Entrevista | 25-03-2020 18:00

“O lar é a mão de todos nós a ser dada a estas jovens”

“O lar é a mão de todos nós a ser dada a estas jovens”

Maria Emília Rufino tem 71 anos, os últimos 25 dedicados ao Lar de Santo António de Santarém. Eleita no final do ano passado para presidir à direcção da instituição até 2023, refere que será o seu último mandato porque é importante haver renovação.

Os motivos que trazem as jovens até ao lar há muito deixaram de ser económicos, hoje são as famílias desestruturadas e a falta de regras que imperam.

Nasci em Angola, Catumbela, Lobito. Ali passei a minha infância. Sou a mais velha de seis irmãos. Tinha 12 anos quando começou a guerra. No Lobito não havia conflito, mas sentia-se o clima de guerra. Passámos a ter outra noção das coisas. Talvez isso me tenha tornado uma pessoa mais resiliente. Concordo que devemos ter comportamentos de segurança, mas não sou assustadiça e tento não ser superprotectora. Mesmo com os meus filhos, deixei-os ver e mexer em tudo o que era bicho. Nunca promovi os medos.

Com 17 anos vim estudar filologia germânica para Portugal, uma área que não existia em Angola. Fui primeiro para Coimbra e depois mudei para Lisboa. Os meus pais ficaram em Angola. A minha mãe era farmacêutica e deu aulas durante vários anos numa escola em Benguela. O meu pai era comerciante. Ela regressou a Portugal em 1975, ele nos anos 80.
Vim parar a Santarém por acaso. O meu marido é de Castelo Branco, conheci-o em Alcanena, onde ele residia. Formou-se em medicina e, na altura, estava na Força Aérea. No internato concorreu para a especialidade de cirurgia e entrou em Santarém. Eu também estava a estagiar em Santarém na Escola Industrial e Comercial, agora Escola Secundária Doutor Ginestal Machado, por isso aqui nos fixámos.

Chegámos cá por conveniência, pelas questões práticas da vida, e hoje em dia continuo a achar conveniente. Tenho a família praticamente toda em Lisboa. Não gostaria de ir viver para a capital. A vida numa cidade pequena permite aproveitar o tempo de outra maneira. Contudo é uma cidade um pouco parada, onde as pessoas não a vivenciam. Tem as festas grandes, o Festival de Gastronomia, a Feira da Agricultura, mas está cristalizada. Quando cá cheguei, em 1975, achei-a mais interessante e dinâmica. O comércio era mais activo.

Voltei a Angola há nove anos. Tinha muitas memórias, uma delas muito dura, a morte de um irmão. Durante muito tempo pensei que não gostaria de lá voltar. Pensei que poderia voltar a África, mas não a Angola e ao Lobito. Tinha a noção de que não encontraria ninguém do meu tempo, como não encontrei. Mesmo assim foi a viagem da minha vida. Apesar das muitas dificuldades, da desorganização e do trânsito, as pessoas, cansadas da guerra, vivem numa luta pela sobrevivência e têm outra forma de encarar a vida. Não as vi tristes.

O meu irmão foi uma das mortes do 27 de Maio de 1977. O então ministro da Administração Interna e membro do Comité Central do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Nito Alves, foi acusado de fraccionismo e de tentativa de golpe de Estado pelo governo de Agostinho Neto, num episódio que culminou com a sua execução, bem como a de milhares de angolanos. Tinha 25 anos e era secretário do ministro do Interior. Na viagem a Angola fui acompanhada pela minha cunhada e pelo meu sobrinho, filho desse irmão, que não chegou a conhecer o pai.

Nunca tive a preocupação de ter passatempos, porque estou ocupada todo o tempo. Gosto de trabalhos manuais, não me incomoda nada o trabalho doméstico e ajudei o meu marido no consultório médico nos anos em que foi preciso. Leio romances, mas prefiro os contos e a poesia, por uma questão de tempo.

Fui convidada pelo doutor Bezerra a integrar a equipa do Lar em 1995. Desde então nunca mais saí. O actual mandato termina em 2023 e será o último. É importante que haja alguma continuidade, mas também renovação, pessoas novas, novas dinâmicas e formas de ver. Não estou cansada, não me sacrifica, mas sacrifica a família. Só o consigo fazer porque tenho tido muita compreensão de todos, marido e filhos.

Se voltasse atrás seria professora de novo. Fui professora de inglês na Ginestal Machado, no Liceu e dei aulas na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa Núcleo de Santarém. Orientei estágios, fiz muitas coisas, sempre na área da docência. Na altura de optar tive dúvidas entre o serviço social, a enfermagem ou a docência. De algum modo acabei por fazer tudo isso.

Para mim a questão da religião é importante. Espero que não me considerem beata, mas não consigo dissociar a minha vida da religião, de Deus. É um pouco como o hino da Igreja, “Pelo céu, pela terra, pelas aves... mil graças Vos dou senhor”, é isso que me faz feliz. Não tenho muitas preocupações por mim, tenho mais pelas jovens que aqui estão.

O que traz muitas jovens ao Lar de Santo António é a falta de regras ou o desrespeito pelas regras sociais vigentes. Há muitas famílias desestruturadas que acarretam diversos problemas como instabilidade emocional e familiar. As situações de pobreza de antigamente já não existem. Tudo se alterou. Todas têm telemóvel, por exemplo.

Por vezes a boa vontade de dar oportunidade às famílias, à espera que se organizem, faz com que casos de jovens sinalizados há muito acabem por vir para os lares tardiamente. Quando chegam carregam muitos traumas. Não é fácil ultrapassar a revolta, o descontentamento, talvez até a falta de confiança no outro.

As casas de acolhimento são o último recurso. São casas que podem ter tido, noutros tempos, regras difíceis ou até desumanas, mas actualmente são uma espécie de colégio interno onde a única diferença é que as aulas são dadas no exterior. Há muita preocupação com o bem-estar das jovens, com as actividades de tempos livres e com a sua formação.
O lar devia ser visto pela sociedade em geral como uma oportunidade para as jovens. Por vezes sabemos de determinados casos e pensamos porque é que ninguém deitou a mão nisto. O lar é a mão de todos nós a ser dada a estas jovens. Não deveriam nunca ser estigmatizadas por aqui estar, mas é difícil tirar esta mentalidade da sociedade.

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