Entrevista | 19-01-2012 11:10

O humor e a ironia de José Bioucas

O humor e a ironia de José Bioucas

É José dos Santos de Jesus de sua graça, mas em Abrantes todos o conhecem por Bioucas, apelido paterno que um funcionário do registo civil considerou estar a mais. O Largo Engenheiro Bioucas é uma marca indelével na toponímia abrantina da passagem deste homem pela Câmara de Abrantes, de 1974 a 1990, num tempo em que não havia fundos comunitários a rodos e que estava quase tudo por fazer. Avesso a falar de política, actual ou passada, José Bioucas sabotou pela base o guião desta entrevista que acabou numa conversa descontraída recheada de humor e de ironia, imagens de marca de um ex-autarca apaixonado pelos automóveis.

João CalhazO que mudou de substancial na gestão autárquica do seu tempo para a actualidade?Desse tempo já não me lembro e de agora não estou bem informado pelo que é melhor não responder a nada. Mas há uma coisa que eu sei, no meu tempo estava tudo teso e agora parece que há dinheiro a mais. Há dinheiro mais? Mas os autarcas queixam-se é de falta de dinheiro.Pois. O Governo fica com ele, como é que os autarcas não hão-de queixar-se. Tive uma época dessas, quando o Soares era primeiro-ministro, que também foi assim. As câmaras não tinham nada, eles gastavam o que queriam e a gente ficava a ver passar o comboio.Gastou-se muito dinheiro mal gasto, na sua opinião?Isso não sei, porque não acompanho nada disso. Desliguei completamente. Acabou! No dia 3 de Janeiro de 1990 entreguei as chaves da câmara ao meu substituto e meu amigo, o dr. Humberto Lopes. A partir daí saiu da câmara o José Bioucas.Nunca o convidaram para outros cargos públicos depois de sair da Câmara de Abrantes?Já viu alguém independente ser convidado para uma coisa dessas?Há excepções que confirmam as regras.A única coisa para que me convidaram quando saí da câmara foi para ir trabalhar em duas ou três empresas. Eu pura e simplesmente disse: não senhor, estou reformado não tiro o lugar a ninguém, agora vou dedicar-me ao Centro de Recuperação Infantil de Abrantes (CRIA). E a obra lá está. Fui eu e a dra. Lourdes Jorge que o fundámos, ela na altura como responsável pela Segurança Social e eu como presidente de câmara, em 1976. E depois de sair da câmara, em 1990, dediquei-me exclusivamente ao CRIA. Por que razão não gosta de falar da sua passagem pela Câmara de Abrantes e da política local?É uma opção que fiz.Não fala sequer com amigos ou em conversa de café?Raramente. Eu não vou ao café, tenho uma máquina de café expresso. Não tenho intervenção política. Que obra é que não fazia em Abrantes daquelas que foram feitas depois dos seus mandatos?Não sei que obras foram feitas (pausa). O senhor está a rir-se mas é verdade... Nunca ouviu falar do açude insuflável no rio Tejo, por exemplo?Se quer falar sobre o açude vou dizer-lhe uma coisa: a minha proposta quando foi da central termoeléctrica no Pego, que felizmente está lá, não faz mal a ninguém e dá boa massa para o concelho, era uma ponte açude com aproveitamento mini-hídrico, para fazer um espelho de água do Tramagal até à Barca do Pego e a ponte por cima. Fizeram-no ali, está bom, deixem-no estar.A central do Pego foi uma mais valia para o concelho.Por causa dela tive uma corda pendurada no pelourinho para lá ficar. Mas não me conseguiram enforcar e a central está lá e não faz mal a ninguém. E então agora a gás ainda melhor. Aturei coisas do arco da velha por causa daquela central. E o que acha do projecto Aquapolis, de requalificação das margens do Tejo em Abrantes?Essa coisa foi uma promessa que o engenheiro Macário Correia me fez quando era ministro do Ambiente e que lá se vai fazendo. Do Aquapolis só conheço de passar em cima da ponte e uma vez ou duas que lá fui ver.Fala-se também há muito tempo da necessidade de uma nova ponte sobre o Tejo na zona do Tramagal. Acredita que ainda se vai fazer?Aquilo tem que se fazer. É muito importante para Tramagal, Ponte de Sôr, Bemposta. Se quiserem desenvolver isto tem de ser por aí. Tenho a certeza que se vai fazer.A fábrica de painéis solares prevista para a freguesia da Concavada alguma vez vai funcionar?Nunca lá vi nada, não sei. Não está a par desse processo?O senhor é que me está a dizer. E sobre o museu ibérico de arqueologia e a torre que se pretendia construir no centro histórico da cidade?Aí já disse publicamente a toda a gente e de caras ao arquitecto Carrilho da Graça: uma torre daquelas era uma aberração naquele sítio. O museu que venha quanto antes, acho que faz cá falta, mas a torre nunca! A câmara fez bem em reavaliar o projecto. Nunca é tarde para aprender. Aquilo tinha algum jeito? Dizia que era para se ver ao longe. Olhe, fizesse aquilo no antigo campo de futebol.Não estava para aí previsto um hotel?Um hotel? Isso foi para levarem o terreno de borla.E o campo de baseball de Abrantes, já o foi visitar?Baseball? Essa modalidade não se pratica só na América?Pelo que sabemos, aqui em Abrantes há um dos poucos senão mesmo o único campo do país.Ah! Até que enfim que há uma coisa única em Abrantes. O seu registo sempre foi assim, recheado de ironia e de bom humor?O meu “disco” só dá para isso.Como vê o distrito de Santarém a partir de Abrantes?Vejo-o todo se for lá acima à torre de menagem do castelo com uns binóculos. Até a Torre das Cabaças em Santarém consigo ver, quando o sol está bom.Fez um voto de silêncio acerca da sua passagem pela política?Voto não. Nem faço promessas. Não tenho relutância nenhuma, foi uma coisa que impus a mim mesmo. Quando entrei para a câmara entrei José Bioucas. No dia 3 de Janeiro de 1990 saí José Bioucas. Conforme entrei, conforme saí: teso, com o ordenadinho e acabou a conversa. Gostou mais de ser professor ou de ser autarca?São duas situações distintas das quais gostei muito. Foi muito bom ser professor e gostei muito de ser autarca, porque fiquei a conhecer melhor os homens.E na política ficou decepcionado com aquilo que conheceu ou também teve alegrias?Já conhecia as pessoas relativamente bem e já não esperava outra coisa daquela gente toda. Para alguns, os autarcas só servem para subirem às costas deles para determinados lugares. Depois, quando lá estão, esquecem-se deles. Não estou a falar de ninguém em particular, é tudo a eito.O senhor foi contemporâneo de autarcas que ainda estão no activo, como os presidentes das câmaras da Chamusca e de Benavente.O Sérgio Carrinho e o António José Ganhão. Da região só temos esses dois.Consegue imaginar-se mais de 30 anos à frente de um município, como esses dois autarcas?Não imagino nem deixo de imaginar. O povo não me quis e tirou-me de lá.Acha bem que haja limitação de mandatos para os presidentes de câmara?Não acho bem que haja limitação de mandatos para os autarcas quando não há para os senhores deputados ou para os senhores ministros. A limitação devia ser para todos, mas achava melhor que fosse a vontade dos votantes a ditar isso.Sente-se orgulhoso em ter um largo em Abrantes com o seu nome?Um dia telefonaram-me, eu não sabia de nada, a dizer que iam dar o meu nome ao largo do hospital, porque eu é que tinha sido o homem que arranjou para cá o hospital e que tinha sido o autor do largo. Disse logo que não queria saber disso para nada e que o meu nome não o punham lá. Se isso era política então pusessem lá o meu nome de guerra político e acabou a conversa. E não está lá o nome do José dos Santos de Jesus. Está lá Largo Engenheiro Bioucas. Eu sei que sou eu, mas também pode ser o meu irmão Alberto ou o meu irmão João.Ajudou a criar o PPD em Abrantes e acabou eleito pelo PSJosé Bioucas ajudou a fundar o PPD (Partido Popular Democrático), hoje PPD/PSD, em Abrantes mas nunca se chegou a filiar no partido de Sá Carneiro, acabando mesmo por ser eleito para a presidência da Câmara Municipal de Abrantes pelo Partido Socialista, cargo que ocupou entre 1976 e 1990 mantendo sempre o estatuto de independente. “O PS fez muitas tentativas para me filiar”, confessa. Mas pelo seu discurso depreende-se que considera que os partidos não são flores que se cheirem, embora diga que não tem aversão aos partidos. Quando foi convidado para a comissão administrativa que geriu a Câmara de Abrantes de 1974 até às primeiras eleições autárquicas em 1976, a sua ligação ao PPD acabou para manter a equidistância e a isenção ante as forças políticas em parada. Assumia-se como um admirador da social-democracia nórdica da altura e em particular de Olof Palme, primeiro-ministro sueco assassinado em 1986. Tal como assassinado foi, segundo ele, outro político de que gostava muito, Francisco Sá Carneiro. “Mas tem dúvidas disso?”, questiona com ênfase quem se afirma como um “social-democrata convicto”.Foram 16 anos anos como presidente eleito da Câmara de Abrantes mas essa etapa da sua vida ficou encerrada a sete chaves no baú das suas memórias. José Bioucas não gosta de falar desses tempos nem da actualidade política em Abrantes. O que deixou de parte o guião de entrevista alinhavado e nos levou para uma conversa quase informal sobre a sua vida.Um ás do volante apaixonado pela mecânicaÉ por Bioucas que é conhecido, apesar do apelido paterno não constar do seu Bilhete de Identidade graças aos caprichos de um funcionário do registo civil de Abrantes na hora de ser registado, já lá vão mais de 83 anos. Ficou José dos Santos de Jesus, mas até na toponímia abrantina vingou o “nome de guerra”, como se pode atestar no Largo Engenheiro Bioucas, próximo do hospital da cidade. Um sinal de reconhecimento pelo empenho enquanto autarca na construção daquela unidade de saúde e uma homenagem que ele quis dispensar. Conseguiu uma solução de equilíbrio. A verdade é que não é o nome oficial dele que lá está. “O engenheiro Bioucas do largo também pode ser o meu irmão”, diz com humor. Bioucas são também os seus três filhos e seis netos e ele sempre assinou José Bioucas. Assim ficou vingada a anomalia burocrática de um caprichoso funcionário público.O pai, José dos Santos Bioucas, era dono de uma oficina onde cedo começou a lidar com os segredos da mecânica automóvel. Uma actividade que ainda hoje o apaixona e que o faz zelar carinhosamente pelas peças de colecção de que é proprietário. Na década de 40, quando o uso do automóvel ainda estava longe de se democratizar, já o jovem José competia em provas de perícia automóvel. Na década seguinte começou a participar em ralis de automóveis antigos. “Ainda fiz umas flores”, diz. Tomou-lhe o gosto e não mais largou o volante. O último passeio em que esteve foi em Junho de 2011, mas o nobre Ford verde da sua idade está mortinho para sair da garagem. A oficina de seu pai (José dos Santos Bioucas, Lda.) e depois sua foi representante de marcas automóveis como a Mercedes, Audi e NSU e era ali que Santinho Mendes, o campeão de ralis de Abrantes, preparava as suas máquinas de competição no início da carreira. “Colaborava muito com ele”.Com um pai dono de uma oficina e com a paixão pelos automóveis - aos 10 anos já o pai o sentava ao colo para conduzir - não surpreende que José Bioucas tenha optado por, após terminar os estudos secundários, seguir engenharia electromecânica no antigo Instituto Industrial de Lisboa, hoje Instituto Superior de Engenharia de Lisboa. “Tem um nome mais pomposo mas a miséria é a mesma”, brinca.Começou a trabalhar muito jovem na empresa do pai e após a licenciatura dedicou-se também ao ensino. Concorreu e deu aulas no Cacém, em Torres Novas e na Escola Industrial de Abrantes. Leccionou aritmética, geometria e desenho de máquinas, entre outras disciplinas. Foi professor de figuras conhecidas da vida pública como o ex-deputado e ex-ministro Jorge Lacão e o ex-ministro das Finanças Eduardo Catroga e o seu irmão e professor universitário Fernando Catroga. “Eram conhecidos como os Catrogas dos vintes”, por serem alunos de topo. De Jorge Lacão, Mário Soares disse-lhe uma vez em visita a Abrantes: “O puto vai chegar longe”. “E chegou, até onde pôde. Embora a ambição dele fosse maior”, graceja José Bioucas. Reformou-se como professor efectivo da Escola C+S do Tramagal onde curiosamente nunca deu aulas, pois estava destacado em comissão de serviço extraordinária enquanto autarca na Câmara de Abrantes. Teve sempre uma relação “bem disposta” com os alunos, fruto também da forma positiva como encara a vida. “A vida não se deve levar a sofrer”, sentencia.Em 1977, nos conturbados tempos pós-25 de Abril, decidiu vender a empresa de família. Diz que foi o melhor que fez. Hoje passa parte dos dias no remanso da sua propriedade em São Simão, na companhia da esposa. Aí trata das flores e da horta, desfruta da paisagem e dos bons ares do pinhal e faz companhia à esposa, especialista no fabrico de licores, como pudemos comprovar. “Esta casa foi uma herança que a minha mulher me deixou. Andava deserta para vir para o mato, apareceu esta casa à venda e eu fiz-lhe a vontade”, diz mais uma vez com humor.Bombeiro voluntário e “fura-greves”Feito, nascido, baptizado e casado - “e quero ver se sou sepultado” - em Abrantes, cidade onde sempre viveu, José Bioucas nasceu na casa em frente à antiga oficina do pai. A data de nascimento oficial é 25 de Março de 1928, “mas é mentira”. Nasceu um dia antes da data que conta no BI. “Logo tenho 83 anos, 10 meses, 18 dias e 7 horas”, contabiliza quando lhe perguntamos a idade. É um dos seis filhos do casal, quatro deles formados com curso superior o que para a época não era muito habitual e era sinal de algum conforto financeiro.O amor de José Bioucas à terra natal tem sido manifestado ao longo da vida de diversas formas. Foi voluntário nos Bombeiros Municipais de Abrantes dos 18 aos 60 anos, onde conduzia viaturas e ajudava a apagar incêndios, mesmo depois de já ser autarca. Como morava perto do quartel, quando tocava a sirene era sempre dos primeiros a chegar. Homem de acção, enfrentava os problemas de frente, mesmo que lhe custassem alguma popularidade. Quando era presidente de câmara, na conturbada segunda metade da década de 70, houve uma greve do pessoal da recolha do lixo. José Bioucas não esteve com meias medidas: agarrou numa camioneta da sua empresa, requisitou os filhos e foi recolher o lixo. Os trabalhadores acusaram-no de ser “fura-greves”. Ele respondeu-lhes à letra: a camioneta e os filhos eram dele e por isso fazia o que achava que devia fazer.“A minha postura foi sempre a de ajudar a comunidade”, sintetiza, dando como exemplo a sua ligação ao CRIA - Centro de Recuperação Infantil de Abrantes, que ajudou a fundar e de que foi presidente da direcção durante muitos anos, sendo actualmente presidente da mesa da assembleia geral.

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