Se reconstruirem os passadiços de Ortiga no mesmo sítio vai haver outro desastre*
Elsa Severino, 63 anos de idade, arquitecta paisagista. O nome é sonante, e a Obra também, mas em Mação, onde a arquitecta nasceu e tem casa de família, as relações com o poder não são as melhores. Esta semana na edição impresa de O MIRANTE pode ler uma entrevista que ocupa três páginas onde os passadiços da Ortiga são um dos assuntos mais polémicos. Fica aqui por antecipação a posição da conhecida arquitecta sobre o assunto do momento.
A valorização do território passa muito pelo aproveitamento do rio, mais do que construir passadiços. A experiência em Mação foi um desastre. Disseram-nos que a candidatura foi apoiada num estudo seu, mas a senhora não esteve na construção dos passadiços, segundo sabemos…
Sim, falaram connosco para fazermos um estudo que integrasse aqueles sete quilómetros entre a barragem e a Ortiga. Fizemos um estudo da localização há uns cinco anos e foi com esse estudo prévio que a CCDR aprovou a obra e deu financiamento, segundo julgo saber, pois o projecto que foi construído nunca teria aprovação no ambiente. Quando estávamos a passar para o projecto de execução, falei com o presidente da câmara, Vasco Estrela, para lhe dizer que era fundamental um projecto de estabilidade, devido às cheias, à descarga da barragem, que a obra envolvia responsabilidade civil. A resposta foi um não rotundo por causa do aumento do orçamento. Nem mais um cêntimo, disse-me o presidente. Os meus argumentos não o convenceram e a solução foi cortar relações. Até hoje.
Não percebemos como surge essa necessidade de um engenheiro?
Na proposta inicial não contemplei esse estudo porque também não tinha bem a noção da realidade. Após fazermos o estudo prévio, gratuitamente, pois nada nos foi pago, é que nos deparámos com as dificuldades. Os passadiços tinham de ser construídos junto à linha de caminho-de-ferro porque ali não há inundações. E se houvesse tínhamos o projecto de engenharia que sustentava o embate da água, dos troncos, etc, etc. Vasco Estrela não aceitou os meus argumentos e foi contratar quem ele quis e os passadiços foram construídos sem projecto de engenharia, na borda de água.
Pôs-se a jeito para os políticos locais utilizarem o seu prestígio como arquitecta paisagista, a sua mão-de-obra, as pessoas do seu gabinete?
Estou sempre disposta a ajudar. Fiz o jardim da Ortiga e o da escola primária. Não me pus a jeito, ofereci sempre os meus préstimos.
Como é que foi essa zanga?
Muito violenta, ao telefone, dizendo-me que eu não estava a respeitar uma proposta que tinha feito. Os honorários eram baixos para o trabalho em questão, ainda envolviam a praia fluvial. Faço tudo gratuitamente, se for preciso. Ao fazer o estudo prévio é que me apercebi que em muitas zonas havia pilares de três metros.
Por isso é que passados seis meses os passadiços foram por água abaixo?
O que aconteceu foi por desatenção dos políticos ou porque foram seduzidos por empresas que facilitam. Estou a contar este assunto pela primeira vez. Enviei a minha solidariedade ao senhor presidente da câmara depois da zanga e após o desastre, para o caso de precisar de mim, mas até hoje não me respondeu.
Se houver uma reconstrução dos passadiços qual é a sua previsão?
Vão outra vez Tejo abaixo. Devido às alterações climáticas tudo é cada vez mais imprevisível. E as cheias dos 100 anos estão sempre na memória de todas as pessoas, e como refiro, os cálculos já são feitos para as cheias dos mil anos, isto é, 10 vezes mais intensas das que conhecemos. Aqueles passadiços custaram cerca de meio milhão de euros. Se vamos construí-los no mesmo sítio, com as mesmas técnicas, é outro desastre.
A intervenção no jardim da Ortiga e no jardim da escola primária foi com um projecto aprovado, contratualizado?
Sim, o primeiro jardim eu ainda era muito nova. A verdade é que nunca mais foi requalificado. O da escola primária integrei uma equipa e pagaram-me, há três anos. Não correu muito bem porque fizeram alterações ao projecto, de que discordei, mas não valeu de nada. Alteraram o projecto, não confiaram em mim, mais uma vez. Tive pena; não podem fazer isto a um técnico. Ainda não descobri se é por ser mulher, se é por ser da terra ou confiança a mais. Não é do meu feitio valer-me dos tribunais, mas tanto no caso dos passadiços como no caso do jardim da escola, era isso que mereciam, e o que a lei prevê nestes casos.
Na altura escrevemos sobre a destruição dos passadiços e o presidente da câmara assumiu o desastre da obra.
Estes políticos não percebem o que é o rio, o que é um caudal de uma margem viva. O estudo que havia, que aprovaram, não foi com a actual localização, não havia nenhum técnico que aprovasse a verba e eles obtiveram-na. Como é que a ministra que inaugurou a obra (Ana Abrunhosa), e a administração pública em geral, não questionaram que, o que ali estava a ser feito não foi aquilo que foi aprovado? Não quis ir por aí, mas posso ir um dia.
Faz parte da direcção do Centro Social da Ortiga...
Nunca saí da Ortiga porque tive uma infância muito feliz e sou verdadeiramente um produto da terra, como uma árvore. Depois também tive sorte de ter uma família que adorava, que me adorava. Na escola primária adorava a professora. Andei no antigo colégio D. Pedro V, eram muito exigentes, mas aprendi bastante. Com o falecimento do meu pai tive que trabalhar. Estou a voltar agora com tranquilidade para dar o meu contributo, embora não o queiram.
Acha que ainda estão a tempo de emendar a mão?
Falando dos passadiços, é a criteriosa gestão de dinheiros públicos e responsabilidade civil que estão em causa; insistir no erro pode ser lamentável para além de muito perigoso. Ao fim de seis meses a natureza deu-me razão. Se forem construir no mesmo sítio, terei de fazer uma denúncia ao Ministério da Coesão Social, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional e à Agência Portuguesa do Ambiente. Espero que me oiçam neste e noutros assuntos.
* parte da entrevista que vai ser publicada na íntegra na edição impresa de O MIRANTE que chega aos leitores amanhã 27 de Abril