Obrigou Governo a construir escola secundária e teve de amansar a associação do património
Eurico Henriques, professor, vereador, historiador, eterno presidente da Associação do Património de Almeirim.
Eurico Henriques ensinou história a milhares de jovens, primeiro em Angola, onde nasceu, depois no Sardoal, onde se descobriu para a política e se interessou pelo Partido Socialista, numa relação partidária com altos e baixos. Em Almeirim fez a maior parte da sua carreira. Mais de 20 anos, dos 30 de professor, a leccionar na Escola Febo Moniz até sair para a reforma já desgostoso com o acumular de faltas de respeito, da degradação da relação dos alunos com o professor e, sobretudo, da falta de disciplina que considera essencial para se ser aluno e bom profissional no futuro.
Presidente da Associação de Estudo e Defesa do Património do Concelho de Almeirim e vereador na Câmara de Almeirim pela segunda vez, depois de vários anos de interregno por não ter estômago para digerir as formas de agir do antigo presidente Sousa Gomes, deixou na década de 80 marcas na história da evolução de Almeirim. Filho de pais naturais de Almeirim que emigraram para Angola, foi funcionário das Finanças nesse país africano, onde fez também o serviço militar e onde estudou História movido pelo gosto pela investigação do porquê das coisas.
Após o 25 de Abril não foi fácil ser professor porque as regras estavam sempre a mudar e havia muita revolução dentro das escolas. Havia mais abertura nos estabelecimentos de ensino, conseguia-se uma maior participação dos alunos, mas também começaram os exageros. A partir do final da década de 80 os alunos começaram a querer comandar as aulas, aumentou a indisciplina, coisa que abomina. “Liberdade e disciplina são importantes e não são incompatíveis”, realça.
Foi na sua actividade de professor que se interessou pela política e pelo PS, estava então a leccionar no Sardoal e era director da escola. Nessa qualidade tinha que reunir e falar muitas vezes com a presidente da câmara, Francelina Chambel. Quando chegou a Almeirim aproximou-se de comunistas e socialistas, mas foi para o PS que o seu coração pendeu, por ser o partido que corresponde aos seus ideais de organização do país e de liberdade. Entrou nas listas do falecido presidente socialista Alfredo Calado, em 1982, e logo em duas frentes, para a assembleia municipal e para a câmara. Tomou posse na assembleia, mas nem aqueceu o lugar. Em menos de um ano já estava na câmara como vereador do Desporto e da Cultura.
No mandato inicial fez o primeiro regulamento do pavilhão municipal, organizou os transportes escolares, que até então não existiam, e impulsionou a construção da escola secundária. O Governo de então, liderado por Cavaco Silva, não queria fazer a obras, mas Eurico Henriques teimou e fez um estudo exaustivo sobre a educação no concelho e o número de alunos que tinham de ir estudar para Santarém. A escola acabou por nascer em 1986.
Com a criação do PRD em 1985 e a passagem de Alfredo Calado para o novo partido, o PS de Almeirim, fragilizado e desorganizado, viu-se aflito para apresentar uma lista à câmara. Eurico Henriques chegou-se à frente porque ninguém queria ser cabeça-de-lista. “Não tenho medo de perder ou ganhar. Se é para ir, é para ir mesmo”, realça. Ficou na oposição, mas Alfredo Calado atribuiu-lhe os pelouros da Acção Social, Saúde e Trânsito.
Nas eleições seguintes integrou a lista do colega de profissão, José Sousa Gomes, que levou o PS a reconquistar a câmara, mas com maioria relativa, o que obrigou a um acordo com o PRD. Acabou por afastar-se da política por não concordar com a promoção individual e os comportamentos do presidente, que faleceu em 2016, três anos depois de sair do cargo que ocupou duas décadas.
Eurico Henriques é autor dos livros “Coisas Urgentes - Almeirim 1920; Absolutistas e liberais em Almeirim” e recentemente lançou a obra “A Igreja do Divino Espírito Santo – um espaço de memórias”. Tem publicados vários cadernos e artigos sobre história local.
Não há património classificado para se evitar conflitos
O pórtico do Paço dos Negros tem gerado discussões políticas há muitos anos, mas parece que não há vontade de recuperar o monumento.
A câmara adquiriu, na década de 90, algumas parcelas que estavam divididas por elementos da família Fidalgo. Na altura a associação fez uma proposta de salvaguarda, mas a câmara não quis saber. Há também a preocupação de tentar recuperar o que existe no terreno adjacente, onde passa a ribeira, e instalar uma horta pedagógica.
Já há um projecto?
Apresentei um projecto para salvaguardar o pórtico, na ordem das centenas de milhares de euros, que tem de passar por resolver o problema dos moradores que ainda estão no local. Numa visita com os arquitectos verificou-se que uma moradora fez um anexo sobre a parede do pórtico, o que é ilegal. A câmara tem de demolir a construção.
Porque é que se demora tanto a fazer obras no património?
Sei que este projecto já devia estar pronto há muito. Mas as apetências e as opções da câmara, mesmo no actual executivo, não vão nesse sentido. Outro problema tem a ver com o facto de muito do nosso património estar nas mãos de privados. E é muito mau negociar com privados e encontrar pessoas sensíveis a estas questões.
Os seus colegas de executivo não lhe ligam importância quando começa a falar de património?
Não, não ligam. Temos uma atenção, que é benéfica para a população, em relação à dotação do concelho de equipamentos desportivos. É mais aquilo que é atractivo e mostra mais figura.
O património não dá votos.
Na minha perspectiva acho que dá. Por exemplo, foi muito importante a recuperação da Igreja do Espírito Santo.
Só tem projecto para Paço dos Negros?
Outro projecto que tenho é de recuperar a fonte de S. Roque, que está em risco. Precisamos de um técnico para consertar abóbadas. Também queremos recuperar o moinho à entrada de Almeirim. Fizemos um contrato com o proprietário. O terreno entre o moinho e o combro da vala pertencia à câmara. Entregámos o terreno em troca do moinho, por 20 anos.
Porque é que Almeirim é um concelho com pouco património quando tem uma história rica?
Tudo o que era construção antiga já foi destruído. O que poderia ter sido feito era em determinados espaços ter-se estudado o subsolo. Porque quanto às construções, às paredes, na área da cidade não há grande coisa de valor patrimonial. Tenho-me dedicado ao estudo da evolução de Almeirim e agora sei que o concelho não aparece com D. João II, mas Afonso V, em 1479.
Como é que as construções históricas desapareceram?
No século XIX houve grandes destruições, quando os lavradores começaram a ter rendimentos e construíram em cima de habitações mais antigas.
Mas fizeram-se alguns atentados ao património nas décadas de 80 e 90…
Temos o caso da casa de Manuel Rodrigues Pisco, da segunda metade do século XVIII, que estava integrada num espaço perfeitamente identificador da evolução da terra, no largo do rossio (frente ao antigo tribunal). Um dia passo por lá e a casa, que pertencia à Misericórdia, já não existia. Hoje é um parque de estacionamento. Foi um dos maiores atentados à estrutura urbana da cidade.
O que é que ainda há de valor em Almeirim?
A Ermida do Calvário, do século XVIII, é um monumento dos melhores que temos, mas é privado e foram feitas alterações que não deviam ter sido feitas. Temos o pórtico do Convento da Serra, do século XVI, que é muito mais importante que o de Paço dos Negros, e que também está nas mãos de privados. Há ainda as igrejas de Benfica do Ribatejo e da Raposa, que são do século XVI, ou a igreja de Almeirim, apesar de já ter sofrido alterações.
Porque é que não há património classificado?
A lei diz que tem de haver uma faixa de protecção de 50 metros. Essa situação cria problemas gigantescos. Uma pessoa que tem construções nesta faixa está sujeita a restrições. A câmara não quer entrar em conflito com as pessoas e as classificações não avançam.
O que é que classificaria?
Pessoalmente diria que com valor para ser classificado há o pórtico de Paço dos Negros, mas sem gente que só arranja guerras; a Ermida do Calvário; os palácios da Alorna e do Casal Branco e o pórtico do Convento da Serra. Mas para isso os proprietários, que ficariam isentos de IMI, têm de concordar.
Ruas de pedra não são património
As ruas de pedra na cidade são de preservar?
Estas ruas não são património. As calçadas de seixo surgem na década de 30, quando houve uma crise na agricultura. O Estado apoiou as câmaras para ocuparem a mão-de-obra agrícola. Foi uma solução encontrada para resolver a falta de trabalho.
Devia ser tudo alcatroado?
O problema é que não se pode colocar o alcatrão por cima das pedras. É preciso arrancar tudo e fazer o nivelamento do solo. Mais cedo ou mais tarde os executivos municipais têm de começar a tratar desta situação. Não fossem os custos elevados já não havia ruas de pedras.
Em Almeirim há muita gente que sabe tudo
Criou a Associação de Estudo e Defesa do Património do Concelho de Almeirim, mas nunca conseguiu dar-lhe grande visibilidade. Foi para não afrontar o seu partido?
Os fundadores foram-se desligando da associação e fiquei praticamente sozinho. Tive que recorrer a outras pessoas e fomos fazendo algumas actividades, mas nunca com a projecção que era necessária. Apesar das dificuldades, conseguiu-se fazer algumas coisas importantes, como a salvaguarda do património arqueológico do concelho. Salvámos alguns documentos importantes que existiam no antigo edifício das Finanças.
A associação teve que comprar alguns documentos?
Comprámos um arquivo de uma casa importante em Almeirim. Quer dizer, foi comprado pela associação, mas quem pôs o dinheiro fui eu. Era o presidente e o patrocinador. Gastei dinheiro, mas era uma obrigação minha para que não se perdesse o património.
As pessoas valorizam a defesa do património?
Para se defender o património temos sempre de chocar com alguém. Ameaçaram-me com processos em tribunal por ter denunciado actos de destruição de vestígios arqueológicos. Comecei a evitar o confronto e isso acabou por fazer com que a associação não tivesse uma acção mais interventiva. Embora possa ser pouco aceite, tive de moderar os comportamentos e atitudes.
Ser vereador retira-lhe independência enquanto dirigente associativo?
Não pode haver parceirismos. Tento sempre evitar isso. Tento aproveitar o conhecimento que tenho, a experiência ao longo dos anos no contacto com as pessoas, para o trabalho como vereador.
Não se sente limitado para reivindicar algo que possa afectar a imagem do PS?
A associação já teve conflitos com a câmara no período do presidente Sousa Gomes, por causa de algum património que desapareceu e por causa dos moinhos da Ribeira de Muge. A desculpa era sempre a mesma: falta de dinheiro. Hoje, sendo vereador, discuto as situações e apresento os projectos no seio do executivo camarário. O problema continua a ser a falta de dinheiro.
Sendo vereador, podia usar a sua influência para mobilizar pessoas para a associação.
Isso é um perigo. Não gosto de misturar as coisas e podem vir a pedir contrapartidas, o que para mim não é admissível.
Parece que não há gente interessada em história e património…
Em Almeirim há uma coisa que me espanta, que é muitas pessoas acharem que sabem tudo e não admitirem o conhecimento do outro. Há muito individualismo. Podemos partilhar ou discutir uma ideia, uma informação, não porque estamos a diminuir a pessoa, mas porque é um processo normal de melhoria de conhecimento.