Entrevista | 30-10-2020 07:00

"A judicialização da vida pública é um problema em toda a Europa"

"A judicialização da vida pública é um problema em toda a Europa"
ENTREVISTA COMPLETA

Paulo Pinto de Albuquerque acabou recentemente um trabalho de nove anos como Juiz do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).

Voltou à Universidade Católica onde é professor Catedrático. Recentemente, em conjunto com os Juízes Conselheiros Paulo Dá Mesquita e José Mouraz Lopes, organizou um debate com a ministra da Justiça que foi à academia explicar o plano do Governo para o combate à fraude e à corrupção, aceitando ainda responder às questões dos organizadores e da plateia presencial e online. O MIRANTE aproveitou a iniciativa para entrevistar Paulo Pinto de Albuquerque, a propósito do seu último livro (ver caixa) mas também sobre questões relacionadas com a liberdade de imprensa e a Justiça em geral.

Foi escolhido para o TEDH quase por unanimidade, à esquerda e à direita.

Orgulho-me muito disso.

Já acabou o seu trabalho no TEDH?

Não. Comecei processos e deliberações que, por dever, tenho de os terminar. São cinco casos. Um deles é contra Portugal.

Os seus nove anos de trabalho no TEDH tiveram muitos casos relacionados com a Liberdade de Imprensa?

Só posso responder dizendo que penso que dei um contributo para a defesa do jornalismo, nomeadamente do jornalismo em Portugal, do jornalismo independente; e penso que isso se pode avaliar pelas decisões que foram proferidas pelo TEDH para garantir que os jornalistas portugueses possam desempenhar a sua profissão sem qualquer limite do ponto de vista social, ou outro.

De que países chegam mais queixas aos juízes do TEDH?

Dos países de Leste. Mas também há países no Ocidente que são grandes clientes do tribunal, nomeadamente Itália e Reino Unido.

Depois de ler o seu livro “Em Defesa dos Direitos Fundamentais”, fiquei com a ideia de que tem opiniões muito corrosivas em relação à classe política.

O livro que leu e que tem aí consigo contém as minhas opiniões sobre processos. São opiniões estritamente jurídicas. Esse livro já foi publicado em língua italiana, russa, ucraniana e vai sair agora uma edição em francês e turco. Claro que utilizo uma linguagem muito própria, mas sempre respeitadora dos poderes do Estado.

Alguma vez as suas opiniões lhe causam dissabores?

Não. Há um grande respeito pelos juízes do tribunal europeu. Embora em alguns países haja problemas em relação ao estatuto de defesa dos juízes, comigo nunca foi problema. Nunca em Portugal me fizeram sentir limitado em relação à forma como me exprimo.

O TEDH faz muitas vezes o trabalho dos Tribunais Constitucionais. Como é que se resolve este problema da Justiça no mundo?

É um problema muito importante para discussão. O TEDH não deve ser um tribunal constitucional subsidiário. O tribunal constitucional tem o dever de garantir os direitos e liberdades dos cidadãos portugueses e deve fazê-lo com a maior amplitude possível. O TEDH tem uma função diversa que se sustenta na defesa das liberdades previstas na convenção. O que sucede hoje é que, por força da interpretação muito restritiva dos pressupostos de fiscalização concreta da constitucionalidade no Tribunal Constitucional, o TEDH tem, muitas vezes, de se substituir ao Tribunal Constitucional e desempenhar uma função que deveria pertencer primordialmente ao tribunal nacional. Porque o Tribunal Constitucional está mais próximo dos problemas, está mais próximo dos portugueses. Por isso é importante que a primeira intervenção seja feita por juízes portugueses que vivem de perto a realidade de quem se queixa. Só depois é que se justifica a intervenção do TEDH. Não podemos saltar este degrau.

Nestes nove anos em que trabalhou no TEDH percebeu alguma evolução relativamente a essa matéria?

O que posso dizer é que sempre tive boas relações com os juízes do Tribunal Constitucional português. Tínhamos reuniões duas a três vezes por ano para discutirmos problemas relativos à tramitação de processos e à forma como as decisões do TEDH deviam ser aplicadas pelo tribunal em Portugal. Aprendi muito com os colegas e penso que também pude contribuir para que a jurisprudência fosse mais amiga dos direitos fundamentais e mais próxima da convenção europeia.

Há países com uma cultura jurídica mais forte do que outros?

Sim. Há países que já têm consolidado o Estado de Direito, onde os direitos, liberdades e garantias estão assegurados e com um nível de protecção elevado. Há outros em que não é assim. Não podemos negá-lo. Em Portugal temos que evoluir para os mais altos padrões e aí o Tribunal Constitucional tem um papel fundamental.

Os casos que chegam ao TEDH não se comparam com os que chegam dos países de Leste?

Não tem comparação possível. Portugal tem um nível muito elevado de defesa dos direitos fundamentais e tem uma das melhores constituições do mundo. Falta é tornar realidade as promessas da Constituição da República. É para isso que os juízes devem trabalhar.

A ministra da Justiça queixa-se da constituição portuguesa porque estabelece algumas medidas que dificultam o combate à corrupção.

Sim, a constituição estabelece balizas para a acção do Estado, que devem ser respeitadas. Julgo é que esta constituição tem virtualidades que ainda não foram bem exploradas. Não podemos culpar a constituição da inércia, ou da inépcia, do legislador.

Tem memória de quantos casos analisou e decidiu enquanto juiz do TEDH ?

Foram mais de três mil casos.

Isso implica um trabalho diário, sem direito a fins-de-semana?

É um trabalho árduo. Abdiquei da minha vida familiar durante nove anos. Eu em Estraburgo e a minha família em Lisboa. Para os meus três filhos fui um pai Skype. Foi um custo muito grande apesar de ter trabalhado para um órgão que prezo muito. Presidi ao mais importante comité do TEDH que é responsável pelo regulamento do tribunal. Fiz também parte do comité dos estatutos do juiz; eram reuniões diárias. Era impossível viajar para Lisboa com regularidade.

No seu livro critica os juízes por rejeitarem alguns elementos de prova. É normal um juiz errar e não reconhecer o seu erro?

Os tribunais estão inseridos numa hierarquia, os juízes têm de respeitar a hierarquia judicial e submeterem-se às decisões dos tribunais superiores. Se o juiz vir a sua decisão revogada tem de se submeter. No caso do TEDH apreciam-se as decisões das mais altas instâncias dos tribunais nacionais, onde estão supostamente os melhores juízos dos países.

Mas não reconhece que alguns juízes são iletrados em relação a certos casos que estão a julgar?

Não tenho nenhum dado que me permita afirmar isso. Do conhecimento que tenho de 30 anos de profissão, quer como juiz, advogado ou professor de Direito, a minha opinião é de que os juízes portugueses têm uma preparação cabal; e lá está o CEJ (Centro de Estudos Judiciários) para garantir isso. Obviamente que errar é humano, mas o sistema tem garantias de que as melhores decisões são tomadas no final. A justiça prevalece.

Não é muito mais difícil ser arguido em Santarém, ou noutras regiões do país, do que no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa? As pessoas não estão mais desprotegidas?

Se me pergunta se há dois pesos e duas medidas na justiça portuguesa acho que não. Os juízes fazem tudo para que a justiça seja única. Mas claro que quem tem mais posses económicas tem acesso a uma justiça com mais qualidade. Pode usar das faculdades da lei de uma forma diferente para melhor, devido às suas posses. O estado de direito existe para nivelar essa diferença e garantir acesso à justiça também àqueles que não têm meios económicos. O grande propósito é permitir o acesso igual, tanto quanto possível, aos bens jurídicos do estado de direito.

Recebeu várias medalhas da Ordem dos Advogados, pela defesa da separação de poderes, da independência dos juízes, do estatuto dos advogados, dos direitos das mulheres, do combate à violência doméstica…

Não foi só da Ordem dos Advogados. Fui doutorado pela Edge Hill University de Ormskirk, precisamente por causa disso, pela defesa dos direitos das mulheres; foi a primeira vez que isso aconteceu com um juiz português. Sinto muito orgulho nesse reconhecimento porque também é uma mais valia para a magistratura portuguesa.

Uma vida, num tribunal, não vale mais do que 40 ou 50 mil euros.

Não é bem assim.

É assim na maior parte dos casos. Principalmente quando falamos de indemnizações em mortes por acidentes na estrada. O seguro não dá mais do que isso.

Posso dizer-lhe que o TEDH fixou valores muito superiores contra essas decisões dos tribunais, quer contra a vida quer contra a integridade física. Os valores variam de acordo com as bitolas nacionais, mas se pleitearem em Estrasburgo podem ser muito superiores.

Como é que se sente quando os seus casos são matéria de estudo?

Os meus trabalhos têm como finalidade a melhoria da vida dos portugueses. Se os juízes, magistrados e advogados portugueses, lerem as minhas matérias e elas ajudarem a contribuir para um melhor sistema de justiça em Portugal, fico muito satisfeito. Honra a vida e a obra do homem que está na capa deste livro, Medeiros Ferreira, que foi o responsável pela assinatura e ratificação do estatuto do Conselho da Europa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Foi um contributo fundamental para o Estado português naquela fase crucial da vida do país. O propósito dele era melhorar a justiça nos tribunais portugueses, e conseguiu. Se eu também contribuí para essa evolução contínua ao longo destes 9 anos, fico muito contente.

A justiça em Portugal está prejudicada também pela falta de funcionários nos tribunais. E pela falta de Juízes.

A senhora ministra disse isso no seu discurso, que uma das prioridades é efetivamente encontrar esses meios humanos para fazer esse combate à corrupção. Espero que consiga convencer os parceiros a investir. Mas gostava de salientar a incoerência da resposta penal. Tem muitos buracos e contradições entre regimes que dificultam a aplicação da lei.

Em 2010 disse que a legislação sobre crimes é caótica e desigual. Mantém a opinião?

Mantenho.

A violação do segredo de justiça dá muito trabalho aos juízes do TEDH?

Tem sido apreciada muitas vezes. Em relação a Portugal foram proferidas várias decisões. Sublinho uma; o crime de violação do segredo de justiça não devia ser um crime de perigo abstracto mas devia ser de um crime de perigo concreto. Isso implicaria uma reformulação do tipo penal previsto na lei, ou, pelo menos, uma alteração da jurisprudência nacional no que diz respeito à interpretação desse tipo de crime.

Em tribunal há muitas figuras públicas que recorrem aos tribunais só para exercerem o seu poder financeiro e de influência, nomeadamente contra os jornalistas. Nos outros países também é assim?

Sim. A judicialização da vida pública é um problema em toda a Europa. Espero ter contribuído para a afirmação dos direitos dos jornalistas nas múltiplas decisões que ajudei a proferir para que essa judicialização não sirva para amordaçar os jornalistas; para que tenham as condições necessárias para exercer a profissão. Lembro-me de um caso de um jornalista condenado por afirmações sobre o presidente do Futebol Clube do Porto, ou de um exprimeiro-ministro do PSD. Esses jornalistas ganharam os casos, não obstante o poder social do futebol e o poder político. A justiça é cega em relação a isso. O tribunal tem noção da importância da livre expressão dos jornalistas no exercício da sua profissão.

A morosidade da justiça prejudica a liberdade de imprensa?

A morosidade da justiça prejudica tudo.

Não defende um comité de três juízos, por exemplo, para casos específicos, como os de liberdade de imprensa?

Não. Os tribunais ordinários são suficientes. Lembro-me do tempo em que isso existia para o abuso da liberdade de imprensa. Mas era no tempo da outra senhora. O importante é que o TEDH continue a garantir a defesa desta actividade de forma muito rigorosa.

Como é que vê e analisa o nível e o papel da comunicação social nos dias de hoje?

Tem um papel fundamental. Foi a imprensa que denunciou os principais casos de corrupção ou de má gestão, quer do Estado Central quer das autarquias. Foi a imprensa que trouxe à baila os problemas estruturais da justiça e por isso continua a ser fundamental que faça o seu trabalho. Leio toda a imprensa incluindo a internacional. Posso dizer que a imprensa portuguesa está ao nível das melhores dos outros países.

Como vê os seus alunos de Direito de hoje? A semana passada lemos um texto em que se afirma que 60% dos alunos americanos não sabem o que foi o Holocausto. Os seus alunos sabem o significado do 25 de Abril?

Faço questão de os lembrar. E também do que era a lei antes do 25 de Abril e a evolução do sistema democrático. Se há direito que foi marcado pela transição democrática é o direito penal. O direito é o reflexo da nossa história. Eles têm muita curiosidade em perceber porque é que a lei é como é. E a lei hoje é assim porque não temos o regime que já tivemos. Portugal tem consagrado há mais de 150 anos a abolição da pena de morte. Fomos pioneiros ao introduzirmos de forma definitiva a abolição da pena de morte. Isso mereceu os elogios de toda a Europa. Victor Hugo escreveu uma carta belíssima, que leio aos meus alunos, a elogiar os parlamentares portugueses por esse feito. Ele diz: “vocês, portugueses, sempre foram pioneiros. No passado eram pioneiros na descoberta de outras terras, agora são pioneiros na descoberta de outras ideias”. Isto é fantástico.

Se um dia o convidassem para director de um jornal ou televisão aceitava?

Nunca me ocorreu receber tal convite, mas estou muito aberto e sempre fui receptivo a todos os tipos de desafios profissionais. Esse seria muito interessante, sem dúvida. O que acho que é fundamental no exercício da profissão de jornalista é a pluralidade.

Pelo direito ao acesso à justiça constitucional

Portugal e alguns países da Europa ainda não têm um sistema de justiça que permita aos cidadãos com menos rendimentos o recurso à justiça do Tribunal Constitucional. Este é um assunto que se pode encontrar em artigos de opinião do Juiz Paulo Pinto de Albuquerque, autor do livro “Em Defesa dos Direitos Fundamentais”, e na opinião de Guilherme Figueiredo, Bastonário da Ordem dos Advogados, que assina o prefácio.

“Em Defesa dos Direitos Fundamentais” é um livro da autoria de Paulo Pinto de Albuquerque, que durante quase uma década foi juiz do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). É um conjunto de opiniões proferidas em alguns dos casos mais importantes em que interveio. O livro é uma edição da Universidade Católica com o apoio da Ordem dos Advogados. O prefácio é assinado por Guilherme Figueiredo, Bastonário da Ordem dos Advogados, que explica o apoio à edição do livro com um elogio ao juiz Paulo Pinto de Albuquerque, destacando, entre outras razões, a posição do autor sobre “um acesso amplo à justiça constitucional”, que, como é público, também é defendida pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, de forma a que o Tribunal Europeu não se transforme num tribunal substituto do Tribunal Constitucional.

Guilherme Figueiredo aponta ainda a dificuldade do acesso ao Tribunal Constitucional como uma limitação da nossa justiça, a par de questões formais, como é o caso das custas elevadas que também impedem o comum dos cidadãos de aceder à justiça constitucional.

O MIRANTE foi um caso entre mais de três mil

Um dos mais de três mil casos que Paulo Pinto de Albuquerque analisou e decidiu, enquanto juiz do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, foi uma queixa de O MIRANTE contra o Estado Português, por violação da liberdade de expressão.

Numa sentença publicada a 24 de Setembro de 2019, o tribunal considerou que o director-geral de O MIRANTE, Joaquim António Emídio, foi injustamente condenado pelos tribunais portugueses por, num artigo de opinião, ter escrito que o ex-presidente da Câmara de Santarém e ex-secretário de Estado das Florestas, Rui Barreiro, era o “político mais idiota que conhecia” e condenou o Estado Português a indemnizá-lo em 5.285 euros. Para além do juiz português, a decisão foi tomada pelas juízas, Helen Keller, (suíça), que presidiu e María Elósegui (espanhola).

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