“O padre que pisar o risco sabe que tem de sair”
O bispo de Santarém garante que a Igreja afastará padres abusadores e diz que a comissão independente deve disponibilizar todos os dados que tiver para que os bispos possam fazer o que lhes compete.
Em entrevista a O MIRANTE, D. José Traquina nega uma relação de causalidade entre pedofilia e celibato. Sobre o caso do padre condenado em funções nas paróquias de Santarém, mostra-se disponível para ouvir os fiéis.
Os holofotes têm estado virados para a Igreja devido aos casos de abusos sexuais. Está a ser uma fase atribulada para os bispos, que têm responsabilidade na tomada de decisões? O processo é discutível. Podemos achar que as coisas podiam ser mais bem conduzidas, mas interessa perceber os objectivos. Os bispos manifestaram claramente que estavam interessados em resolver este problema e isso foi o ponto de partida. Há uma unanimidade em que isto [os abusos] não pode acontecer na Igreja seja com padres ou outras pessoas. Portanto estou convencido que o objectivo vai ser atingido no meio destas dificuldades, isto é, todo o agente pastoral que pisar o risco em termos de abuso de poder ou confiança sabe que tem de sair. Não vai haver um bispo que pense em transferir um padre de um lado para o outro, não pode acontecer.
A transparência e a comunicação por parte da Igreja são fundamentais numa fase destas? Sim, mas houve dificuldades porque há coisas que não são faladas. Na relação da comissão independente [para o estudo de abusos sexuais contra crianças na Igreja Católica] com a Conferência Episcopal houve acolhimento, mas podia-se ter falado mais vezes, ter-se cruzado informações. Aparecerem casos de pessoas que já faleceram há muitos anos, e em que o Ministério Público não tem interesse, mostra que podia ter sido de outra maneira. Se houve uma denúncia que chegou à comissão independente esta deve fornecer informação, porque senão um bispo não pode fazer o que lhe compete.
A Diocese de Santarém foi uma das que não recebeu uma lista com nomes de alegados abusadores. Tranquilizou-o de alguma maneira? Tranquilizou em relação à diocese, mas um bispo tem a responsabilidade da sua diocese e a solicitude de todas as outras. Não estou a deitar foguetes, estou preocupado com tudo o que se passa em Portugal e com os colegas que estão nas dioceses e não têm dados para agir. Há esse problema: pede-se que se afaste um padre mas onde está a denúncia? Qual é a base? Vou afastá-lo porquê? Tem de haver informação e é isso que está a ser pedido.
O caso do padre António Júlio Santos, condenado em 2015 por abuso sexual de duas menores, tem agitado as comunidades das paróquias de Vale de Santarém, Póvoa da Isenta e Almoster. Aconselhou-o a recatar-se? O que falei com ele foi para saber como está e informou-me que estava fragilizado e que não se sentia bem nem seguro para ir celebrar às comunidades e que, portanto, ia pedir ao diácono para o substituir para as comunidades não ficarem sem celebração de domingo. Há uma pressão sobre ele e comunicou-me que não ia aproximar-se das comunidades.
Foi transmitido numa missa no Vale de Santarém e a O MIRANTE, por um membro da comissão diocesana de protecção de menores, que o padre se tinha afastado e que iria haver uma avaliação do seu processo de reintegração. Como está este processo? Não digo que ele se afastou, digo que não se aproximou, como é expectável. Comunicou ao bispo que não se iria aproximar e, naturalmente, isso implica uma avaliação. Temos que conversar e ver o que se passa. Já estive com ele e encontra-se melhor, está estável.
Então os fiéis poderão contar com o padre António Júlio nas próximas missas de domingo?
Se se sentir bem é expectável que sim. Encontra-se estabilizado, reconfortado por muitas mensagens e comunicações que recebeu. Suponho que tudo está garantido para que possa aparecer.
A diocese vai tentar perceber qual a vontade dos fiéis em relação à permanência do padre nas paróquias? O bispo deve ouvir toda a gente, não fujo a falar com as pessoas. E daquilo que posso transmitir é que este padre, que teve um problema há dez anos, foi considerado pelo tribunal como uma pessoa recuperável. O tribunal exigiu exames periciais para chegar a essa conclusão e impôs condições para essa recuperação. Não foi a Igreja que inventou, foi o tribunal que decidiu. E tal era a exigência que, quando se pôs a questão, Roma analisou o processo e fez um despacho do tribunal administrativo, não obrigou a criar um tribunal canónico, acrescentando os cuidados em relação ao acompanhamento espiritual, à residência em comunidade e às tais avaliações, porque não havia antecedentes criminais. Foi uma fragilidade circunstancial a um espaço de tempo. E estamos a cumprir a nossa missão que é fazer o que está previsto: acompanhar.
Se houver fiéis a demonstrar falta de confiança no padre o processo pode ser repensado? Estamos sempre a avaliar a vida da diocese. Fazemos reuniões da pastoral e os assuntos são levados para conversar. O caso do padre António Júlio é conhecido de todos os padres da diocese, todos sabem o que se passou e podem fazer parte de uma reflexão; o bispo não toma uma decisão sozinho. Claro que não estamos fechados às dificuldades das pessoas, mas o que me agrada é saber que não há dados novos, ou seja, que se está a cumprir o previsto que é uma boa integração. A confiança dos fiéis é outra coisa.
E se for transmitido que essa confiança não existe? O próprio padre não se sente bem. Se houver uma comunidade que não está bem com o padre o próprio não se sente bem.
Disse em declarações à SIC Notícias que o padre António Júlio Santos não era um pedófilo compulsivo. O que é, na sua óptica, um pedófilo compulsivo? Um pedófilo compulsivo é uma pessoa que diante de uma criança pode ser perigosa. Neste caso, o tribunal trabalhou isso ao pedir exames para concluir qual era a perigosidade. É difícil trabalhar a reintegração porque dá a impressão de que uma pessoa que cometeu um crime tem que ir para prisão perpétua. Não é assim que se resolve, é preciso analisar e eu apenas estou a procurar responder ao que é pedido na conclusão do processo.
Quando o padre António Júlio Santos foi colocado em três paróquias de Santarém foi ou não divulgado aos fiéis o seu passado de abusos sexuais? Supunha-se que o caso era conhecido, porque foi assunto na comunicação social há 10 anos. Eu estava em Lisboa e soube pelos jornais. Para mim as pessoas das paróquias tinham conhecimento da situação. Não houve qualquer intenção de encobrimento para com a comunidade. Além disso havia os cuidados que tinha de ter para descanso das pessoas, não tendo nenhuma responsabilidade na pastoral juvenil e na pastoral da catequese para não gerar perturbações. Tem corrido bem, não tive queixas.
“O celibato para muitos não será fácil”
Este escândalo dos casos dos abusos sexuais pode enfraquecer ainda mais as dioceses já afectadas pela carência de sacerdotes? Pode fragilizar. Neste momento há muita gente que se afasta, mas também há gente a rezar mais. Estamos com vocações insuficientes em Portugal mas isto tem outra explicação, não é apenas este problema. O problema é que o padre vem das famílias e temos muito menos gente a nascer em Portugal. Há menos gente para tudo. Há países onde as vocações são muitas; por exemplo, no Brasil, há dioceses com mais padres que paróquias. É previsível para nós a homologação de dois padres de São Tomé que estão em Santarém. Temos também dois padres brasileiros na zona de Tomar.
O Papa veio dizer que o celibato na Igreja católica pode ser revisto. Comunga dessa possibilidade? Se o Papa o diz, quem sou eu… Reconheço que o celibato é um dom, mas para muitos não será fácil. Não tenho dificuldade em acolher uma revisão dessa doutrina e que possa haver ordenação de homens casados. Não se trata de mandar casar os padres, não é isso. Trata-se de reconhecer que entre cristãos casados há pessoas que têm vocação para padres. Isso é que a Igreja pode considerar. Casar padres no activo não estou a ver que seja uma indicação de futuro.
Qual a sua opinião sobre a possibilidade de existir ligação directa entre celibato e pedofilia? Está provado que esse argumento não serve. Se os abusos surgem entre pessoas casadas e em família é um argumento que não colhe fundamento. A maior parte dos abusos não acontece com celibatados. Surgiu a informação de que 300 abusadores em Portugal entraram no registo criminal do Ministério da Justiça num ano e não sei se estará lá algum padre. Era bom que ao levantar-se esta questão da Igreja se reflectisse ao nível da sociedade, para que qualquer adulto percebesse que o mais grave que se pode fazer é atingir uma criança ou uma pessoa adulta.