Os lares estão feitos para os ricos e a assistência aos idosos é uma bomba relógio
Rui Benavente é dirigente associativo desde a juventude. Foi seccionista de atletismo no União Atlético Povoense, presidente do Grémio Dramático Povoense e sucedeu a João Quítalo, depois da sua morte, como presidente da Associação de Reformados e Idosos da Póvoa de Santa Iria (ARIPSI), cargo que quer exercer até 2025. Militar de profissão, é conhecido por nunca deixar de dizer o que pensa e nesta entrevista mostra tristeza por ver a cidade transformar-se na capital do betão e critica o Estado por se aproveitar das associações de solidariedade para gastar pouco com os idosos.
Com a morte de João Quítalo, em 2018, passou a presidente da ARIPSI. Como foi assumir essa responsabilidade?
Foi complicado e tive de estudar bastante os dossiês. Quando entrei o João Quítalo gozava de boa saúde. Era o mentor da casa, foi ele que fez crescer a associação juntamente com a Agripina Moreira. Quando começou o tratamento contra o cancro pensámos que ia melhorar, mas o seu estado de saúde agravou-se bastante e rapidamente. Chegámos a reunir em casa dele para o inteirar dos assuntos. Mesmo doente sempre quis saber como estava a associação e a decisão dele era sempre a última. A sua morte foi uma tristeza para todos.
Chama-o de “Mestre Quítalo”…
Chamo mestre a muita gente na Póvoa de Santa Iria. As pessoas que deram alguma coisa à comunidade e são um exemplo para toda a gente têm o direito a ser tratadas por mestres. Para mim mestre não é só quem tirou um curso superior, é a pessoa que é um exemplo de vida.
Como está a ARIPSI hoje?
Estamos bem, embora passando as dificuldades que todas as associações atravessam. Temos um orçamento de um milhão de euros e devemos acabar o ano com um prejuízo de cem mil euros. Ser dirigente associativo hoje só significa deveres e nada de direitos. Está na hora de se darem benefícios aos dirigentes associativos nem que seja através de regalias no IRS. O tempo dos dirigentes à borla, mais tarde ou mais cedo, terá de acabar. O modelo actual em que as pessoas dão de si às associações funciona bem em terras pequenas. Mas nas grandes cidades, onde o contacto e vivência pessoal é diferente, é mais difícil.
Fazem quase de borla um trabalho que deveria ser o Estado a fazer.
O Estado encontrou nas associações parceiros que são bons e baratos. No lar, o que o Estado paga das camas protocoladas com a Segurança Social não chega a um terço do custo total que temos com cada uma, que ronda os 1.400 euros. A maioria das reformas dos utentes são de 300 e 400 euros. Como é que conseguimos pagar as despesas? Sou obrigado a pagar mal aos funcionários. As pessoas mereciam ganhar mais, mas as associações não têm capacidade financeira para isso. E encontrar pessoal para trabalhar é cada vez mais difícil. Preferem ficar em casa a viver do rendimento social…
Depois de duas décadas a apostar na educação é preciso começar a olhar para os idosos?
Com o ritmo de vida que temos hoje ninguém tem hipótese de ter velhotes em casa. Somos uma associação e não existimos para fazer lucro, mas não podemos fugir à realidade de um quarto particular custar-nos 1.400 euros por mês. Soma-se a isso as despesas com medicamentos. Os lares estão feitos para pessoas ricas e os outros não têm hipótese. Embora sejam mais as pessoas que não podem pagar do que as que podem. Chegam-nos famílias aflitas sem saber o que fazer aos idosos. Temos uma fila de espera próxima da centena e só temos 59 camas. Quando se fala em cuidados continuados os custos sobem três ou quatro vezes. E pior ainda nos cuidados paliativos. O problema dos idosos na região é uma bomba relógio prestes a explodir.
A Póvoa perdeu duas associações no último ano por falta de dirigentes. Porque é que as pessoas não se interessam pelas instituições?
Vivemos tempos em que toda a gente critica, mas na hora de passar o testemunho ninguém aparece. Quem anda no associativismo fá-lo porque gosta de congregar e dar um pouco de si à comunidade. Um sentimento de bem-fazer colectivo. Mas muita gente não é assim. Se fossemos mais altruístas teríamos um mundo melhor. Vivemos na sociedade das redes sociais, da malta sentada no sofá. A cultura de hoje é estar no sofá, olhar para a televisão, criticar, beber cerveja e chamar malandros e piratas a toda a gente.
Admite que a associação venha a cair num vazio directivo?
Prometi ao João Quítalo ficar até 2025 e conto cumprir essa promessa. Depois não sei. Começa a ser difícil encontrar pessoas novas para estes cargos. A solução que se arranjou na última assembleia-geral foi manter a actual direcção até aparecer outra. O associativismo consome cada vez mais tempo e estamos numa sociedade materialista em que todo o trabalho tem de ser remunerado.
O excesso de betão, o palco com um metro e o caos que a Vila Rio vai gerar
Como é que olha para a sua terra?
Tem melhorado muito, mas está desgovernada na construção civil com casas a mais e poucos espaços públicos. Só temos a Quinta da Piedade e a zona ribeirinha, muito bem aproveitadas. Mas depois somos um monte de betão com estacionamento caótico. Temos problemas de trânsito e o centro de saúde está subdimensionado para as necessidades. Se isto já está caótico agora, imagino quando fizerem a urbanização Vila Rio.
Não concorda com a obra?
Vai-nos tirar a vista do rio e meter ainda mais carros nos velhos acessos que já estão congestionados. É um exagero. Aquela zona devia ser um espaço de excelência para se fazer um parque urbano e desportivo onde todas as associações estivessem sediadas, onde se pudessem fazer espectáculos culturais, desportivos e as festas da cidade. Estas decisões urbanísticas deviam ter sido mais pensadas e a população devia ter sido ouvida. A Póvoa é cada vez mais um dormitório. A pouca indústria que havia está a fechar. As pessoas estão a ir trabalhar para fora. Devia-se preservar melhor os espaços que temos senão ficamos só com um monte de betão, carros e mais nada.
Muita gente o conhece pelo seu papel enquanto presidente do Grémio Dramático Povoense e por ter sido um dos pais do novo centro cultural. É o espaço que queria?
As negociações para o centro cultural demoraram 15 anos. Para mim o espaço ideal era no antigo Cine-Nazaré, que poderia ter sido recuperado e cedido ao Grémio. Infelizmente esse não foi o entendimento da câmara que acabou por comprar o edifício apenas para o demolir e fazer nesse sítio uma coisa que nem sei o que lhe chamar… A alternativa que nos deram, de ocupar o antigo mercado da Póvoa, é pequeno, como sempre dissemos. No primeiro projecto que nos apresentaram o palco tinha um metro por um metro. Foi surreal.
Continua a ser a sala de espectáculos mais pequena do concelho.
Basicamente houve uma reunião com a câmara em que nos fizeram um ultimato: ou levávamos aquele centro cultural ou não levávamos nada. O tempo veio provar que tínhamos razão. O espaço é exíguo. As 100 pessoas que o auditório leva não cabem todas na sala de espera do edifício ao mesmo tempo. Os camarins são no primeiro andar e se por acaso algum actor precisar de mudar de roupa tem de se arranjar um espaço improvisado atrás das cortinas. O Grémio faz sentido e merece estar num espaço mais urbano da Póvoa. A cidade precisa de um espaço cultural maior e universal que possa servir toda a gente.
Um militar que convive mal com a injustiça
Rui Benavente tem 58 anos, nasceu em Paio Pires, concelho do Seixal, mas foi viver para a Póvoa de Santa Iria com três anos e por isso só se identifica com a cidade ribatejana. É oficial da Força Aérea Portuguesa onde fez carreira desde os 18 anos na defesa e controlo aéreo. Está na reserva até ao final do ano, altura em que pensa aposentar-se. Casado, pai de dois filhos, já serviu em bases da Madeira, Paços de Ferreira, Ota, Monsanto, Montejunto e ainda esteve deslocado quatro anos em serviço na Alemanha. Diz que nunca deveria ter sido abolido o serviço militar obrigatório e que toda a gente, pelo menos uma vez na vida, devia passar pela carreira militar. “É uma escola para educar e disciplinar. Não fica mal a ninguém saber fazer a cama, passar roupa a ferro e saber preparar uma refeição. As coisas básicas da vida, como o respeito pelas pessoas, os nossos símbolos e a nossa história aprende-se nos militares”, conta a O MIRANTE.
Dirige a ARIPSI, com 66 trabalhadores e que dá assistência a mais de três centenas de utentes em lar de idosos, apoio domiciliário e centro de dia. Rui Benavente foi treinador e seccionista de atletismo do União Atlético Povoense, que diz ser o seu primeiro clube, seguido do Sporting. Esteve oito anos ligado ao Grémio Povoense e sonha, depois de acabar a missão na ARIPSI, poder viajar com a mulher e conhecer melhor Portugal. Gosta de música dos anos 80 e está a reler a Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal. A sua primeira - e única - experiência como actor foi na peça teatral “O Príncipe Nabo”, no Grémio, uma experiência que diz nunca mais esquecer. Tira-o do sério a injustiça, a falta de civismo e a falta de humanidade. Diz que as pessoas da Póvoa são o seu melhor orgulho.