Entrevista | 28-11-2022 15:00

“A música precisa de entrar nos bairros desfavorecidos e desviar jovens de maus caminhos”

“A música precisa de entrar nos bairros desfavorecidos e desviar jovens de maus caminhos”
Daniel Manuel é maestro e compositor tendo apresentado a sua primeira obra na Igreja de Santo Estêvão, concelho de Benavente

Daniel Manuel é um maestro e compositor que tem feito um percurso ligado à região ribatejana.

No dia da estreia da sua primeira obra, em Santo Estêvão, falou da importância da criação de projectos sólidos e dinamizadores que cativem as camadas jovens para a aprendizagem musical. Diz que os músicos não servem só para tocar em eventos solidários e que a cultura precisa de se tornar um hábito de consumo.

Aqueceram as vozes, afinaram os instrumentos e ouviram do maestro palavras de agradecimento por terem aceite tocar a sua primeira obra. Acalmaram os nervos, “mas sem relaxar demasiado” e alinharam-se por naipes junto ao altar. A Igreja de Santo Estêvão encheu para o concerto do maestro e compositor Daniel Manuel, que apresentou a sua primeira obra, “Missa ao Espírito Santo”, interpretada a duas vozes pelo Coro do Município de Benavente e octeto de sopros composto por músicos da Banda da Associação Cultural e Musical de Salvaterra de Magos, que actuaram juntos pela primeira vez alinhados numa formação transgeracional.
Maestro do Coro de Benavente e da Banda de Salvaterra de Magos, Daniel Manuel sentiu necessidade de comunicar através da música, a linguagem que melhor conhece e começou a ter, há ano e meio, aulas de composição musical das quais nasceu a sua primeira peça. “Queria algo meu, que transmitisse uma mensagem de algo que sempre esteve presente na minha vida, a fé que tenho em Deus”, afirma a O MIRANTE no final do concerto realizado no dia 13 de Novembro, em que contou com a participação da sua filha mais velha no clarinete, o seu instrumento de eleição.
A conversa, que se fez no último banco da igreja da aldeia, no rescaldo do concerto de estreia, passou pelo momento em que descobriu a sua paixão pela música na Filarmónica de Santo Estêvão, pela importância que o ensino assume na coesão da sociedade e pela necessidade de fazer com que a aprendizagem musical chegue a lugares e a estratos sociais onde continua a não se fazer ouvir.
O que falta para que a arte deixe de ser rotulada como um passatempo e seja vista como uma oportunidade de carreira? Falta perceber que um músico, um bailarino, um escultor, pintor, compositor ou maestro têm uma profissão como outra qualquer e que não são superiores nem inferiores a ninguém. Um músico faz a sua arte, mas os concertos são o seu trabalho. Falta entender que os músicos não servem só para tocar em eventos de solidariedade, embora ache que devam estar disponíveis para isso. Depois falta criar projectos sólidos, como orquestras, companhias de dança, grupos de teatro, o que podia ser feito através de entidades como as comunidades intermunicipais. Evitava que os músicos, por exemplo, tivessem que andar sempre à procura de projectos, formassem orquestras e bandas que acabam quando se esgotam os subsídios comunitários e que trabalhassem de forma precária e sem estabilidade. E falta, claro, ao Estado perceber que a cultura é fundamental para criar pontes entre as pessoas e as suas diferenças.
Que papel têm ou podem ter as filarmónicas na dinâmica cultural e aprendizagem da música? Têm um papel fundamental. Comecei aos nove anos na Banda da Sociedade Filarmónica de Santo Estêvão e muito do que sou devo-o à minha passagem por lá, que durou 25 anos. Nesses grupos há pessoas de todas as idades, credos, classes sociais e cores políticas. Costumo dizer que as bandas filarmónicas são o melhor espelho da sociedade, onde todos são diferentes e trabalham para um objectivo comum, sem nunca esquecerem que não estão a tocar sozinhos, que precisam de ouvir o outro e respeitar o momento do outro brilhar. Há uma base de valores que bem transmitidos podem fazer de qualquer um melhor pessoa.
É hoje mais difícil cativar os jovens para o ensino da música? A dificuldade tem a ver com os projectos e a forma como são dinamizados. Se olharmos para a Academia de Música Salvaterrense, na qual sou director pedagógico e professor de clarinete, há perto de 100 crianças e jovens a aprender música, por isso, se olhar para esta realidade não posso dizer que é difícil cativar. Se olhar para outras realidades a resposta é diferente.
Ou seja, o que faltam é projectos que consigam cativar e chegar às camadas jovens? Sim, projectos como a Orquestra Geração que leva a música onde não existia. A música precisa de entrar nos bairros mais desfavorecidos e ajudar a desviar os jovens dos maus caminhos. As filarmónicas podiam fazer esse papel mas para isso precisavam de outro tipo de apoios. É verdade que as câmaras municipais apoiam, mas diria que é um apoio para o dia-a-dia e não para se conseguir implementar um projecto social.
Como é que se consegue tornar a música, nos seus mais variados estilos, num hábito de consumo da sociedade? A cultura, no geral, precisa de passar a ser um hábito de consumo. E para isso é importante que se criem públicos para as iniciativas que se realizam nas salas de espectáculos, sejam elas organizadas por escolas de música, grupos de teatro ou pelas câmaras municipais, como é o caso da Temporada da Música de Benavente. Lembro-me que quando era miúdo a câmara nos vinha buscar a Santo Estêvão para assistirmos aos concertos e no final traziam-nos de volta a casa. Isso é criar público. Foi numa dessas vezes que assisti pela primeira vez a um concerto da Orquestra da Gulbenkian no antigo Centro Cultural de Benavente e admirei instrumentos que nunca antes tinha visto. Para se dizer que se gosta e se passar a repetir é preciso experimentar, tal como os alimentos.
Recorda-se do dia em que recebeu o seu primeiro instrumento musical? Chorei nesse dia porque pensei que já não ia receber o clarinete. No meu tempo antes de, na banda, nos passarem um instrumento para as mãos tínhamos que aprender solfejo até ao fim do livro e aquilo não me estava a correr nada bem. Mas, no final, o maestro Jorge Silva entregou-me o clarinete que levei nesse mesmo dia para casa.
Ainda compra CDs ou passou a ouvir tudo digitalmente? Eu e as novas tecnologias não somos os melhores amigos. Embora compre menos CDs actualmente, continuo a achar que o suporte físico é importante; é como os livros, não consigo ler em formato digital.
É um puritanista ou ouve de tudo? Tenho os meus estilos de eleição mas não sou um puritanista. Assumo preferência pela música erudita e música sacra. Falando em compositores, destaco Ravel, Mozart e Bach.

Um maestro que vive exclusivamente da música

Daniel Manuel tem 38 anos e é natural de Santo Estêvão, aldeia do concelho de Benavente. Descobriu a sua paixão pela música, e em particular pelo clarinete, na Sociedade Filarmónica de Santo Estêvão quando tinha nove anos. Estudou no Conservatório Regional Silva Marques, em Alhandra, e no Conservatório Regional de Setúbal. Com apenas 19 anos foi dirigir o Coro do Município de Benavente. Sete anos depois ingressou na Escola Superior de Música de Lisboa e licenciou-se em clarinete.
Tem a sorte de poder dizer que vive exclusivamente da música enquanto técnico superior da Câmara de Benavente tendo como funções dar aulas de música às crianças do Agrupamento de Escolas de Benavente e dirigir o coro do município. Tarefas que concilia com a direcção da Banda de Salvaterra de Magos e Academia de Música Salvaterrense.

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