Entrevista | 28-09-2021 07:00

“Sou toureiro: não aceito que me chamem assassino”

“Sou toureiro: não aceito que me chamem assassino”
João Silva “El Juanito” vai enfrentar 6 toiros numa das corridas da Feira de Outubro em VFX

João Silva “El Juanito” é, aos 21 anos, uma das maiores figuras portuguesas do toureio a pé. Já triunfou em praças emblemáticas como Las Ventas, em Madrid, ou a Real Maestranza de Sevilha. O seu próximo desafio é na Feira de Outubro, em Vila Franca de Xira, onde vai enfrentar sozinho seis toiros, numa Palha Blanco que se prevê esgotada. Uma conversa com O MIRANTE sobre o seu percurso ligado à tauromaquia e as consequências de assumir com orgulho ser um matador de toiros.

Victor Mendes, um dos mais conceituados toureiros portugueses de sempre, é o mestre e apoderado de João Silva, “El Juanito”

A praça de toiros Palha Blanco, em Vila Franca de Xira, vai ser palco, durante a Feira de Outubro, de uma corrida que se espera memorável e que tem como protagonista João Silva “El Juanito”. Aos 21 anos, o toureiro natural de Monforte já é considerado figura maior em Espanha, tendo triunfado em praças emblemáticas como Las Ventas, em Madrid, e a Real Maestranza de Sevilha. Filho do bandarilheiro João Silva, começou a brincar aos toiros aos três anos. Antes de atingir a década de vida já dava espectáculo no Campo Pequeno, em Lisboa, para aflição da mãe que inicialmente sofria com a sua presença em praça. João Silva considera-se um homem de família e tem no seu irmão mais novo, Rodrigo, o braço-direito e confidente.

Diz que foi obrigado a tornar-se homem mais cedo e que a Escola de Toureio José Falcão, em Vila Franca de Xira, foi o local ideal para assimilar valores como a honestidade, respeito, educação e resiliência. A conversa com O MIRANTE decorreu na Palha Blanco, na presença do seu mestre e apoderado, e um dos mais conceituados toureiros portugueses de sempre, Victor Mendes.

Uma entrevista onde não se escolheram palavras e que traduz integralmente a ambição de um jovem que confessa, sem hesitar, ter uma paixão na vida: ser matador de toiros. João Silva sabe que a sua profissão (prefere chamar-lhe arte) está envolta em polémica e diz que sente isso na pele diariamente.

O que sente quando mata um toiro?

Fui educado a ser matador de toiros. Os toiros em Portugal são mortos no matadouro depois de terem jogado a vida e de terem lutado por ela, mas vão num camião sedados e passam dois dias cheios de dores e febre. Isso é que é sofrer.

Há dignidade em matar um toiro?

Numa praça um toiro morre com dignidade; morre a lutar pela vida. É um mano a mano em que só há um vencedor: o homem ou o toiro. Lembro-me do primeiro novilho que matei, em Andilla, Espanha. Entretanto já matei mais de 300, no campo e em praça.

Mata mais facilmente um toiro do que um coelho?

São diferentes, mas posso afirmar que sim. Dou a minha vida para enfrentar um animal com 600 quilos e levantar milhares de pessoas emocionadas.

Sente medo? Olho para o medo como uma prova diária que consigo superar através da ambição, do querer e da disciplina. Honestamente, tenho medo de cobras, mas de morrer em praça não. Estou mentalizado que o toiro me pode tirar a vida a qualquer momento.

Como é o dia de um toureiro?

O meu é muito activo. Levanto-me todos os dias às 08h30 para correr com a minha quadrilha cerca de 10 quilómetros; depois fazemos treinos muito exigentes de toureio em salão, almoçamos juntos e à tarde voltamos para o salão para treinar a parte técnica.

Como é que a família e amigos reagem ao facto de ser toureiro?

A minha mãe, inicialmente, não aceitava por tudo o que já passou com o meu pai. É perfeitamente compreensível e aceitável. Desde os 12 anos, quando fui para Espanha, que deixei de ter os amigos de infância. Todos os meus amigos são muito mais velhos e por isso tive de me tornar homem muito novo.

Sente mágoa por isso?

Não, porque vivo sensações que não estão ao alcance da maioria das pessoas. Há uma sensação de poder, de grandeza, de afirmação e respeito dos outros que são indescritíveis.

Ser toureiro obriga-o a ter muitas discussões?

Hoje já não perco tempo com isso porque sinto-me dono e senhor do meu destino. Mas já fui, e continuo a ser, ameaçado muitas vezes, inclusive de morte, e chamam-me assassino. Defendo-me sempre com classe e educação respeitando a democracia das opiniões. Os fundamentalismos não deviam existir na sociedade.

Há algum argumento anti tourada que o aborreça?

Talvez o pior de todos é chamarem-nos assassinos, embora na realidade, mais nenhum me aborreça porque não os considero válidos. No entanto, entendo que haja pessoas que não gostem da emoção e dureza do espectáculo.

Como vai reagir se tiver um filho que não aceita o que faz?

Vou tentar mostrar-lhe o meu ponto de vista e o que considero ser verdade. Se não aceitar, tenho que compreender. O meu problema, mais uma vez, não são as pessoas que não gostam, mas sim as que nos atiram pedras por nós gostarmos.

E se a tourada acabar? Não é fácil de responder a essa pergunta... Eu vivo para o toiro!

Falta coragem aos políticos para defenderem a tauromaquia?

O que se passa numa praça de toiros acaba por ser o espelho do que se passa na sociedade. Actualmente, a corrida de toiros é uma arma de arremesso a nível político. O toiro bravo não é igual aos animais domésticos, mas é essa a ideia que procuram passar. Não somos foras da lei, pelo contrário. É um espectáculo que a nível de impostos é dos que mais paga e por isso custa ouvir chamar-me assassino.

O SUCESSO DEPENDE DA TRAGÉDIA E DA LOUCURA

Como foi a primeira vez numa arena?

Com público foi na feira Ovibeja. Como a minha mãe tem raízes em Beja decidiram meter-me a tourear um bezerro no final de uma corrida. Mas foi aos 9 anos, na Praça do Campo Pequeno, em Lisboa, num encontro de escolas taurinas, que me senti a triunfar pela primeira vez.

O que sente antes de entrar na arena?

Depende muito do momento emocional e físico que esteja a viver. Tento respeitar o ditado “cabeça fria, coração quente”. A estabilidade é o segredo, mas desde que estou em Espanha e depois de tanto triunfo, e alguns fracassos, ganhei maturidade e aprendi a lidar melhor com as emoções. Sei que um dia posso morrer nos cornos de um toiro, mas a verdadeira essência do artista está em saber disfrutar de situações extremas.

Considera-se um artista?

Sem dúvida! Não gosto da palavra profissional porque o meu objectivo é emocionar as pessoas. O mais difícil para o artista, seja na música ou na pintura, é emocionar o público com o seu estilo e carisma.

Tem algum ritual?

Tenho algumas manias, mas o único ritual é benzer-me. Acredito que Deus me protege e talvez por isso tenha optado por esta vida. Mas também tenho fé em mim e na minha dedicação.

Levou muitas cornadas?

Algumas, sendo que as piores foi uma parte de trás do joelho esquerdo, outra na perna direita e uma que me furou a mão de um lado ao outro (mostra as cicatrizes). Este ano já fui colhido algumas vezes e é sempre doloroso, claro.

Como é que lida com a possibilidade de morrer?

Não tenho tempo para pensar nisso! Ninguém consegue jogar a vida sabendo que a tem em risco. O sucesso e o prazer estão directamente ligados à tragédia, dor e loucura.

É verdade que cansam os toiros para serem lidados?

Já ouvi muitas pessoas dizerem isso, mas é uma afirmação ridícula. O toiro é o animal mais protegido e cuidado de todas as espécies, nomeadamente pelos veterinários. O sorteio antes de uma corrida é público, qualquer um pode ir ver.

Acredita na ideia de que os touros não sentem dor quando se espeta a bandarilha?

Está totalmente comprovado pelos veterinários; se te baterem, foges, mas o toiro não o faz quando espetam a bandarilha. Provavelmente sentem alguma coisa, mas nada que possa ser apelidado de tortura, como se ouve na praça pública.

Sente que há pessoas que se chegam ao pé de si por interesse?

Em Espanha chamam-se os “chupómetros” (risos).

Cortou muitas orelhas e rabos?

Felizmente sim. Embalsamo e guardo em casa os toiros mais importantes na minha vida.

Qual é a sua melhor lide?

Quando cortei duas orelhas em Sevilha. Há duas semanas também indultei um toiro, que é uma sensação incrível porque perpetuamos a grandeza do animal. Os deuses do toureio estiveram comigo.

“O público de VFX é entendido e admira a arte de tourear”

Gosta de vir ao Colete Encarnado e à Feira de Outubro?

Infelizmente nunca tive oportunidade de as viver como espectador. O ano passado toureei com a Palha Blanco esgotada e agora espero que aconteça o mesmo e que saia triunfador.

Vai ter a Palha Blanco só para si na Feira de Outubro. Está nervoso?

Estou muito tranquilo. Sei que o público de Vila Franca de Xira é muito entendido e admira a arte de tourear. Vou entregar-me de corpo e alma e arriscar a minha vida mais uma vez. Vou tentar que as pessoas se divirtam e que Vila Franca de Xira volte a ter aquelas tardes de “afición” memoráveis. Aqui nasceram os grandes vultos do toureio em Portugal e quero respeitar esse legado.

O que aprendeu na Escola de Toureio José Falcão?

Aprendi valores como honestidade, educação, respeito e, sobretudo, a ser um bom ser humano. O maestro Victor Mendes é um exemplo e uma referência para os mais novos. Tem sido muito importante na minha caminhada porque tem uma personalidade muito vincada e se perceber que tens potencial nunca mais te larga. Nesta escola não se mente nem se criam ilusões na cabeça dos miúdos.

Tem orgulho nas suas origens?

Sou natural de Monforte, no Alentejo, terra de grandes toureiros e grandes ganadarias. O meu pai é bandarilheiro profissional e desde pequeno que me ensinou a tourear e levava-me para corridas. O destino trouxe-me, aos 10 anos, para Vila Franca de Xira para frequentar a Escola de Toureio José Falcão. Foi aí que soube que tinha que ser toureiro e que Espanha seria o meu destino final. Tudo começa como uma brincadeira, um sonho, e quando damos conta torna-se absolutamente necessário para a nossa vida.

Quais são as melhores memórias de infância?

Tenho recordações preciosas da Quinta de Santo António com o mestre João Moura. Aos 7 anos chegava a tourear meia dúzia de vacas num dia. Mas do que mais tenho saudades é de ir com o meu irmão mais novo e com a minha mãe ver as corridas do meu pai. Ao início era um sofrimento, mas depois habituamo-nos.

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