesão que não havia no meu tempo.E como é que era no seu tempo?No meu tempo, o nosso viveiro de material humano era a extinta Fábrica da Fiação. Era ali que eu tinha ordem para entrar e sair quando quisesse. Podia ir às diversas oficinas para convidar as senhoras para levar o tabuleiro. Hoje abre-se a inscrição num dia, nesse dia fecha. As flores e os tabuleiros da freguesia eram feitos pela D. Alice Carvalho, antiga funcionária da junta (já falecida) que convidava outras senhoras e as ensinava a fazer flores e a montar o tabuleiro. Nota muitas diferenças na Festa dos Tabuleiros de antigamente e na de agora?Agora sinto que há mais entusiasmo e mais adesão. Como digo, a criação do cortejo das crianças veio ajudar a divulgar muito a Festa dos Tabuleiros. É um cortejo muito lindo de se ver. Aliás, digo muitas vezes que não há cidade tão bonita como esta. Aquela imagem do castelo, vista da ponte velha, é monumental.Histórias de barbeariaAlfredo José foi barbeiro durante 47 anos. Há duas histórias que conta como se tivessem acontecido ontem. Certa vez estava a cortar o cabelo a um indivíduo que desmaiou na cadeira. “Pensei para comigo “estou desgraçado” porque ele tinha acabado de almoçar e suspeitei de uma congestão”. Foi buscar uma toalha, lavou-lhe a cara, ele abriu os olhos e mandou-o dar uma volta. A partir daí começou a fechar à hora de almoço.Na outra ocasião, ainda aprendiz, assistiu a uma cena arrepiante. “O meu patrão estava a fazer a barba a um cliente que era muito gordo, José Simões, a quem chamavam cabeça de arroz, um latoeiro na Rua Marquês do Pombal, que adormeceu na cadeira. A certa altura pousou uma mosca mordeu-lhe na cara e este quando sentiu a picada, enxotou-a e bateu com a mão na navalha. O patrão deu-lhe um golpe enorme na garganta. “Fui a correr chamar o farmacêutico. Não morreu mas ficou com uma grande cicatriz. Nunca mais esqueci esta imagem”, diz.O rapaz que sempre trabalhou para economizarNasceu em 1928 numa casa perto da Rua da Fábrica da Fiação. Era o irmão do meio de cinco filhos de um casal humilde que trabalhava nessa antiga unidade têxtil. Alfredo José, sem mais nomes ou apelidos, tem 83 anos. Chegou pontual, com a carteira debaixo do braço, à entrevista marcada para a casa onde todos o conhecem: a sede da junta que mandou construir. É casado há mais de 50 anos com Maria Júlia dos Santos, sua companheira de vida. Pai de um filho é também avô de uma única neta com 12 anos que diz ser “toda a sua grande satisfação”. Com pena, fez apenas a instrução primária. Queria continuar a estudar mas, nos difíceis anos 30, teve que se fazer à vida. Sonhava ser caixeiro numa retrosaria, vender fazendas, mas a mãe arranjou-lhe emprego numa barbearia. Aprendeu a poupar desde criança, juntando todas as moedas que ganhava a fazer recados. “Quando fui para a tropa, em Mafra, já tinha amealhado 16 contos”, recorda. Depois de vir da tropa decide estabelecer-se por conta própria, abrindo o Salão Moderno na antiga Rua Carlos Campeão. Foi também, durante 15 anos, barbeiro dos alunos do Colégio Nun’ Álvares, onde fez muitas amizades. Por conta de tanto trabalhar arranjou uma tuberculose aos 26 anos. “Eu só pensava em trabalhar porque precisava de arranjar dinheiro para casar”, disse. Curou-se ao fim de quinze dias e casou-se apenas um ano mais tarde, quando a boa saúde já estava assegurada. À custa de muito trabalho, muita economia e alguns investimentos bem sucedidos conseguiu agregar um bom património. “O meu lema de vida passou por viver sempre abaixo das minhas possibilidades. Devemos ter sempre uma reserva a contar com o dia de amanhã para que não nos sintamos desamparados”, diz Alfredo José.

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