Carlos Farinha está há 40 anos ao serviço da Polícia Judiciária
Carlos Farinha, em entrevista a O MIRANTE, para falar do seu percurso na PJ e de Tomar, a sua terra natal
Carlos Alberto Lopes Farinha começou como perito criminalista em 1981 e chegou em 2018 a director nacional adjunto da polícia que tem à sua responsabilidade a investigação dos crimes mais graves. Pelas suas mãos passaram muitos casos. Cauteloso, com voz serena, não se compromete a fazer comentários que possam ser mal interpretados. A entrevista decorre numa mesa de madeira do seu gabinete com bastante luz natural. A conversa decorre durante mais de uma hora e ao longo desse tempo o director nacional adjunto, natural de Tomar, não recusa responder a qualquer pergunta. Fala sobre as operações nas câmaras de Torres Novas, Chamusca e Santarém, mas não vai além de generalidades para garantir a sua isenção.
A poluição no Nabão é um caso de polícia? A poluição do Nabão é, possivelmente, um caso de polícia. É, possivelmente, um crime ambiental, porque a frequência com que as evidências têm aparecido justifica e obriga a que haja uma resposta também no plano policial e no plano da justiça penal.
Tem havido inércia das autoridades competentes que justifique o arrastar desse problema? Há demasiadas entidades envolvidas nesse processo? É necessário fazer uma prova de origem das coisas que vai, por um lado, no sentido da determinação dessa origem; e, por outro lado, no sentido do conhecimento das sanções associadas a essa prática. Ou seja, por vezes as estruturas perdem--se um bocadinho, ainda que deva dizer que, nesse aspecto, a IGAMAOT (Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território) tem feito progressos substanciais e tem tido uma melhoria da sua capacidade investigatória. A PJ tem colaborado nisso em termos de formação e espero que em 2023 possa haver uma melhoria.
Vêem-se poucas notícias de agentes poluidores que sofram penalizações severas. É um crime difícil de provar? Não diria isso. É um crime que pela sua complexidade jurídica tem, às vezes, algumas escapatórias e alçapões que impedem que se chegue ao resultado. A PJ criou também internamente uma estratégia de concentração, na Directoria de Lisboa e Vale do Tejo, desta temática, acompanhando e procurando melhorar as suas capacidades investigatórias. O que podemos dizer é isto: a resposta neste momento é insuficiente, mas há entidades que têm vindo a melhorar substancialmente, seja a IGAMAOT seja a GNR, no que diz respeito ao seu serviço de protecção ambiental. A PJ tem algumas responsabilidades de ponta, apenas para determinado tipo de crimes, sendo que os mais graves muitas vezes ficam pendentes da prova dos menos graves. Por isso é que este caminho é um pouco difícil de suportar, mas há a intenção de obter mais resultados.
Custou-lhe ver sair a PJ de Tomar? Não necessariamente, porque a PJ está em regra situada em capitais de distrito. Durante um tempo a localização dos serviços era um aspecto muito importante mas hoje, como sabemos, a flexibilidade e a agilidade, a facilidade com que nos deslocamos pelo país justificam que uma polícia que tem como competência a investigação da criminalidade mais complexa, mais grave e mais organizada, não tenha necessariamente uma estrutura de grande proximidade.
No distrito de Santarém não se justifica a existência de uma delegação da PJ? A realidade actual, e sem prejuízo de poder amanhã aparecer uma outra unidade em determinado ponto do país, aponta muito no sentido de termos uma grande capacidade de concentração de informação, de articulação com outras entidades e de garantir resposta especializada. A proximidade está salvaguardada pela estrutura capilar que existe, de policiamento a nível da GNR e da PSP, e a facilidade de articulação com essas entidades garante a resposta especializada.
Falou o director da PJ. E o que sentiu o tomarense com a saída da PJ da cidade? Para o tomarense é sempre uma perda para a cidade. Felizmente, Tomar tem ganho outras coisas nos últimos anos.
Como avalia a evolução da cidade nas últimas décadas? Costumo dizer que Tomar tem sofrido com a curva do quilómetro 103 da auto-estrada A1, que faz com que esta contorne Torres Novas a Oeste e não passe entre Tomar e Torres Novas. Se houvesse engenharia suficiente, economia e decisão nesse sentido, se a ligação tivesse passado entre Tomar e Torres Novas, pelo vale do Tejo, parece-me que teria beneficiado esses concelhos.
Curiosamente, hoje há outras auto-estradas a atravessar essas cidades, como a A23 e a A13... Mas foi muito mais tarde. O que fez com que o concelho de Tomar durante alguns anos perdesse a liderança que tinha no distrito de Santarém. No final dos anos 70 Tomar tinha uma equipa na 1ª divisão de futebol, tinha casa bancária, tinha indústria, tinha riqueza e produção de riqueza. Para além do património histórico e monumental que continua a ter. Tinha tudo isso e, por força da evolução, foi perdendo algumas coisas para outros concelhos. Penso que Tomar demorou a recuperar dessa perda. Além disso, houve algumas opções discutíveis em relação ao ordenamento urbano. A regeneração do chamado Flecheiro poderá permitir uma maior ligação ao rio e seu aproveitamento.
O turismo é hoje a indústria predominante em Tomar. Tem sido a nova indústria, até porque Tomar deixou de ter a indústria papeleira que também era geradora de riqueza. Suponho que nestas coisas, e a título pessoal, é muito mais importante andarmos à procura de como vamos resolver os problemas para a frente do que estarmos a carpir pelos problemas que ficaram do passado. Espero que Tomar continue a desenvolver-se. O aumento de unidades hoteleiras é um sintoma de que Tomar está em desenvolvimento, ainda que muito assente no turismo.
A actual presidente da Câmara de Tomar tem feito um bom trabalho? Essa é uma questão a que não devo responder nesta qualidade funcional. Mas conheço pessoalmente a presidente Anabela Freitas e tenho por ela estima e consideração pessoal por ser presidente da minha cidade. Tenho muito respeito pelas pessoas que se sujeitam a sufrágio para serem eleitas e que exercem essas funções. Jamais me sujeitaria a isso! Nunca tive expectativas de funções desse tipo e acho que não teria disponibilidade pessoal para me sujeitar a qualquer tipo de sufrágio.
Conheceu Miguel Relvas quando este era uma figura da política nacional e também de Tomar? Não. Conheci algumas pessoas próximas de Miguel Relvas, mas, pessoalmente, não o conheci.
Combate à corrupção também é responsabilidade dos cidadãos
As autarquias do distrito de Santarém, como Chamusca, Torres Novas e Santarém, têm sido ultimamente boas clientes da Judiciária. As suspeitas de corrupção mais localizada, ao nível autárquico, está a tornar--se preocupante? A evidência de resultados pode ser o aumento desse fenómeno ou o aumento da sua visibilidade. Isto passa-se em vários tipos de criminalidade. A forma como existe hoje uma cobertura massiva destas temáticas, que não existia há anos, faz com que fiquemos mais impressionados pela percepção que temos das coisas e não tanto pela análise dos resultados estatísticos. O que a Polícia Judiciária tem procurado fazer é que as investigações não se arrastem no tempo e possamos ter resultados tão breves quanto possível porque não é legítimo manter num limbo os casos.
E consegue-se mobilizar os inspectores suficientes para estas diligências? Temos uma realidade distinta da que tínhamos há alguns anos porque conseguimos agora saber quantas pessoas irão ingressar na Polícia Judiciária ou quantos concursos podemos fazer até 2025, em várias carreiras. Mas cada vez mais preocupamo-nos com a gestão dos meios que temos.
Os criminosos estão mais hábeis? O crime faz parte da sociedade. O crime é praticado por pessoas, combatido por pessoas, julgado por pessoas, sancionado por pessoas. Há um dominador comum que é a natureza humana. Às vezes a investigação anda atrás da realidade porque, ainda que tenha tendência para inovar em determinados campos, primeiro surge o desafio, o problema, para depois se tentar encontrar a solução. É como a imagem do gato a correr atrás do rato.
Voltando às autarquias, o caso de Torres Novas surge no departamento técnico. Este é um sector que está a ser preocupante? Para nós o preocupante é a questão do tempo. O combate à corrupção não é estritamente policial. Também é um combate de cidadania que temos de assumir enquanto cidadãos. Não podemos dizer que alguém é corrupto e simultaneamente quando vamos a um serviço tentarmos passar ao lado das regras para sermos atendidos primeiro.
As pessoas exercem essa cidadania? O que nos parece é que existe um aumento da censurabilidade relativamente à criminalidade de funções. A sociedade aceita menos isso. Mas não basta criticar os outros, é preciso que exista uma lógica de cidadania.
O caso da Câmara de Santarém partiu de uma denúncia anónima. Que visão é que tem do medo das pessoas em dar a cara? Em alguns casos é o único meio porque as pessoas admitem vir a ter sanções, mas não é o mais desejável. O anonimato não ajuda a construir boas soluções. O ideal é quando as pessoas se sentem lesadas ou acham que têm determinado tipo de razões tenham a liberdade e autonomia suficientes para exercerem o seu direito de cidadania.
Em que medida o medo das pessoas afecta a acção policial? Enquanto instituição gostaríamos que a participação social fosse numa lógica de equilíbrio entre liberdade, segurança e justiça. Também temos consciência que as coisas nem sempre têm apenas uma perspectiva. É natural que haja ainda o recurso ao anonimato. E há uma nova realidade que é as pessoas acharem que denunciar é fazer publicações em redes sociais.
Se calhar as pessoas queixam-se nas redes sociais porque estão desacreditadas do sistema. Não parto do pressuposto de que estão desacreditadas. Temos as nossas próprias limitações enquanto sociedade. Às vezes há também alguma falta de conhecimento, não obstante a informação estar à distância de um clique.
O caso Rui Pinto veio dar uma nova dimensão e visibilidade a este tipo de crimes. Qual é a sua opinião sobre a delação premiada? A delação premiada no conceito mais restrito não está prevista, mas vai estando. Há circunstâncias no processo que são consideradas atenuantes e que podem permitir redução de sanções. Isto já é o prémio relativamente a determinado contributo. A situação, que se pratica em alguns países, de ao denunciar ficar isento de responsabilidades, não tem assento na nossa tradição.
A morosidade da justiça descredibiliza o trabalho de investigação? Pelo menos dá uma sensação de injustiça. A sociedade, hoje, não se preocupa apenas com o resultado final, se há uma decisão justa, mas também quando é que essa decisão aconteceu. E está menos tolerante não só em relação à justiça, mas a tudo. A justiça tem os seus tempos que dependem da formalização dos actos, das regras e da ponderação, mas não deve exceder a morosidade necessária.
A mediatização dos processos prejudica ou é útil às investigações? É mais uma matéria em que procuramos algum equilíbrio. A informação é um direito, tem a ver com a liberdade. Por outro lado, colide por vezes com a presunção da inocência porque o conhecimento antecipado de determinadas coisas leva a julgamentos populares, levianos até, que acabam por não corresponder àquilo que é a decisão final.
Como é que justifica que alguns jornalistas cheguem aos locais das buscas ou detenções antes dos polícias? Procuramos combater isso com qualidade de comunicação e blindagem de informação. Parece-me que têm diminuído essas situações. Já assumimos que não nos sentimos confortáveis com esta realidade. Em 2022 fizemos cerca de 600 comunicados e 30 conferências de imprensa. Temos procurado ter uma versão institucional que desmobilize as tentativas de obtenção de informação por outra via. Quando se vai fazer uma busca numa entidade pública dois minutos depois já há várias pessoas dessa entidade a tornar isso público. Temos de tentar lidar com isto e manter em níveis aceitáveis.
Há algum caso que tenha ficado por resolver com que ainda hoje sonhe? Há várias situações em quase 42 anos de serviço que gostaria que tivessem tido resultado apesar de ter sido feito o possível. Prefiro não particularizar, mas há situações de desaparecimentos que nunca foram esclarecidas. Faz parte da natureza das coisas esforçarmo-nos, seguirmos os procedimentos correctos e nem sempre o êxito acontecer. Por vezes há impossibilidade de se chegar a determinado tipo de conclusões. A vida não é perfeita.
Um homem que gosta das tradições ribatejanas
Carlos Farinha nasceu no dia 10 de Dezembro de 1958 em Tomar, é divorciado e tem duas filhas. Licenciado e doutorando em Direito, está há quase 42 anos ao serviço da Polícia Judiciária (PJ). Começou pela base, passando por diferentes categorias, unidades e geografias até chegar ao cargo de director nacional adjunto da PJ. Desde Setembro de 2022 é também presidente da Rede Europeia de Identificação Humana em Desastres de Massas.
Tem casa em Lisboa e na freguesia de Asseiceira, Tomar, onde, sempre que pode, passa os fins-de-semana. É um homem apegado às raízes e que recorda com agrado os tempos em que mergulhava e nadava no rio Nabão, fosse no Agroal ou na zona do mouchão. Na sua juventude praticou desporto no Sporting de Tomar e no União de Tomar, em modalidades como basquetebol, ténis de mesa, badminton ou futebol. É associado do Sporting de Tomar, tem as quotas em dia e de vez em quando vai aos jogos de hóquei.
É também um “fervoroso” aficionado da Festa dos Tabuleiros mas nunca participou no cortejo, ao contrário de uma das filhas e de vários sobrinhos. “Quando teria juventude para isso, participar no cortejo não era tão natural como agora. Hoje as pessoas, nomeadamente as mais jovens, e ainda bem, gostam de participar. No meu tempo de vida em Tomar isso não era tão tradicional”, diz, referindo que a festa é sempre vivida em família e constitui também um momento de reencontros e afectos.
Acerca das tradições ribatejanas, admite que o imaginário do toiro, do cavalo e do campino não lhe é indiferente, até porque era comum nos seus 17/18 anos juntar-se a alguns amigos que “faziam umas experiências com novilhos”, alguns deles forcados. Mas nunca chegou a pegar um novilho, limitava-se a acompanhar. “Pessoalmente, gosto do espectáculo taurino”, confessa, embora não seja frequentador assíduo da praça de toiros de Tomar. “Acho que a última vez que fui à praça de toiros de Tomar foi para assistir a um espectáculo dos Quinta do Bill e da Nabantina. Não sou propriamente um aficionado exemplar”, remata.
No final da entrevista com O MIRANTE, na sede nacional da Polícia Judiciária, em Lisboa, Carlos Farinha confessou que um dos casos desvendados pela PJ que mais satisfação lhe deu foi o da detenção do homem responsável por uma série de incêndios florestais, entre 2017 e 2021, nas zonas da Sertã e de Mação. O criminoso foi condenado a 25 anos de prisão, pena máxima em Portugal.
Carlos Farinha chefiou os departamentos da Polícia Judiciária da Madeira, de Leiria e de Lisboa, tendo sido também director do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária desde 2009, até ser escolhido para director nacional adjunto em 2018. Integrou o Comité Dirigente da Interpol para as Ciências Forenses e participa na Estrutura Europeia de resposta DVI, em matéria de identificação humana, tendo sido designado Chairman da EUDVI Network, para o período de 2022 a 2024.
Está credenciado com o símbolo de Altos Mandos Policiais, da Iberpol, membro do Management Board da Cepol de 2022 a 2024, consultor forense da UNODC, no âmbito do programa contra o terrorismo, em Moçambique. Foi louvado pelo Governo Regional da Madeira, Governo Civil de Leiria e Procurador-Geral da República. Foi condecorado com a Medalha de Honra, Grau Ouro, pelo município de Tomar e com a Cruz de Mérito Policial, pela Polícia Marítima.
Os convívios com Salgueiro Maia em Santarém
No final da década de 70 e princípio da década de 80 Carlos Farinha cumpriu o serviço militar obrigatório na Escola Prática de Cavalaria (EPC), em Santarém. Diz que uma situação que o “tocou particularmente” foi a saída da EPC de Santarém para Abrantes. “Não me pareceu do ponto de vista simbólico e funcional fazer qualquer sentido”, considera, sem querer pôr em causa decisões cujas razões desconhece.
Durante a sua passagem pelo quartel de Santarém teve oportunidade de conhecer o capitão e depois major Salgueiro Maia, ícone da Revolução dos Cravos, quando este estava responsável pelo presídio militar de Santarém. “Havia umas tertúlias entre os jovens milicianos da EPC e Salgueiro Maia, que organizava uns jantares, uns debates... Tive oportunidade de conviver meia dúzia de vezes com ele e por isso, afectivamente, a EPC, para mim, fazia sentido em Santarém, sem desprimor nenhum para Abrantes”, conclui.