Entrevista | 06-03-2023 10:00

Inês Ramos fez da luta contra a dor uma missão de vida

Inês Ramos fez da luta contra a dor uma missão de vida
Inês Ramos conversou com O MIRANTE no jardim urbano de Azambuja, que tem nome do seu pai e ex-autarca Joaquim António Ramos, onde gosta de fazer piqueniques com a filha

Inês Ramos foi vítima de violência na infância, flagelo que só terminou quando a sua custódia foi entregue ao pai, o ex-autarca de Azambuja, Joaquim Ramos.

A partir daí, decidiu que ajudaria crianças a voltar à superfície da vida. A sua passou-lhe algumas rasteiras, com um aneurisma a lembrá-la que a morte é uma inevitabilidade que chega sem avisar. Em dois anos publicou dois livros, testemunhos que quer deixar na vida da filha.

Para se focar no essencial da vida Inês Ramos teve de ser confrontada com a possibilidade de poder morrer a qualquer instante. Ter um aneurisma e, como se isso não bastasse, um tumor cerebral fizeram-na ter consciência da mortalidade que traz dor mas, ao mesmo tempo, a faz valorizar o momento vivido. Licenciada em Sociologia com especialização em Família e Sociedade e em Exclusão Social trabalhou com crianças que, tal como ela na infância, sofreram de violência doméstica.
Já na Câmara de Azambuja, onde trabalha, ajudou a desenvolver o projecto pioneiro Be More - Educação pela Arte que visa a inclusão de jovens e promoção do sucesso cívico e educativo. Recentemente lançou o seu segundo livro onde, através da música, procura levar o leitor a reflexões; depois do primeiro, feito de histórias do seu quotidiano, pretender arrancar gargalhadas.
Nesta entrevista a O MIRANTE, que decorreu no jardim com o nome do seu pai, o ex-presidente da Câmara de Azambuja, Joaquim António Ramos, falecido em 2021, fala das memórias da infância marcada pela violência e da luta judicial que o seu pai travou para conseguir a sua guarda. O sentido de humor vertido no primeiro livro herdou-o do pai; o mesmo não se pode dizer em relação à política que coloca no mesmo patamar do queijo, o pior alimento que lhe podem dar a provar: “simplesmente não entra” porque não tem jeito para diplomacias. Poder continuar a ver crescer a filha de oito anos é o desejo maior da mulher de 43 anos que aprendeu a ser mãe “graças ao exemplo do pai”.

O que a levou a seguir especialização em Exclusão Social? Ter sido vítima de violência doméstica por parte da minha mãe, que era alcoólica, levou-me a decidir ter duas missões na vida: ser a melhor mãe que pudesse ser um dia e ajudar crianças que estivessem a passar pelo mesmo. Achei que devia instrumentalizar a dor e conhecimento para ajudar outros. Aos 21 anos achava que ia salvar todas as crianças vítimas de violência.
Conseguiu salvar algumas? Consegui salvar muitas. Na Câmara de Lisboa lidava directamente com crianças vítimas de violência doméstica e fazia uma intervenção activa com as famílias. Oferecia-me para dormir num espaço comunitário porque sentia que quando olhavam nos meus olhos percebiam que eu sabia como se sentiam.
Lidar com as histórias dos outros faziam-na reviver as dores da infância? Não me causou mais dor. Tenho tudo bem arrumado mas, naturalmente, há situações que são gatilhos como assistir a pais a bater nos filhos. Lembro-me que no dia em que saí de casa a minha mãe, aos 10 anos, não me deixou levar nem um par de cuecas. Mas fui, de mão dada com o meu pai, sem chorar; foi como se tivesse nascido novamente.
Perdeu o contacto com a sua mãe? Completamente. Durante um tempo ainda observei se estaria disposta a fazer uma mudança mas verifiquei que não e decidi que a minha vida não iria ter espaço para ela porque, afinal, ela nunca tinha tido espaço para mim. A pior coisa que um ser humano pode sentir é que o seu pai ou a sua mãe não o ama, renega e bate. É muito violento e por isso voltei a página. Não sei se ainda é viva, se a perdoei mas sei que transformei a minha dor para conseguir diagnosticar a dor nos outros.
O seu pai teve que travar uma batalha judicial dura para conseguir a sua custódia mesmo havendo provas de maus-tratos. Ainda sofrem os pais com algum tipo de preconceito na hora de o tribunal decidir as responsabilidades parentais? Ainda existe, mas quero acreditar que caminhamos numa sociedade que reconhece que o amor tanto pode vir do pai ou mãe biológica, de pais adoptivos ou homossexuais. Há 30 anos era muito difícil um pai ficar com a custódia de um filho; inquestionavelmente era atribuída à mãe mesmo não tendo condições para cuidar. O meu pai teve que provar arduamente em tribunal que a minha mãe não era capaz de cuidar de mim e da minha irmã. Teve que reunir testemunhas, inclusive da escola onde nos viam chegar magoadas e com nódoas negras.
Ter sido diagnosticada com um aneurisma mudou a sua forma de encarar a vida? O aneurisma mudou a minha vida. A minha preocupação era saber o que ia descongelar para o jantar do dia seguinte e de repente, com 30 anos, passou a ser se ia acordar no dia seguinte. Continuo a acreditar no amanhã mas percebi o quão importante é dizer às pessoas o impacto que têm na nossa vida. Percebi que não devemos dar nada por garantido, nem despender a nossa energia com coisas supérfluas e que devemos focar-nos no essencial. Porque, embora haja quem pense que sim, não temos todo o tempo do mundo.
O que é para si o essencial da vida? É ter saúde e estar com a minha família. É dar o melhor como mãe e fazer com que os que me são próximos saibam que me têm na vida deles por inteiro.
O aneurisma cerebral é, por norma, uma doença silenciosa. No seu caso houve sintomas? Não, nunca tinha tido uma enxaqueca. O que aconteceu foi que por ter falhas menstruais foram pedidos exames e descobriram um macro adenoma na hipófise e, acidentalmente, o aneurisma. O médico disse que não sabia como é que ainda não tinha rebentado.
Falta à sociedade elogiar mais vezes os profissionais de um SNS debaixo de fogo constante? Falta à sociedade elogiar e perceber que médicos, enfermeiros, auxiliares estão a tentar dar o melhor de si e têm, de um modo geral, um grande espírito de compromisso. Na altura em que a minha filha tinha dois meses, e eu não sabia se a ia voltar a ver, não me esqueço da humanidade com que fui tratada. O email que escrevi a agradecer, passado um ano, ainda estava afixado na parede do hospital.
Como surge a paixão pela escrita? Surge na altura em que vivia com a minha mãe. Como queria passar despercebida ia para debaixo da cama escrever histórias e pensamentos.
Visita esses escritos da infância? Quando descobriram o aneurisma sugeriram-me fazer psicoterapia porque é um processo violento esta incerteza do amanhã. Às vezes sou convidada a revisitar esses lugares.
O seu pai encorajou-a a lançar o primeiro livro, “Larguem-me a Cueca”, e foi bem sucedido. Nunca a incentivou a entrar na política? Várias vezes falou sobre isso porque me tinha como uma pessoa justa. Só que existe uma liberdade que a política não nos dá e quero ter a liberdade para gostar de alguém ou não, para escolher ter determinada pessoa no meu caminho ou não. A política, além de exigir disciplina e uma maturidade que não tenho, exige a diplomacia de ter que engolir muitos sapos. Engulo muitos, mas engulo os que quero.
Alguma vez pesou ser filha do autarca Joaquim António Ramos? Claro que pesou. Muita gente não me vê como Inês mas como a filha do Joaquim António Ramos. E se por um lado é bom, porque o meu pai era estimado, por outro é como se não reconhecessem o meu valor. Há um capítulo no meu livro que foi escrito para essas pessoas. Chama-se “Assobia para o lado”. Porque vivermos reféns do que os outros pensam de nós é uma batalha perdida na qual não devemos perder tempo. Não devemos sentir necessidade de ter que provar quem somos.
Depois de lançar o primeiro livro disse que não tinha intenção de ir ao segundo, mas foi e no final do ano passado foi publicado “Segue!Mar calmo nunca fez bons marinheiros”. O que a fez mudar de ideias? O “Segue!” surge nos meses a seguir à morte do meu pai, que era também a minha mãe e melhor amigo. Cada capítulo é começado com uma música que me ligava a ele e o leitor é convidado a ouvi-la antes de me ler. Escrevi-o para me tentar tirar daquele lugar de dor. Mas escrevi-os sobretudo para a minha filha porque devido à doença pensei: e se um dia desapareço? Por muito que lhe falem de mim gostava que me conhecesse ao ponto de, se um dia precisar de um conselho e eu já cá não estiver, saiba exactamente o que lhe diria. Depois de ser publicado percebi a quantidade de pessoas que se identificaram. Há que normalizar o facto de por vezes não nos sentirmos bem e de precisarmos de ajuda porque isso não nos torna menores.

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