Entrevista | 06-01-2021 18:00

A luta de Vera Ferreira para salvar o minderico

A luta de Vera Ferreira para salvar o minderico
ENTREVISTA COMPLETA

Vera Ferreira, 44 anos, é linguista documental e arquivista digital no SOAS - Instituto de Línguas Mundiais da Universidade de Londres. Apaixonou-se pelo minderico, língua falada em Minde, concelho de Alcanena, há cerca de 20 anos.

Frederico jordar uma piação com um/a terraiazinho/a. Qual o significado desta frase?

Quero namorar com um rapaz/rapariga. Mas vê lá se não é melhor “dar às de João da Penha”.

Como assim?

Se não é melhor fugires para não te meteres em problemas (risos).

Qual é a tua expressão favorita em minderico?

O minderico é uma variedade linguística muito peculiar. Eu gosto de “ser António Forno” de alguma coisa, que significa estar apaixonada por algo. Por exemplo, “aqui a covana é António Forno de a piar à modeia” (gosto muito de falar minderico).

Como surge o interesse pelo minderico?

Nasci na Batalha. Há muitos anos, o meu pai foi trabalhar para Minde e levou-me um pequeno livro com algumas palavras em minderico. Fiquei logo com “a da borboleta na chaveca” e a partir daí procurei aprender e investigar mais sobre a língua. O minderico foi o principal motivo por que me especializei em documentação de línguas ameaçadas.

És o rosto principal de um projecto que quer salvar o minderico…

Salvar é uma palavra muito forte. Só os falantes podem salvar uma língua em extinção. Eu ajudo à luta. A língua é um bocadinho da nossa humanidade e da nossa variedade enquanto seres humanos, porque nenhum de nós é igual e seria muito triste se todos falássemos a mesma língua. A diversidade cultural e linguística é uma riqueza que deve ser preservada.

Cada pessoa tem a sua própria língua?

Pode dizer-se que sim. Maneja-se a língua dependendo das necessidades de cada um. Claro que há uma estandardização que é conseguida através da escola, meios de comunicação ou do mercado de trabalho. O meu vocabulário é diferente do teu porque a minha experiência foi diferente da tua. Por isso é que quando uma língua se extingue também desaparece um pedaço da humanidade.

E também desaparece o conhecimento associado à língua.

Sim. No caso do minderico há muitas palavras que só fazem sentido se utilizadas nessa língua. Eles têm formas verbais específicas. Há muitas palavras relacionadas com a fauna e a flora que não existem em português, mas estes são apenas dois exemplos de muitos outros. No dia em que morrer o último falante de minderico, todo esse conhecimento também desaparece.

Que solidariedades tens tido nessa missão?

Trabalho com a língua há cerca de 20 anos. Estava a trabalhar na Alemanha quando me juntei a uma equipa de quatro pessoas e decidimos candidatar-nos a um projecto da Fundação Volkswagen que tinha um programa de documentação de línguas ameaçadas. O financiamento desse projecto foi o pontapé de saída para a formação do Centro Interdisciplinar de Documentação Linguística e Social (CIDLeS). Achei que Minde seria o local ideal para implementar o centro porque sou a favor de uma política de descentralização, apesar das enormes desvantagens, porque corremos o risco de ser associados apenas a Minde e ao minderico. Mas perguntavas-me sobre apoios locais, é isso?

Sim. A autarquia, por exemplo, tem participado na luta?

Infelizmente o CIDLeS não tem sido muito apoiado em Alcanena, apesar de haver um reconhecimento do nosso trabalho. Somos vistos mais como uma instituição ou colectividade. Quisemos colocar o ensino da língua nas Actividades Extracurriculares mas nunca conseguimos. A nível municipal não têm existido solidariedades suficientes.

Qual a razão para o desinteresse?

De certa forma até os percebo, embora não os compreenda. Quem tem de fazer mais pelo minderico são os próprios falantes. Se não transmitirem a língua aos seus filhos, se não a usarem diariamente, como é que a classe política vai apoiar a sua preservação? Temos que ser muitos a mobilizar a população para que faça a sua parte; depois os políticos fazem a deles.

O que nos falta saber sobre o CIDLeS?

O centro tem duas pessoas da terra, a Rita Pedro e o Pedro Manha, a trabalhar afincadamente. Mas o CIDLeS não trabalha só com o minderico. Estamos com um projecto para treinar falantes de barranquenho de maneira a conseguirem revitalizar a língua. Temos outro projecto, que ainda não se iniciou, em Miranda do Douro também no sentido de formar falantes daquela região. Fizemos parte de uma outra iniciativa (Projecto Frontespo), que estuda todas as variedades linguísticas da fronteira entre Portugal e Espanha. E tivemos mais um outro projecto, que se chama LangUp, que pretende criar condições de empregabilidade dentro das comunidades com língua ameaçada. Por exemplo, se um restaurante em Minde exigir que o candidato saiba falar minderico, pode ser uma motivação para a pessoa aprender a língua. São pequenos pormenores que podem fazer toda a diferença na preservação do património e da identidade de um povo.

Quantos falantes ainda existem?

Minde chegou a ter uma população com cerca de oito mil habitantes e no auge da indústria têxtil cerca de três mil falavam minderico. Actualmente devem existir cerca de 150 falantes, mas só aproximadamente duas dezenas falam fluentemente a língua.

O minderico é uma língua ou um dialecto?

O nosso trabalho prova que é uma língua. Dialectos são uma variedade regional da língua, como quando vamos ao Porto e ouvimos falar “à moda do Porto”. No Algarve ou em Lisboa temos outros dialectos. A língua surge a partir de um socialecto. Estima-se que se fale entre 6.500 e 7.000 línguas em todo o mundo. Se pensarmos que existem 193 países reconhecidos oficialmente, conseguimos imaginar a pluralidade linguística que existe.

E em Portugal quantas línguas existem?

Oficialmente reconhecidas existem o português, mirandês e a língua gestual. Há outras que não são reconhecidas como o barranquenho ou minderico.

As línguas extinguem-se porque as tradições também vão morrendo e os meios rurais sofrem o problema da desertificação?

Genericamente é isso. Mas há outros problemas culturais que levam à extinção das línguas, depois há ramificações que infelizmente não se aguentam, como é o caso das línguas ameaçadas. São sempre mais as línguas que morrem do que aquelas que surgem.

A identidade de um país não pode sair afectada por ter várias línguas?

Nem pensar, um país pode ter várias línguas. Por exemplo, sou da opinião que Portugal e Espanha podiam ser um só país onde se falavam as duas línguas. Seríamos muito mais fortes se fossemos a Península Ibérica enquanto entidade administrativa e territorial, com os seus governos locais. O português e o espanhol têm quase 90 por cento da gramática e do vocabulário iguais. A pronúncia é diferente, os sons são diferentes, mas se lermos um texto em espanhol percebemos quase tudo.

Qual a tua opinião sobre o acordo ortográfico? Estamos a abrasileirar o português?

Já passei por três acordos ortográficos. Utilizo-o e acho sinceramente que não vem desvirtuar a língua nem aproximar-nos do português que se fala no Brasil. A escrita é apenas uma convenção. Antes de aprendermos a escrever, aprendemos a falar. Este acordo vem apenas fazer uma aproximação entre a ortografia e a oralidade. Quanto mais próxima ela for da oralidade mais fácil será para aquele que estiver a aprender a língua. Mas compreendo as vozes que se opõem. Somos, por natureza, adversos à mudança.

Se a língua fosse uma personagem era herói ou vilão?

As duas coisas. A língua pode ser usada para destruir ou salvar. Quem conseguir dominar a língua consegue mudar o mundo para o bem ou para o mal.

Uma imagem vale mais do que mil palavras?

Combinar a imagem com as palavras é o ideal de qualquer cultura de qualquer país do mundo. É inegável que vivemos num mundo digital e muito visual. Mas, claro, é importante pensar numa estratégia para revitalizar a palavra e torná-la mais interactiva.

Como é que isso se consegue?

Adaptando a escrita às novas tecnologias, por exemplo. Gosto de ler um livro em papel, mas o meu filho, de 10 anos, prefere ler no tablet. É uma evolução que não conseguimos controlar e à qual temos de nos adaptar.

“Um mundo sem doutores era um mundo melhor”

Utilizas mais o “tu” ou o “você” quando te diriges a alguém?

Tento utilizar o “tu” o maior número de vezes possível. Mas essa questão só existe por causa da transição social do antigo para o moderno. O “você” vem de “vossa mercê”, que implica um eu submisso. Hierarquicamente estamos abaixo e, por respeito, não nos colocamos ao mesmo nível. Na Alemanha, por exemplo, é sempre a pessoa mais velha, independentemente do grau académico, que dá autorização para tratar por tu. A idade é que conta e não o canudo. Em Portugal as coisas não são assim.

Em Portugal ninguém vive e trabalha sem a muleta do doutor ou do engenheiro?

Vou dar-te um exemplo de como isso é verdade. E garanto que Portugal vai pagar caro esse atraso cultural em relação ao resto da Europa. Quando fui para a Alemanha, uma das primeiras coisas que o orientador do meu doutoramento me disse foi para o tratar pelo nome. Em Portugal às vezes não sabes os nomes das pessoas porque te é exigido que as trates pelo título académico que têm.

Um dicionário que vai às raízes da língua

O Dicionário Bilingue Piação – Português, criado e editado pelo CIDLeS, foi elaborado depois de uma inventariação exaustiva do léxico minderico, recorrendo a entrevistas com falantes, gravações de eventos, fontes linguísticas, históricas e geográficas, entre outras. Aqui ficam seis exemplos de palavras que pode encontrar no dicionário: “a do Aníbal” – bicicleta ; “bailadeira” – saia; “a do Camões” - pátria ; “moma” – festa ; “manuel sousa” – pénis ; “teresa da gaga” - vagina.

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