Entrevista | 28-02-2023 15:00

Há doentes num sofrimento atroz para quem a morte é um alívio

Há doentes num sofrimento atroz para quem a morte é um alívio
Joaquim Costa é director clínico no Hospital CUF Santarém após ter trabalhado 30 anos como cirurgião no Hospital Distrital de Santarém

Joaquim Costa é director clínico no Hospital CUF Santarém, para onde foi após três décadas como cirurgião no serviço público.

Saiu do Hospital Distrital de Santarém porque queria certificar o serviço de cirurgia e a administração metia sempre outras coisas à frente. Lamenta que os médicos que instalaram o novo hospital e que muito fizeram por ele não tenham sido reconhecidos. Diz que a politização das administrações, das chefias é que começaram a destruir os hospitais públicos, mas acredita que as coisas estão a mudar. Considera que o seu tempo de vida ideal é os 75 anos de idade e refere que a sociedade não está preparada para o prolongamento da vida.

Os médicos hoje passam mais tempo a olhar para os computadores do que para o doente. É importante sabermos adaptar-nos a estas situações porque os doentes não deixam de ser pessoas por terem um monitor de computador entre eles e o médico. Nas minhas consultas nunca escrevo ao mesmo tempo que falo com os doentes. Se não houver uma ligação com o doente não se é médico.
Porque é que saiu do Hospital Distrital de Santarém para o privado? Quando concorri a director de serviço apresentei no concurso um projecto de acreditação e certificação da qualidade do serviço de cirurgia do hospital distrital, que estava a entrar um pouco em declínio. Fui falar com o director clínico, Pinto Correia, e com o administrador, José Josué, que aceitaram. Fiquei com a vaga, mas a administração tinha sempre coisas mais importantes para fazer. Ao fim de um ano de insistência pedi a exoneração do Serviço Nacional de Saúde.
Saiu magoado? Um bocadinho. Porque achava que era um projecto importante para o serviço e que ia mudar muita coisa.
Os médicos saem do SNS porque não são valorizados? Muitas vezes os motivos das saídas não têm a ver com a parte dos honorários apesar de poderem ter alguma influência. Queremos fazer muitos projectos e investigação, sobretudo quando somos mais novos, e os hospitais públicos, tirando alguns, estão a ficar fora disso. Antigamente ainda tínhamos ajuda extra-hospitalar, por exemplo da indústria farmacêutica que ajudou muito o serviço público. Mas depois começou a ser mal visto. Agora ou os médicos fazem isso por sua conta ou não fazem.
Ainda se lembra quando começou a trabalhar como médico? Fiz a transição do antigo hospital no centro da cidade para o novo. Nessa altura o hospital tinha uma geração de médicos brilhantes que veio para Santarém na altura do 25 de Abril, todos conotados com a esquerda. A direcção era de direita. Mas conseguiram ver que os 15 médicos que vinham de Lisboa eram pessoas extraordinárias e que fizeram um hospital extraordinário. Infelizmente não foram reconhecidos e alguém o devia ter feito.
Porque é que os médicos que elevaram o Hospital de Santarém não foram homenageados? Porque entrou a política nos hospitais. As administrações e algumas chefias foram politizadas e isso ajudou a destruir os hospitais. Acho que agora se está a recuar. Está-se a voltar a por as pessoas e o hospital em primeiro lugar. Nas novas gerações a cor política já não é tão importante.

Os doentes que não esquece e as duas mortes que não saem da cabeça

Qual foi a situação que mais o incomodou? Duas situações em que os doentes morreram sem haver uma explicação, sem ser previsível. Vou sempre tentar encontrar explicações. São situações que marcam. As tentativas que fizemos para salvar as pessoas continuam a estar na minha cabeça.
Alguma vez ao longo da carreira teve medo? Tenho medo quando estou a tratar um doente e percebo que a situação não está a correr bem. Isso transtorna-me. Como é que lido com isso? Durmo mal, estudo, falo com colegas. Falo com os doentes e há aqueles que percebem que também temos as nossas limitações. É isto o que me perturba na profissão. Não me assusta ter que trabalhar mais horas.
Vai ao psicólogo quando as coisas não lhe estão a correr bem? Já fui. Numa altura mais complicada. Porque nós estudamos, fazemos concursos para subir na carreira e tratamos doentes.
Há doentes e doentes? Há doentes que nos marcam pela sua personalidade. Há pessoas extraordinárias e não é preciso serem pessoas diferenciadas. Tenho vários doentes que não esqueço e que nunca irei esquecer. Faz parte da nossa profissão.
Até quando é que gostava de viver? A minha idade ideal de vida é aos 75 anos, digo e sinto isso. Mas posso com a idade mudar de ideia. Tinha um colega cirurgião que dizia que nunca o havia de ver no jardim a jogar à sueca, a comer bolachas e algaliado. Não nos podemos esquecer que as pessoas antigamente viviam menos tempo. Vá a alguns países africanos e tente encontrar um velho na rua.
Qual é o impacto do prolongamento da vida na sociedade? Não sei se estamos preparados para isso. Conheço um cientista que só trabalha em longevidade e diz que daqui a uns anos 20% da população mundial vai ultrapassar os 100 anos de idade. Não estamos preparados, económica e socialmente, para esta realidade.
Tem medo da morte? Tenho medo da dor, da física e da psicológica. Já vi muitos doentes que tiveram muita dificuldade em morrer e para eles a morte era um alívio. Sofreram tanto para morrer. Há doenças terminais que acarretam um sofrimento atroz. Pensar que isso é uma coisa que me pode acontecer…
É apologista da Eutanásia… Não concordo com a Eutanásia no sentido em que uma pessoa que aos 18 anos percebe que tem uma doença neurológica que não o vai deixar chegar aos 50 anos e quer acabar com a vida. Porque a Medicina está sempre a evoluir e ainda pode haver uma solução. Os médicos toda a vida, de certa maneira, colaboraram um bocadinho com as situações de limite de vida que não têm resolução.
Como é que os médicos colaboram com esse limite de vida? Se tem um doente terminal a sofrer, não tem maneira de recuperar essa pessoa, e o doente lhe pede qualquer coisa para as dores e lhe dá petidina (analgésico) está a contribuir para acabar com o sofrimento, mas também com a vida. Porque a petidina afecta o sistema respiratório e afecta qualidades do organismo. Por outro lado, o doente pode não querer continuar a ser tratado, por exemplo, e temos que respeitar a sua vontade.
Sente-se aliviado quando alguém desiste dos tratamentos porque já não há nada a fazer? Só tive um doente, que tinha um tumor no pâncreas, que me pediu isso. O que se deve fazer nestas alturas é tirar a dor. Não há razão para deixar um doente ter dores e sofrer numa fase destas. Mas se acharmos que o doente tem a mínima das hipóteses temos de o informar.

As pessoas não têm tempo para estarem doentes e os médicos já não querem estar longe da família

Porque é que há cada vez mais pessoas doentes? Há mais factores de risco, como a poluição, a alimentação… O facto de as pessoas viverem mais anos e terem abrandado nos últimos anos os rastreios e a medicina preventiva também tem influência. Os dois anos de Covid-19 vai também fazer-nos sofrer nos próximos 15 anos. Não faz ideia do número de pessoas que desmarcaram consultas nos hospitais. Em termos cirúrgicos as situações apareciam-nos no início. Era raro aparecer um cancro no intestino já em estado muito avançado. Agora parece que andei 20 anos para trás.
Porque é que isso acontece? As pessoas não têm tempo para estarem doentes porque o trabalho é mais importante e há que ganhar dinheiro para sustentar a família. As pessoas vão-se deixando ficar para trás.
As pessoas antes eram mais resistentes? Não se pode viver eternamente. Temos uma esperança média de vida na casa dos 84 anos. As pessoas acham isso normal. Se uma pessoa com essa idade for atropelada e morre numa operação o foco vai ser porque é que ela morreu durante a cirurgia e não porque andava na rua ou atravessa a estrada fora da passadeira. Há sempre quem me dê um exemplo de um familiar que tem 95 anos, que é saudável e nunca foi ao médico. Mas por cada pessoa dessas há 100 familiares de outras pessoas que estão acamados nas enfermarias, nos corredores dos serviços hospitalares ou nas urgências. As pessoas nem sonham o que eles estão a passar, nem nos hospitais nem nos lares.
No Ribatejo ainda há uma cultura de que para se ser homem tem de se beber uns copos. Tratando várias doenças relacionadas com o consumo de álcool, como é que vê esta situação? O álcool mata mais que qualquer droga conhecida. Não vejo fazerem-se campanhas de sensibilização para os problemas do álcool. O grande investimento seriam campanhas nas escolas. Os professores deviam ter também alguma formação para estas questões. Era fundamental nas aulas de cidadania haver uma sensibilização sobre o tema. Não sei é se as direcções das escolas ou os órgãos políticos locais acham importante a literacia em saúde.
Há um problema com a excessiva administração de antibióticos, há doentes sobremedicados. Os médicos também precisam de uma campanha de sensibilização? Os departamentos de qualidade dos hospitais privados, não sei se nos públicos também, estão a sensibilizar os médicos para esta problemática. Já tive doentes a perguntar-me se não lhes receitava nada porque acham que quando vão ao médico têm de levar uma receita de um medicamento. Hoje em dia é muito mais grave a resistência provocada pelos antibióticos do que correr o risco de falhar uma terapêutica.
As pessoas estão mais doentes porque têm menos amor, porque fazem menos amor? O stress baixa a imunidade. Temos uma parte do nosso cérebro que regula automaticamente várias funções, como as glândulas, a quantidade de ácido que o estômago produz, etc. Por exemplo, a força de contracção do esfíncter anal em pessoas com stress é de tal maneira que provoca fissuras. É uma situação que aparece uma vez por mês. Mas durante a Covid-19 não havia semana que não aparecessem dois ou três doentes com esse problema. Há pessoas que tiveram uma situação de stress gravíssima, como a morte violenta de alguém que lhe é próximo, e que no ano a seguir aparecem com um cancro.
Ficar no sofá a ver filmes é uma forma de descansar e aliviar o stress? Não! E para a coluna vertebral é péssimo.
Um bom médico tem de ter notas muito altas? É isso que define um médico? Não! Os médicos com notas altíssimas, dos 20 valores, têm características próprias. Escolhem especialidades em que não tenham de fazer urgências, onde há menos contacto com os doentes. Hoje as pessoas vão para Medicina, mas não querem abdicar de certas coisas como estarem fora da família 24 horas.

A necessidade de um sistema de saúde, o trabalho dos médicos e as Parcerias Público-Privadas

Há mesmo um verdadeiro Serviço Nacional de Saúde? Em vez de se falar em Serviço Nacional de Saúde deveria falar-se em sistema nacional de saúde, que envolvesse hospitais públicos, privados, misericórdias e que trabalhassem em conjunto. As gestões privadas têm coisas que não existem no público como trabalhar mais para a eficiência. Assisti à entrada dos primeiros administradores hospitalares e ficou-se a pensar que ia ser o descalabro e não foi assim.
Não se vê vontade em que exista uma conjugação de esforços entre todos os sectores da saúde. Estou no privado, já estive no público. Um médico não deve ser um funcionário público, nunca. Indirectamente há essa colaboração. Há médicos que vieram para Santarém porque sabem que podem complementar a sua actividade no público com o privado.
A ideia que as pessoas têm é que os médicos só pensam em dinheiro. Porque não sabem quanto é que ganha um assistente hospitalar, que ao fim de doze anos, seis anos de curso e seis de especialidade, ganha 1.700 euros. Isto desmotiva as pessoas. Não digo que um médico tem de ser muito mais bem pago que outras profissões, mas deve ser raro encontrar um engenheiro com o mesmo tempo de trabalho que ganhe menos que um médico.
Há falta de médicos ou de produtividade? Um cirurgião que opere dois doentes por mês ganha exactamente o mesmo que um, na mesma categoria profissional, que opere 50 doentes.

Nunca gozei uma folga. não era obrigatório e agora é

Isso quer dizer que os médicos do público trabalham menos? A questão não é trabalharem mais ou menos, mas a de poderem trabalhar de outra maneira, serem estimulados de outra forma. Puseram os sistemas de controlo de entradas e saídas e pensaram que iam regular a produtividade dos hospitais. Enganaram-se redondamente. Tal como se enganaram com a passagem das 42 para as 35 horas de trabalho. Porque é que não há obstetras? Não é porque fugiram para o privado como dizem. É por causa dos horários. Fiz bancos de urgência durante anos, nunca gozei uma folga, tal como muitos colegas. Porque na altura não era obrigatório gozar folgas e agora é.
É preciso construir mais hospitais? Portugal não tem dinheiro para ter a quantidade de cuidados de saúde que tem. Os administradores gerem o défice dos hospitais.
Nunca houve coragem para diferenciar o acesso aos cuidados de saúde públicos em que os que têm mais rendimentos devem pagar mais? Isso tem a ver com a política. Se comparar a quantidade de seguros de saúde que há agora em comparação com há cinco anos é uma coisa impressionante. Isso acontece porque as pessoas sentiram-se inseguras.
Resumindo: a saúde anda mal tratada… Somos portugueses e temos sempre a noção que as coisas estão sempre más. Há pontualmente coisas que estão a correr mal, mas no global os nossos indicadores de saúde são bons. O que podia ser melhor era gastar-se o dinheiro de uma forma mais criteriosa, ter menos desperdício, aumentar a produtividade.
O Hospital de Vila Franca de Xira é um caso paradigmático de uma unidade que funcionava bem com uma gestão privada e agora com uma gestão pública está um caos. Consegue entender a decisão de correr com o privado que dava menos despesa ao Estado? As Parcerias Público-Privadas foram boas. O Tribunal de Contas disse que os doentes foram tratados de uma maneira mais barata e mais eficiente. Mas depois entrou a política. Alguém achou que era mais importante um ideal político do que os doentes terem melhores cuidados.

Filho e neto de médicos que podia ter sido agrónomo

Foi no último minuto de entregar a candidatura ao ensino superior que teve um impulso de escolher Medicina. Até então tinha metido na cabeça que havia de ser engenheiro agrónomo só para ser do contra e não seguir a tendência de duas gerações de médicos na família. Deixou a ideia de tratar das propriedades que a família materna tinha na zona de Santarém e tornou-se cirurgião. Foi o avô, que era obstetra, que o trouxe ao mundo no antigo Hospital de Santarém, que muitos anos depois seria aproveitado para a instalação do ISLA.
“Ainda bem que mudei para Medicina porque adoro a minha profissão”, realça Joaquim Costa, nascido em Santarém em Outubro de 1957. Diz que já podia estar a descansar de uma profissão que sente como muito desgastante, que envelhece as pessoas mais rapidamente, mas diz que não tem espírito para reformado sem nada para fazer. Esteve três décadas no Hospital Distrital de Santarém e foi um dos médicos que fez a transferência para o novo hospital. Todos os anos fazia voluntariado durante 15 dias, tendo passado por Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Sudão…
Na sua passagem pelo hospital público orgulha-se de, em 2006, ter montado uma das 16 unidades de cirurgia bariátrica no país para o tratamento da obesidade que ainda hoje é uma referência. Vive em Cascais, a 150 metros do hospital da cidade, desde que começou a ser médico. Escolheu Santarém e prometeu que nunca iria deslocalizar a família. É nas viagens de carro que trabalha o que não tem tempo no serviço. Pensa em causas, em tratamentos, dita o que lhe passa pela cabeça para um gravador. Quer que lhe digam se acharem que não está mais em condições de operar e nesse dia deixa de o fazer.
É um homem sensível, humano, que se incomoda com o que não corre bem e está sempre a pensar em projectos. Este ano quer fazer uma unidade de cirurgia de ambulatório para as hérnias inguinais na CUF Santarém. Nos tempos de estudante passou por vários colégios internos. Era um aluno médio. Gosta de touradas, é um entusiasta de largadas de toiros e picarias, que lhe valeram algumas mazelas em jovem como uma clavícula partida. Fez natação de competição nos 100 metros livres. Nadou tanto que hoje quando olha para o fundo azul de uma piscina fica nauseado.

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