Entrevista | 07-03-2023 10:00

“É indesculpável Santarém ter aberto mão do CNEMA”

“É indesculpável Santarém ter aberto mão do CNEMA”
Carlos Guedes de Amorim é um arquitecto respeitado com vários projectos de autor em Santarém

Carlos Guedes de Amorim é um arquitecto respeitado, com vários projectos de autor em Santarém e não só.

Foi ele que desenhou o CNEMA, parque de exposições que considera não estar devidamente aproveitado e articulado com a cidade. Discorda do que o município pretende para futuro do Campo Infante da Câmara, pede bom senso aos autarcas e diz que o grande problema de Santarém é a falta de planeamento. O antigo fadista deixou de cantar mas continua a intervir pela sua cidade até que a voz lhe doa.

João Calhaz

Vive em Lisboa, tem negócios no Alentejo, ainda há espaço para Santarém actualmente na sua vida? Há, muito! Tenho a casa de família em Santarém, que tenho vindo a arranjar, e agora vamos arranjar a judiaria, o que me dá também muito gozo. Gosto muito de criar, é o que gosto de fazer.
É uma pessoa interventiva na vida da comunidade mas tem andado sempre arredado da política. É um meio que não gosta de frequentar? Nada! Tenho amigos em todos os sectores, desde sempre, mas quando estive no GAT de Santarém tínhamos uma determinação que seguíamos, que era a de não haver política. E essa situação do apartidarismo ficou-me para a vida toda.
É o arquitecto que projectou o Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas (CNEMA), em Santarém. É a obra de que tem mais orgulho? Tenho tido a sorte de conseguir fazer muitas obras em que me tenho empenhado. Aquela que tenho mais pena de não ter feito foi a da igreja esférica em Santarém. Era um projecto altamente inovador, que foi capa do Expresso na altura, mas infelizmente foi como um balão a quem tiram o ar. De repente caiu e ainda hoje não consigo perceber porquê. Tenho pena, porque, além de ser um projecto inovador, a arquitectura está na moda e Santarém precisa de ter elementos de atracção. É outra das razões porque acho que o Campo Infante da Câmara deve ter vários edifícios projectados por arquitectos de primeiríssima linha. Isso chama pessoas. Estamos a perder oportunidades em cima de oportunidades.
A que se deve isso? Há falta de ambição. Temos que administrar uma capital de distrito, não temos que administrar uma freguesia. Isto tem que ter escala, desenho urbano e tem que ser uma coisa com grandeza.
Voltando ao CNEMA: há quem lhe chame um elefante branco devido à sua dimensão e impacto visual. O conceito do CNEMA, que foi altamente debatido com as pessoas de então, como o José Manuel Casqueiro, o Ladislau Botas, etc…, não é aquilo que está lá agora. Falta-lhe algumas valências nomeadamente a componente desportiva. Mas aquilo é uma coisa privada. Aquilo pertence à CAP, que faz o que bem entende. E quem sou eu para estar analisar a gestão da CAP… O que posso é analisar enquanto autor do projecto e dizer que aquilo não está a funcionar de acordo com o conceito que tinha de início. Mas não acho que seja um elefante branco, embora pudesse ser administrado, eventualmente, de uma forma mais interessante para a própria cidade.
Acha que aquele espaço nobre está desaproveitado? Para a CAP naturalmente não está, mas para a cidade de Santarém evidentemente que está. A cidade de Santarém pôs-se a jeito quando tinha uma posição accionista importante e perdeu-a. Como é possível a cidade de Santarém ter aberto mão da posição que tinha no CNEMA? Acho isso absolutamente indesculpável. Agora, manda quem pode. Mas mesmo que aquilo fosse da cidade de Santarém não seria um elefante branco porque quando é utilizado a sério, o espaço, que achavam que era uma brutalidade, já não chega, como é no caso da Feira de Agricultura. Aquilo não é grande, aquilo tem escala, exactamente o que falta na cidade. Aquela avenida junto à rodoviária e a rotunda que lá está, evidentemente, não têm escala. O dimensionamento está errado. Quando um carro avaria entope tudo.
Quando olha para a cidade de Santarém gosta do que vê? Há coisas de que gosto e outras de que não gosto. Por exemplo, esta vista (das Portas do Sol para o Tejo e lezíria) é fantástica, mas a cidade herdou-a. Santarém tem todas as condições para ser uma cidade fantástica, pela envolvente paisagística e ambiental, pela proximidade a Lisboa, pelas infraestruturas rodoviárias que tem.
E do que gosta menos? A falta de planeamento na cidade é dramática. E a mesma coisa vai acontecer com a antiga Escola Prática de Cavalaria (EPC). Numa cidade com tanta história ligada à Liberdade, ao 25 de Abril, a EPC nunca devia ter saído daqui.
Essa foi uma decisão governamental… Se houvesse força política podia haver vontade governamental mas não era levada por diante. Da mesma maneira que quando quiseram tirar daqui os conventos, o Marquês de Sá da Bandeira opôs-se - e não estava no Governo - e conseguiu que os conventos não saíssem de cá.
A falta de força política de que fala se calhar decorre também da pouca mobilização da comunidade em torno dessas questões. Porque a cidade tem falta de auto-estima, a cidade não está coesa. E uma das razões para a cidade não estar coesa é não ter um centro. A tal história do fórum no Campo Infante da Câmara é uma questão política e não só de planeamento. É fundamental haver um fórum onde as pessoas dos vários níveis etários se juntem, falem e convivam.
Voltando à EPC. É uma dor de alma ver o estado em que está aquele complexo? O problema da EPC é que se não for feito um plano do que se pretende, a certa altura aquilo vai estar distribuído por várias coisas. O grande problema de Santarém, de facto, é a falta de planeamento.

“É complicado investir no centro histórico pelas exigências que são colocadas”

O centro histórico de Santarém é fonte de debate e preocupação há décadas. Há remédio para travar o definhamento da zona antiga da cidade? Acho que o centro histórico já foi mais problema do que é. Há vários privados a recuperar edifícios, nós vamos recuperar a judiaria... Fiz também o projecto para recuperar aquele espaço vazio em frente ao antigo Teatro Rosa Damasceno, que pertence ao Montepio, o que vai permitir arranjar toda aquela zona até às Portas-do-Sol.
Com excepção do antigo Teatro Rosa Damasceno, que se encontra bastante degradado. Nesse caso, penso que a solução terá que passar pela Câmara de Santarém… Mas os privados estão a recuperar o centro histórico e, por outro lado, a câmara também tem arranjado largos e outros espaços exteriores, que é um trabalho bem feito.
Os moradores queixam-se que para fazer simples obras de manutenção em edifícios do centro histórico de Santarém confrontam-se com inúmeros obstáculos e condicionamentos, por ser uma zona em vias de classificação como património de interesse público. Queixam-se e com razão. Há algum fundamentalismo em relação a determinados procedimentos, como as caixilharias, etc, etc… É complicado investir no centro histórico pelas exigências que são colocadas, não só pela câmara mas sobretudo pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).
Quando tem de se meter um processo de licenciamento para pintar uma fachada não há aí um excesso de zelo? Isso é um exagero. Se tenho um edifício pintado de branco com uma faixa azul e se vou pintá-lo de cores iguais não faz sentido ter de meter um projecto assinado por um arquitecto. Contra mim falo, mas para que é que preciso de um arquitecto para dizer que vou pintar a casa da mesma cor e tudo igual? Não faz sentido nenhum!
É admissível que a revisão de um Plano Director Municipal (PDM), como é o caso do de Santarém, leve mais de vinte anos a ser concluída? Não é só o de Santarém, são quase todos. Muitos dos primeiros PDM foram feitos à pressa, em vãos de escada, porque os municípios que não tivessem PDM feito não tinham fundos europeus. É claro que toda a gente fez. Constituíram-se gabinetes sem nenhuma preparação para fazer os PDM. Não foi o caso de Santarém, é evidente, mas o problema é que os PDM muitas vezes têm gravíssimos problemas. A começar logo na cartografia, que está errada, no cadastro, que está errado… E depois há muitos interesses à volta dos PDM e não vale a pena dizer o contrário, como esta história das áreas urbanizáveis e não urbanizáveis.
Um PDM que leva 20 anos a ser revisto, quando está concluída a revisão está novamente desactualizado. A revisão do PDM de Santarém, que está na fase final, não vai ter em conta a possibilidade de o concelho receber um aeroporto. Isso não tem de certeza, nem pode ter, porque essa questão do aeroporto surgiu agora. Se vier o novo aeroporto, e Deus queira que venha, a cidade terá de ser reorganizada em termos de planeamento. Esse é um equipamento de tal maneira importante que todo o planeamento que está feito tem de ser revisto em função dessa peça.
A candidatura de Santarém a património mundial foi uma oportunidade perdida? Santarém nunca foi tão estudada, tão escrutinada como foi por essa razão. Acho é que a Câmara de Santarém empenhou-se demasiadamente nisso e esqueceu-se de tudo o resto. E isso foi pena. O gabinete devia estar focado nesse projecto mas a câmara não devia estar tão focada nisso. Aquilo não correu bem mas não há dúvida que ficámos com um conhecimento fantástico sobre a cidade. A candidatura foi muito bem feita mas não atingiu os objectivos.
Há algum presidente da Câmara de Santarém que lhe tenha enchido as medidas? Trabalhei com vários. Vim, com o engenheiro Vasconcelos Horta, fazer o GAT (Gabinete de Apoio Técnico) de Santarém, um dos precursores no país juntamente com o de Beja, e trabalhei na altura com o dr. Francisco Viegas, então presidente da comissão administrativa antes das primeiras eleições autárquicas. O dr. Francisco Viegas tinha a visão do empresário, além de ser um homem muito culto e com um enorme sentido de humor, que eu estimava muito. Gostei muito de trabalhar com ele porque era tudo muito simples, como acho que não é agora.
Há alguma história que o tenha marcado? Um dia o dr. Francisco Viegas telefonou-me para o GAT a dizer que tinha uma coisa urgentíssima para resolver. Disse-me que uma câmara do norte tinha uma estrutura, uma cobertura e as máquinas todas para fazer uns tanques de aprendizagem de natação e não arranjou terreno, pelo que tínhamos 48 horas para arranjar o terreno para construir aquilo. Arranjámos o terreno em 48 horas e lá estão no Sacapeito os tanques que os outros não conseguiram fazer. Fomos à procura de alternativas, falámos com os proprietários e resolveu-se.
Provavelmente hoje não conseguiriam... A questão é que tem que haver uma vontade forte para fazer as coisas. Quando a pessoa está apertada não tem alternativas e tem de resolver. Quando há um desafio, uma coisa importante, estrutural para a cidade, tem que se dar um murro na mesa e tem que se resolver, doa a quem doer. Não pode é ficar por resolver.
Diz que não há massa crítica na cidade, mas há quem diga o contrário, que Santarém é uma cidade onde há vozes sempre a dizer mal, quer se faça quer não se faça. Dizer mal não é massa crítica. A crítica pela crítica é o pior do mundo. Porque os críticos, regra geral, nunca fizeram nada que não fosse a crítica. A crítica construtiva é muito mais trabalhosa, a outra é gratuita e muitas vezes é feia.

“O que querem fazer no Campo Infante da Câmara é uma situação de lesa-património”

Carlos Guedes de Amorim é um crítico dos esboços que professores da Faculdade de Arquitectura de Lisboa fizeram para a requalificação do Campo Infante da Câmara seguindo as ideias definidas pela Assembleia Municipal de Santarém. “O problema é que há falta de ambição, de auto-estima e de massa crítica na cidade. É absolutamente inacreditável que tenham dado aos professores da Faculdade de Arquitectura de Lisboa aquele programa. Vão encomendar uma coisa que não faz sentido. A ideia não era ter um edifício onde se mete tudo, era ter um espaço aberto com edifícios, para haver circulação de pessoas”, opina.
Autor de um projecto com muitos anos para o antigo campo da feira, defende a sua transformação num fórum aberto dotado de múltiplos edifícios arquitectonicamente marcantes, que o tornem no centro cívico “onde as pessoas dos vários níveis etários vivem, convivem e se cruzam em qualquer horário”.
“Temos que ter um centro. Isto é uma capital de distrito, não é uma freguesia. E os projectos que se fazem para uma capital de distrito têm que ter a escala de uma capital de distrito”, diz. É a favor da construção de uma grande biblioteca; de um museu à altura da história e património de Santarém, onde se possa expor o vasto acervo que se encontra guardado; e de um teatro que possa receber grandes espectáculos. É contra o projectado auditório até 600 lugares porque acha que Santarém já tem muitos auditórios e nem quer ouvir falar na possibilidade de se instalar nessa zona o futuro terminal rodoviário.

Terminal no antigo campo da feira é um erro

Sobre a eventual construção de um terminal rodoviário no Campo Infante da Câmara, mesmo que a título provisório, como está previsto nos esboços agora dados a conhecer, Guedes de Amorim diz que, a concretizar-se, é um erro. “Sabemos que o provisório em Portugal é igual a definitivo. O terminal vai ficar preso a Ricardo Gonçalves a vida toda. E acho que ele não merece, pelo que tem feito pelas finanças da câmara, pelos arranjos na cidade”, diz o arquitecto, que critica as linhas definidas pelos políticos mas também a inércia em relação à requalificação desse espaço. “As críticas não são a esta câmara, são às câmaras que vêm desde há 30 anos. O que esta câmara pode fazer é corrigir o que as outras não fizeram. A única coisa que espera é que haja bom senso pois esta é uma situação de lesa-património”, diz.
Carlos Guedes de Amorim é também autor do projecto de requalificação e remodelação da Praça de Touros Celestino Graça, propriedade da Misericórdia de Santarém, vizinha do Campo Infante da Câmara. Prevê-se a criação de uma zona comercial e tornar a praça de toiros utilizável para multiusos. Está também a estudar a possibilidade de cobertura do recinto, tendo consciência que não é uma opção barata.

Um arquitecto que em tempos foi fadista

Carlos Guedes de Amorim nasceu na casa de família, junto ao Jardim das Portas do Sol, em Santarém, no dia 28 de Dezembro de 1945. É filho único e tem uma filha, sendo descendente do marquês de Sá da Bandeira, Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, figura cimeira do nosso século XIX e um dos filhos mais ilustres de Santarém.
Guedes de Amorim formou-se na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, onde foi professor durante 14 anos. É autor de projectos emblemáticos, em Santarém e não só. O do Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas (CNEMA) e o da remodelação e transformação em espaço multiusos da Praça de Touros de Évora são dois exemplos. A sua vida reparte-se por Lisboa, onde reside, pelo alto Alentejo, onde tem um empreendimento turístico junto à albufeira do Caia, e por Santarém, onde mantém a casa de família que já vai na sexta geração e que frequenta com regularidade.
Não tem amarras políticas nem pruridos em dizer o que pensa. Admite que pode ser uma voz escutada pelo poder político mas ressalva, com humor, que o que diz deve entrar por um ouvido e sair pelo outro. Em tempos cantou o fado, que conciliou com a arquitectura, e alinhou com nomes icónicos da canção, como Alfredo Marceneiro, João Braga ou Maria Teresa de Noronha. Gravou discos, cantou em múltiplas casas de fado, passou pela televisão, rádio e por diversos palcos, nacionais e internacionais. A sua biografia está disponível no site do Museu do Fado. Deixou de cantar porque a voz mudou de timbre.

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