Entrevista | 29-04-2023 12:00

Elsa Severino: somos loucos, não aproveitamos a água do Inverno

Elsa Severino: somos loucos, não aproveitamos a água do Inverno
Elsa Severino no seu ateliê na rua Filipe Folque, em Lisboa no dia da entrevista a O MIRANTE

Elsa Severino, 63 anos de idade, arquitecta paisagista. O nome é sonante, e a Obra também, mas em Mação, onde a arquitecta nasceu e tem casa de família, as relações com o poder não são as melhores. Esta entrevista faz jus a uma profissional que estudou e foi discípula do arquitecto paisagista mais famoso da democracia portuguesa, chamado Gonçalo Ribeiro Teles, assim como do seu sócio, o também reconhecido professor e arquitecto Francisco Caldeira Cabral. O mais importante desta conversa são as questões ambientais, a falta de uma política para os rios e para a preservação do território e, acima de tudo, a constatação, que nunca é evidente, de que um maçaense sente-se mais beirão que ribatejano.

Apesar do currículo, da obra feita, do prestígio e do reconhecimento do seu trabalho que já leva mais de quatro décadas. Elsa Severino falou com O MIRANTE com a humildade de uma profissional que sabia que estava a ser entrevistada para falar da sua terra, do território e do amor às raízes. A meio da conversa, sem deixar de falar serenamente, Elsa Severino desabafou as suas mágoas com os políticos da terra que lhe faltaram ao respeito. Embora falando do assunto pela primeira vez, não foi meiga a apontar o dedo aos políticos que acharam que a podiam desautorizar e desrespeitar sem que ela, um dia, desabafasse a afronta.

Já sabemos que é filha e neta de ferroviários. Como foi a sua infância na Ortiga?
Nasci em Ortiga e tive uma infância muito feliz porque fiquei a adorar o campo, graças aos meus avós, e a perceber a dinâmica do mundo rural. Aos 14 anos viemos para Lisboa porque o meu pai achou que não podíamos lá ficar. Com grande desgosto saí, mas nunca deixei de ir à Ortiga e a ligação foi sempre muito forte. O rio, o vale, os montes, as árvores, a paisagem tiveram uma grande importância na minha formação. Tenho as marcas da convivência com os meus avós, que acompanhava nas idas às nossas courelas, na criação dos animais, na vida agrícola.
Numa forma de vida do qual dependia o sustento da família.
Nessa altura os meus avós já tinham um emprego, o meu avô trabalhava na CP, mas quem só vivia do campo tinha uma vida muito difícil.
Aos 14 anos foi estudar para Lisboa e ficou por lá.
Fui para a Universidade de Évora fazer o curso de Arquitectura Paisagista. Foi lá que encontrei os meus mestres, Gonçalo Ribeiro Telles e o professor Francisco Caldeira Cabral. Foram eles que fundaram o curso em Évora. No final do curso vim fazer o estágio para o gabinete deles que já tem 70 anos. Trabalho aqui há quarenta. Nesta altura trabalho com o Francisco Caldeira Cabral que é filho de um dos fundadores do ateliê e do curso de Arquitetura Paisagista em Portugal.
Teve a sorte de encontrar arquitectos que fizeram escola e foram percursores...
Francisco Caldeira Cabral foi professor de Gonçalo Ribeiro Teles e fundaram o primeiro ateliê de arquitectura em Portugal. Eram, sem dúvida, as duas principais figuras da área em Portugal.
Fez o estágio com o professor Gonçalo Ribeiro Telles.
Sim, fiz o estágio e depois fiquei a trabalhar com ele e com o Francisco, o filho do professor Caldeira Cabral. Entretanto o arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles foi para a Câmara Municipal de Lisboa, fez a sua vida e fiquei com o Francisco.
Tinha pessoas conhecidas que a recomendaram?
Não, foram as minhas notas. Eu queria vir para cá e manifestei esse interesse desde sempre porque era o lugar de excelência.
O seu gosto pela arquitectura paisagista é de jovem…
O meu avô materno acompanhava-me muito e explicava-me a dinâmica da vida rural e do campo. Não era simplesmente olhar. E é este olhar mais profundo e entendedor da dinâmica do campo, os benefícios, os atropelos, que constituem um desafio. Agora que vou mais a Ortiga, (estou a recuperar a casa dos meus avós) gostava de transmitir isso e lançar alguns desafios para que houvesse um olhar mais atento, mais sabedor, mais consciente sobre o campo.
Estudar arquitectura paisagista nesse tempo não era só para uma classe média/alta?
Eu entro pelas notas, mas o meu pai nunca concordou que fosse para este curso. Gostaria mais que fosse médica ou engenheira. A verdade é que desde cedo comecei a interessar-me pelo ambiente, por jardins, por exemplo. Os projectos de arquitectura sobre jardins estão muito associados a pessoas ricas, mas a arquitectura paisagista é muito mais que isso. Acho que o meu pai nunca aceitou que tivesse escolhido este curso.
Trabalhar em jardins de propriedades privadas deve ser um luxo de trabalho.
Gosto porque é um desafio. Construir jardins nas casas da classe média/alta são grandes desafios porque podemos concretizar ideias inovadoras e ver a obra realizada em pouco tempo.
Quando o seu professor a convidou para trabalhar com ele percebeu que tinha o futuro garantido?
Só ultimamente é que tenho essa tranquilidade. Era uma empresa privada e tínhamos de apresentar trabalho ao fim do mês. A minha profissão é mal paga em Portugal. Gonçalo Ribeiro Telles era rico e auto-sustentava-se. O professor Francisco Caldeira Cabral tinha nove filhos e uma vida mais difícil. A segurança era só em termos intelectuais, estar muito bem rodeada, ter muito orgulho nas pessoas com quem trabalhava, absoluta confiança. Depois chegava a casa e a família não gostava das minhas escolhas profissionais. Era uma grande exigência e um grande desafio ser mulher e arquitecta.
Como era trabalhar há 30 anos… a arquitectura era uma profissão masculina?
Sentia-me muito honrada por ter sido escolhida, mas um bocadinho receosa de não corresponder às expectativas e trabalhava muito e muitas horas, e lia muito, e sentia-me sempre no fio da navalha. Lá ia fazendo o meu caminho. Convidaram-me para dar aulas, para ser orientadora e nunca quiseram que eu saísse. Vou ficar aqui até morrer.
Qual é o seu primeiro grande projecto?
Foi a recuperação da zona ribeirinha da Baixa da Banheira. Eram as zonas limítrofes na Margem Sul, esquecidas, com uma população pobre, operária. Isto foi no início dos anos 80. De repente, viram um parque, não existiam muitos em Portugal, e depois vejo a população a apropriar-se do parque e do espaço público e o espaço público a influenciar a arquitectura.
Continua a trabalhar espaços públicos?
Sim, ainda agora fomos chamados para requalificar o parque da Moita, em Alhos Vedros. Ainda espero voltar ao parque da Baixa da Banheira.
Qual foi a sua obra mais importante?
Foi o Parque dos Poetas, em Oeiras. Aquilo era para ser uma Alameda. O presidente Isaltino Morais convidou-nos para uma reunião e tinha esta ideia do David Mourão-Ferreira e do Francisco Simões, de uma Alameda dos Poetas. O Francisco Caldeira Cabral é que disse: Ó presidente, vamos é fazer um parque dos poetas”. Na minha opinião o Isaltino Morais é um visionário. O terreno onde está o Parque dos Poetas é uma zona de grande pressão urbanística mas graças a ele, ficou sempre guardado para um grande projecto que acabou de nascer com o nosso contributo. A ideia é nossa, é minha, participei desde o início.
Chegou a trabalhar nos jardins da Gulbenkian?
Não, quando entrei em 1982, os jardins já estavam feitos. Só o Francisco é que trabalhou nos jardins, mas foram todos desenhados no ateliê, temos aí os desenhos originais.
Como é trabalhar com pessoas que tinham muita visibilidade pública?
Não são coisas que se escolham; relativamente ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, ele era uma figura tão luminosa que tudo girava à sua volta, ele tomava conta do debate. Todos os dias lanchávamos e discutíamos política. A nossa função era estarmos na retaguarda a trabalharmos nos projectos que vinham para o ateliê, e fazer o melhor possível. Ele era muito criativo, muito culto, era uma pessoa excepcional.
Como foi o vosso relacionamento?
Fui sempre uma discípula. Convidou-me para dar aulas na universidade, mas nunca aceitei. Só dei seminários e fui orientadora de estágios e palestras. Tivemos sempre muito trabalho no ateliê e esse trabalho absorvia-me. Há muitos anos que sou directora técnica do ateliê e a responsável pelos projectos. Há sempre muito trabalho para coordenar nos grandes projectos e é preciso sempre alguém que tenha essa capacidade de saber orientar as equipas.
Visitou muitos países para se inspirar em outras cultura?
Alemanha e França são os países mais adiantados a este nível.
Consegue explicar-nos a razão para a maioria das autarquias escolher os plátanos para os espaços verdes que em certas alturas do ano largam um algodão que poluem tudo e fazem mal à saúde?
Antigamente não era um problema tão acutilante e a migração para as cidades é recente, que é onde se sente mais. Há um grande défice de atenção da escolha das árvores para os locais urbanos. Não há escrutínio nem estudos. Tanto faz se a rua está virada a norte, se é num cabeço ou se é num vale ou se tem vento. Isso não entra para a equação e daí surgem muitos problemas; ou são árvores que são grandes demais para a rua ou fazem sombra no Inverno e não deveriam fazer ou que provocam alergias, etc. Há muita falta de gestão nessas decisões.
Há um défice de arquitectos paisagísticos nas câmaras municipais?
Acho que para a dimensão do país temos os suficientes. Muitas vezes estão desenquadrados e têm um papel difícil porque não são ouvidos e compreendidos.
Os políticos do pós 25 de Abril parecem menos preocupados com estas questões?
Não se tem evoluído muito. Os professores Caldeira Cabral e Ribeiro Telles ainda fizeram muito trabalho, principalmente na grande Lisboa. Mas não o suficiente. Em termos ambientais e neste capítulo em especial Portugal é muito pobre.
Qual é a sua relação com os rios e a importância que dá a tudo o que envolve os grandes cursos de água?
Trabalhei muito para Ponte de Lima na recuperação paisagística das margens do Rio. Fomos nós que iniciamos o Festival Internacional de Jardins.
E o Rio Tejo, como vê o rio que passa ao lado da sua Ortiga ?
Há um divórcio das pessoas perante o rio. A barragem de Belver é uma realidade, mas é uma violência para um rio. As lagoas estão muito abandonadas; as ribeiras que desaguam no nosso rio não são limpas; as margens não são cuidadas. É claro que isto não pode ser feito num ano. É um trabalho que podia ser feito pelas escolas, por voluntários e há pessoas que gostariam de fazer isso, simplesmente não têm incentivos. Não têm um líder que as acompanhe e motive. O nosso rio Tejo está completamente abandonado à sua sorte. A câmara não tem meios técnicos, não tem conhecimentos, e o rio fica abandonado com os prejuízos que todos conhecemos.
Quando vai à terra não lhe apetece dar recados aos políticos?
Quero que o rio não morra, daí essa tentação de escrever e lutar por ele. Para termos água nos rios temos de cuidar das nossas ribeiras, da infiltração da água nas terras, a maioria do território está completamente desnudado. As zonas de infiltração no rio Tejo são fundamentais para o rio ter água. O rio está cheio de areia e de cascalho, por incúria dos autarcas e dos responsáveis do Ministério do Ambiente. As encostas com mais de 25% de inclinação devem ser protegidas por vegetação, para não haver arrastamento dos solos e para haver infiltração. Este trabalho tem de começar a ser feito ou vai haver uma catástrofe; não aproveitamos a água durante o Inverno, somos loucos. Temos que começar já a trabalhar protegendo as zonas dos solos permeáveis recuperando os poços, construindo mais cisternas, mais poços, libertando as ribeiras, as zonas de infiltração máxima, começando a revesti-las, construindo charcas, etc, etc.
O Médio Tejo é diferente da Lezíria?
É outra coisa; na Ortiga já estamos numa paisagem mais árida, mais difícil, que molda as pessoas de outra maneira, os solos são pobres. A partir de Abrantes o território desertifica-se, é a monocultura do pinhal.
Molda as pessoas e faz delas seres mais terra a terra?
Talvez seja isso. Sou uma pessoa de esquerda porque cresci numa família humilde, vi as dificuldades, a falta de médicos, estradas, alimentação pobre. As pessoas tiveram de abandonar os campos e vir para a cidade. Serei sempre atenta aos problemas dos outros. Mas fiz-me arquitecta paisagista, que é a grande alegria da minha vida. Eu e a minha profissão somos a mesma coisa; foi a paisagem que me moldou e só faço isto porque nasci na Ortiga.
Sente-se mais beirã que ribatejana?
Sinto. O Ribatejo e a Lezíria não têm nada a ver com o Médio Tejo onde nasci.
Num dos seus artigos diz que a água é o sangue das regiões. Queria dizer a água é o sangue da terra?
Em Ortiga tinha sempre uma nascente para regar a terra. Essa água é fonte de vida, mas tem de ser cuidada e mantida porque não é inesgotável.
Como é que vê a descentralização do país?
Por um lado, acho bem, os fundos vão primordialmente para Lisboa e Porto e o nosso Médio Tejo fica abandonadíssimo com muito poucos apoios. Tenho algumas dúvidas sobre essas políticas porque as coisas não podem ser feitas a régua e esquadro. Também receio que se formem governos locais com os mesmos vícios que o poder central. A democracia tem de se afirmar por mérito dos políticos para que seja verdadeiramente importante para a coesão do território.

Somos maus alunos do ponto de vista ambiental

Optou por não casar, por não ter filhos…
Não escolhi esta vida, aconteceu. O meu pai faleceu de ataque cardíaco quando eu tinha 28 anos. Estava aqui no Gabinete de Ribeiro Telles e Francisco Caldeira Cabral a fazer o estágio, fiquei com a minha mãe doente e uma irmã menor. Isso mudou a minha vida; desde esse momento passei a ser outra pessoa, com outras responsabilidades familiares. Depois a idade vai passando e nem sempre encontramos as pessoas certas.
Quando diz que é de esquerda vota no PS ou no PCP?
Voto no PS, aliás, votava.
É do Sporting ou do Porto?
Tenho simpatia pelo Sporting.
Carlos Alexandre é o seu herói do momento?
Admiro-o imenso pela coragem e vejo ali um ortiguense e uma pessoa moldada pelo território.
Quem é o seu ídolo?
O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles porque também moldou muito o meu carácter do ponto de vista profissional. O professor Caldeira Cabral e o Francisco Caldeira Cabral são pessoas que admiro muito pessoalmente e como profissionais.
Um lugar na Ortiga que não lhe sai da cabeça.
A minha casa e a vista sobre o Tejo. A varanda onde a minha mãe e os meus avós ficavam ao entardecer.
Que projectos lhe ocupam o tempo nesta altura?
Os Jardins do Convento de D. Dinis, em Odivelas. Vai para ali um pólo universitário, um museu, e depois é recuperar os cinco hectares da cerca do Convento. É um trabalho que me agrada muito pelo que tem de histórico.
Tanto o Parque dos Poetas como o Jardim das Oliveiras, no CCB, são projectos que de vez em quando precisam de ser acompanhados.
No caso do Parque dos Poetas os 22 hectares estão estabilizados, no entanto, gostava muito de contribuir para a manutenção, mas o presidente não nos tem chamado.
As habitações são importantes para a paisagem. Como é que vê as últimas medidas do Governo relativamente à questão da habitação? A solução é obrigar as pessoas a arrendarem as casas?
De modo algum, não me revejo nessas políticas. Estas medidas é como se não estudássemos e copiássemos no exame. Sermos obrigados a arrendar e não dispormos da nossa propriedade, para o Governo ter bons números, é lastimável, um roubo. Fernando Medina e até António Costa, acabaram com a empresa pública de urbanização de Lisboa, que construía casas de imensa qualidade. O Fundo de Fomento da Habitação está em morte cerebral.
Já trabalhou para os concelhos da sua região?
Fiz alguns estudos para Tomar e fiz o projecto da Escola Manuel Fernandes que ganhamos num concurso público.
Como é que vê o seu país em termos ambientais ?
Somos maus alunos do ponto de vista ambiental. Os rios estão à deriva, poluídos. Não há investimento nas florestas. A seca e as inundações estão por resolver.
Separaram o ministério da Agricultura do Mar e das Florestas.
Deviam estar juntos. O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles dizia que não temos políticas para a agricultura. Não temos um programa, não temos uma visão. Ser ministro da Agricultura não é só atribuir fundos, é importante conhecer, lutar por uma agricultura mais sustentável.
Como é que comenta o que se está a passar no Alentejo?
O Ministério tem de ter políticas para o nosso território como existem nos outros países europeus.
Mação é ingovernável do ponto de vista dos incêndios?
Aquele território tem estado abandonado e tem havido muitos fundos para a floresta que acho que não têm sido minimamente aproveitados. Não se faz nenhum trabalho de manutenção da nossa floresta, não há fiscalização. Não pode ser ingovernável, têm alguns meios, mas há pouca ambição da autarquia de Mação. Só vejo a mancha de eucaliptal crescer. O PRR tem muitos fundos. E eu, embora não seja reconhecida, não deixo de lutar pela minha terra.
Qual foi a sua maior conquista?
Foi ser reconhecida pelos meus colegas. Entro numa autarquia ou num ministério e sou respeitada, não pelo que tenho, mas pelo que defendo e por acreditarem na minha palavra enquanto projectista e enquanto ambientalista.
Maior mágoa - Mação; acho que é a única autarquia que não fala comigo e que não acredita em mim.

Imagem de arquivo de O MIRANTE dos passadiços de Mação que foram por água abaixo pouco tempo depois de inaugurados

Se reconstruirem os passadiços de Mação no mesmo sítio vai haver outro desastre

A valorização do território passa muito pelo aproveitamento do rio, mais do que construir passadiços. A experiência em Mação foi um desastre. Disseram-nos que a candidatura foi apoiada num estudo seu, mas a senhora não esteve na construção dos passadiços, segundo sabemos…
Sim, falaram connosco para fazermos um estudo que integrasse aqueles sete quilómetros entre a barragem e a Ortiga. Fizemos um estudo da localização há uns cinco anos e foi com esse estudo prévio que a CCDR aprovou a obra e deu financiamento, segundo julgo saber, pois o projecto que foi construído nunca teria aprovação no ambiente. Quando estávamos a passar para o projecto de execução, falei com o presidente da câmara, Vasco Estrela, para lhe dizer que era fundamental um projecto de estabilidade, devido às cheias, à descarga da barragem, que a obra envolvia responsabilidade civil. A resposta foi um não rotundo por causa do aumento do orçamento. Nem mais um cêntimo, disse-me o presidente. Os meus argumentos não o convenceram e a solução foi cortar relações. Até hoje.
Não percebemos como surge essa necessidade de um engenheiro?
Na proposta inicial não contemplei esse estudo porque também não tinha bem a noção da realidade. Após fazermos o estudo prévio, gratuitamente, pois nada nos foi pago, é que nos deparámos com as dificuldades. Os passadiços tinham de ser construídos junto à linha de caminho-de-ferro porque ali não há inundações. E se houvesse tínhamos o projecto de engenharia que sustentava o embate da água, dos troncos, etc, etc. Vasco Estrela não aceitou os meus argumentos e foi contratar quem ele quis e os passadiços foram construídos sem projecto de engenharia, na borda de água.
Pôs-se a jeito para os políticos locais utilizarem o seu prestígio como arquitecta paisagista, a sua mão-de-obra, as pessoas do seu gabinete?
Estou sempre disposta a ajudar. Fiz o jardim da Ortiga e o da escola primária. Não me pus a jeito, ofereci sempre os meus préstimos.
Como é que foi essa zanga?
Muito violenta, ao telefone, dizendo-me que eu não estava a respeitar uma proposta que tinha feito. Os honorários eram baixos para o trabalho em questão, ainda envolviam a praia fluvial. Faço tudo gratuitamente, se for preciso. Ao fazer o estudo prévio é que me apercebi que em muitas zonas havia pilares de três metros.
Por isso é que passados seis meses os passadiços foram por água abaixo?
O que aconteceu foi por desatenção dos políticos ou porque foram seduzidos por empresas que facilitam. Estou a contar este assunto pela primeira vez. Enviei a minha solidariedade ao senhor presidente da câmara depois da zanga e após o desastre, para o caso de precisar de mim, mas até hoje não me respondeu.
Se houver uma reconstrução dos passadiços qual é a sua previsão?
Vão outra vez Tejo abaixo. Devido às alterações climáticas tudo é cada vez mais imprevisível. E as cheias dos 100 anos estão sempre na memória de todas as pessoas, e como refiro, os cálculos já são feitos para as cheias dos mil anos, isto é, 10 vezes mais intensas das que conhecemos. Aqueles passadiços custaram cerca de meio milhão de euros. Se vamos construí-los no mesmo sítio, com as mesmas técnicas, é outro desastre.
A intervenção no jardim da Ortiga e no jardim da escola primária foi com um projecto aprovado, contratualizado?
Sim, o primeiro jardim eu ainda era muito nova. A verdade é que nunca mais foi requalificado. O da escola primária integrei uma equipa e pagaram-me, há três anos. Não correu muito bem porque fizeram alterações ao projecto, de que discordei, mas não valeu de nada. Alteraram o projecto, não confiaram em mim, mais uma vez. Tive pena; não podem fazer isto a um técnico. Ainda não descobri se é por ser mulher, se é por ser da terra ou confiança a mais. Não é do meu feitio valer-me dos tribunais, mas tanto no caso dos passadiços como no caso do jardim da escola, era isso que mereciam, e o que a lei prevê nestes casos.
Na altura escrevemos sobre a destruição dos passadiços e o presidente da câmara assumiu o desastre da obra.
Estes políticos não percebem o que é o rio, o que é um caudal de uma margem viva. O estudo que havia, que aprovaram, não foi com a actual localização, não havia nenhum técnico que aprovasse a verba e eles obtiveram-na. Como é que a ministra que inaugurou a obra (Ana Abrunhosa), e a administração pública em geral, não questionaram que, o que ali estava a ser feito não foi aquilo que foi aprovado? Não quis ir por aí, mas posso ir um dia.
Faz parte da direcção do Centro Social da Ortiga...
Nunca saí da Ortiga porque tive uma infância muito feliz e sou verdadeiramente um produto da terra, como uma árvore. Depois também tive sorte de ter uma família que adorava, que me adorava. Na escola primária adorava a professora. Andei no antigo colégio D. Pedro V, eram muito exigentes, mas aprendi bastante. Com o falecimento do meu pai tive que trabalhar. Estou a voltar agora com tranquilidade para dar o meu contributo, embora não o queiram.
Acha que ainda estão a tempo de emendar a mão?
Falando dos passadiços, é a criteriosa gestão de dinheiros públicos e responsabilidade civil que estão em causa; insistir no erro pode ser lamentável para além de muito perigoso. Ao fim de seis meses a natureza deu-me razão. Se forem construir no mesmo sítio, terei de fazer uma denúncia ao Ministério da Coesão Social, à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional e à Agência Portuguesa do Ambiente. Espero que me oiçam neste e noutros assuntos.

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