Entrevista | 18-09-2019 12:30

“Só um ignorante pode dizer que no tempo de Salazar é que era bom”

“Só um ignorante pode dizer que no tempo de Salazar é que era bom”

José Ernesto Cartaxo tem um percurso de vida ligado ao PCP e ao sindicalismo.

Começou a trabalhar nos telhais descritos por Soeiro Pereira Gomes quando tinha 10 anos. Militou no Partido Comunista e foi preso e torturado pela PIDE. Ex-autarca, foi membro do comité central do PCP, da comissão executiva da CGTP e do Conselho Económico e Social. Em entrevista a O MIRANTE confessa que falta cumprir-se os valores de Abril. Lamenta que o concelho tenha entrado num marasmo e avisa que os novos sindicatos independentes ameaçam banalizar a importância da greve.

Entre 1977 e 2008 pertenceu à comissão executiva da CGTP Intersindical. Como olha para os novos sindicatos independentes que têm promovido greves que têm afectado o país, como o caso dos enfermeiros e dos motoristas de matérias perigosas?

A CGTP teve sempre uma actuação responsável. Os trabalhadores só conseguem alguma coisa através da luta organizada e unida. Temos assistido a greves selvagens dos enfermeiros e dos camionistas, com todos os aproveitamentos políticos que conhecemos. São novos sindicatos ligados a estruturas que não se sabe bem quem são. As motivações dos trabalhadores são mais que justas, mas há muito aproveitamento e oportunismo político por trás. Com as greves que têm feito têm contribuído para desvalorizar a importância da greve e podem mesmo tê-la banalizado. Isso é de uma irresponsabilidade enorme. Nunca a CGTP faria uma greve por tempo indeterminado num sector estratégico. Isto satura e banaliza a greve.

A culpa é sempre dos patrões?

Os patrões não são sempre os vilões. Há bons e maus, como em tudo. É preciso, sim, diferenciar os pequenos e médios empresários, que têm os seus negócios, das grandes famílias que visam o máximo lucro.

É militante do Partido Comunista desde tenra idade e é um membro destacado dessa organização. Valeu a pena o 25 de Abril?

Valeu muito a pena mas ainda falta cumprir os valores consagrados pela revolução. Tem falhado muita coisa e, em alguns momentos, até se viveu um retrocesso. Teoricamente toda a gente diz que sim, o poder económico tem de se subordinar ao poder político, mas depois na prática sentimos que é ao contrário. O poder financeiro e económico é que tem dominado a situação.

No comité central do PCP já lhe impuseram uma ideia com a qual não concordasse?

Não, nunca. Houve sempre um grande respeito pela opinião individual. É uma ideia pré-concebida que o pensamento seja único no comité central. O somatório das opiniões forma a orientação. A maioria procura consensualizar e no fim obriga todos ao seu cumprimento. Se houver um que não concorde discute-se até que se encontre pontes de entendimento. Se queremos transformar a sociedade temos de ser coesos, actuar como um todo para dar força e concretizar o que se aprova. Há quem não esteja de acordo. E quem não está de acordo muda-se. Mas um homem só, por muito revolucionário ou progressista que seja, não vai a lado nenhum.

Começou a trabalhar aos dez anos nos telhais descritos nos “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes. Foi aí que ganhou consciência política?

Um pouco, crescer em A-dos-Loucos [Alhandra] marcou-me para a vida. É um ambiente entre o rural e o industrial. Sendo filho de gente pobre, com muitas dificuldades, desde cedo tive de começar a ajudar. Os telhais eram de uma violência terrível, era literalmente trabalho infantil escravo.

Pode descrever?

Andávamos de manhã à noite, com encarregados de chibatas, a acartar barro para os tijolos e a carregar uns cinco em cada ombro à saída dos fornos. Ganhava 7,50 escudos (cerca de 3,6 cêntimos) por semana. Se os deixássemos cair levávamos porrada porque dávamos prejuízo ao patrão. Comecei a tomar consciência política mais tarde, na praça da jorna, quando via os lavradores ir buscar gente para trabalhar. Fiquei chocado quando vi os lavradores a apalpar os músculos aos trabalhadores para ver quem tinha mais força para o trabalho. Os outros ficavam sem nada. Era uma coisa terrível, sem sentido e comecei a intervir clandestinamente para mudar as coisas.

Torturado na prisão

O que sente quando ouve gente a dizer que no tempo de Salazar é que era bom?

Só quem for ignorante ou não tiver sentido as dificuldades na pele pode dizer uma coisa dessas. Ainda compreendo que uma pessoa ignorante o possa dizer. Mas revolta-me e deixa-me indignado que haja gente consciente do que está a dizer e que possa defender tal ideia. Foi uma ditadura que reprimiu, explorou, que atrasou o nosso país e participou numa guerra com milhares de mortos e feridos, responsável por um analfabetismo tremendo, fome, miséria... Criar museus da liberdade e da resistência nas antigas prisões é importante para mostrar às novas gerações o que foi a ditadura fascista, mesmo quando há políticos que fazem tudo para branquear o que ela foi na verdade.

Há até a intenção de fazer um museu a Salazar...

É lamentável essa ideia e não cabe na cabeça de ninguém. Era bom que o governo se pronunciasse sobre isso. É uma tentativa de branqueamento do que foi a ditadura. É uma falta de respeito, consideração e uma afronta aos milhares de presos políticos e às suas famílias, que foram vítimas daquele regime.

Incluindo o José que esteve preso entre 1971 e 1973. Qual o crime pelo qual foi condenado?

Dois anos de cadeia por actividades subversivas contra a segurança do Estado. O aparelho fascista tinha uma máquina terrível. Nunca sabíamos quem podia ser informador da PIDE [polícia política do regime]. Quando fui preso suspeitou-se que teria sido a minha tia a informá-los, mas isso nunca foi provado. Mas era revelador do clima de suspeição que se vivia. Vivi durante alguns meses em Santa Sofia [Vila Franca de Xira], num rés do chão que transformei em ponto de apoio clandestino ao partido no baixo Ribatejo. O tipo que nos denunciou tinha sido preso e torturado. Já eu estava a viver novamente em A-dos-Loucos quando me prenderam. Entraram em casa às 06h10 e até o meu filho tiraram do berço para revistar a cama.

Acabou torturado.

É algo que quero sempre esquecer. À medida que o regime se ia desgastando a polícia ia refinando os métodos. No início era pancada, no meu tempo a tortura passou a ser psicológica. Estive duas semanas sem me dizerem nada, vinha o comer numa tigela e nunca sabia quando me iam chamar, se me iam bater ou matar. Eram prisões sem lei. Ao fim de um mês preso meteram-me numa sala de tortura com uma janela com grades, uma mesa, duas cadeiras, um aquecedor e duas floreiras.

O pior veio depois.

Obrigaram-me a passar quatro noites sem dormir, passava horas de pé e sentado, os meus olhos incharam e ficaram todos vermelhos, os pés saíram-me dos sapatos de tão inchados que estavam. Havia um polícia bom e um polícia mau. Passavam sons de mulheres e crianças a chorar e a gritar, pensava que era a minha família. Ao quinto dia sem dormir perdi a cabeça e a última coisa que me lembro foi de ir de encontro a uma esquina. Desmaiei. Acordei com a testa inchada e dali fui para julgamento. Nunca mais me torturaram, mudaram-me para Peniche onde cumpri a pena.

O homem que levou Jerónimo de Sousa para o PCP

José Ernesto Cartaxo tem 76 anos e nasceu em A-dos-Loucos, na União de Freguesias de Alhandra, São João dos Montes e Calhandriz. O seu trajecto de vida pauta-se pela ligação ao Partido Comunista, à resistência antifascista e ao movimento associativo, do qual ainda faz parte.

Serralheiro mecânico de profissão, foi membro de um sindicato fundador da CGTP onde pertenceu à comissão executiva entre 1977 e 2008. Foi delegado sindical na empresa MEC em Loures e foi ele quem levou o actual secretário geral do PCP, Jerónimo de Sousa, para a estrutura comunista. “Ele diz a brincar que eu fui o culpado por o ter metido nisso”, confessa, revelando que ainda hoje mantém uma boa amizade com o líder dos comunistas.

Além da passagem pela Assembleia Municipal e pela Câmara de Vila Franca de Xira, foi também membro do comité central do PCP entre 1988 e 2008, membro do Conselho Económico e Social de 1987 a 2008 e, até 2015, presidente do Instituto Bento de Jesus Caraça. Em Abril foi homenageado pelo município de Vila Franca de Xira com a medalha de honra. A sua viagem de sonho é a Cuba. A hipocrisia tira-o do sério. Simpatiza com o Sporting. Faz caminhadas e no passado já praticou karaté e natação. Tem dois filhos, dois netos, adora os livros de José Saramago e gosta de ouvir música de intervenção e Beethoven.

Acabar com partilha de pelouros foi um erro

José Ernesto Cartaxo foi presidente da Assembleia Municipal de Vila Franca de Xira entre 1993 e 1997 e vereador no executivo municipal entre 1997 e 2003. Diz que foram experiências “interessantes” que o fizeram crescer. “Até 1997 todas as forças políticas neste concelho tinham responsabilidades no executivo camarário, com pelouros atribuídos. Surpreendentemente, quando o PS ganhou a câmara, com Maria da Luz Rosinha, a primeira medida que tomaram, e que me deixou bastante desiludido, foi acabar com os pelouros partilhados. Foi um empobrecimento da vida autárquica. Todos não são demais para ajudar a desenvolver o concelho”, defende.
José Cartaxo diz que há ainda trabalho a fazer no concelho, que deixou de ser uma referência com o definhar do tecido industrial. “Admito que possa ter havido um excesso de confiança do Daniel Branco que levou a que perdesse as eleições para a Rosinha”, confessa. Considera que actualmente o concelho vilafranquense está “estagnado e parado” e que é preciso acabar com o marasmo. “A câmara tem muito dinheiro no banco, como o Tio Patinhas, mas depois as freguesias não recebem transferências a condizer com as responsabilidades que têm. Em Loures as transferências para as freguesias são de 15 por cento do orçamento, em Vila Franca andam perto dos cinco por cento, com tanto que há por fazer. Assim não dá”, critica.

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