Entrevista | 27-05-2023 12:00

“O SNS tem que ser repensado porque os privados estão num patamar acima”

“O SNS tem que ser repensado porque os privados estão num patamar acima”
José Eduardo Correia ofereceuse para dar consultas gratuitas em Mouriscas onde a população não tem médico de família desde o final do ano passado

José Eduardo Correia é um antigo médico do Serviço Nacional de Saúde que escolheu Mouriscas, concelho de Abrantes, para viver a sua reforma. Nesta entrevista a O MIRANTE, que surge depois de se ter disponibilizado para dar consultas gratuitas a uma população envelhecida e sem médico de família, fala na dificuldade em captar médicos para um sistema enfraquecido. Nesta entrevista conta a história da perda de um filho de 22 anos para exemplificar como o sistema de saúde precisa de alterações. .

Médico internista e cardiologista reformado, José Eduardo Correia deixou o bulício da capital para desfrutar sossegadamente de Mouriscas, uma pacata freguesia do concelho de Abrantes e uma das muitas deste país e da região onde há uma extensão de saúde, mas onde nenhum utente tem médico de família. Confrontado com esta realidade, que afecta diariamente uma população maioritariamente “envelhecida e carenciada”, ofereceu-se para, gratuitamente, atender utentes. Para já a sua proposta não foi avante porque, lamenta, “em Portugal há sempre quem torne difícil resolver até as coisas simples”.
Natural de Elvas, fez a escolaridade até ao liceu em Santarém, cidade onde viveu com os pais e seis irmãos até ingressar no curso de Medicina. Passou pelos hospitais de Santa Maria e Egas Moniz (Lisboa), de Caldas da Rainha, de Santarém (ainda no antigo hospital), do Barreiro e de Évora, onde chegou a director de serviço de Medicina Interna e a presidente da secção da sub-região de Évora da Ordem dos Médicos.
Aos 74 anos gosta de passar os dias a passear o pastor alemão, de cinco meses, pelas ruas da freguesia e a cuidar da pequena horta que cultivou de raiz na zona exterior da casa que comprou por lhe fazer recordar os tempos de infância. É aí que nos recebe para uma conversa sobre o estado da Saúde em Portugal, onde comenta a dificuldade de captar médicos para o Sistema Nacional de Saúde (SNS) e defende uma reforma profunda.

Trabalhou em vários hospitais deste país e de diferentes regiões. Exerceu num Serviço Nacional de Saúde muito diferente daquele que temos hoje? Completamente. Primeiro porque quando iniciei a minha actividade ainda não havia SNS. É a meio do meu internato de Medicina Interna que se cria a especialidade de Medicina Geral e Familiar que pensei seguir. Na altura era apelativa, mas aos poucos foram-na destruindo enchendo os médicos com burocracias. Uma grande diferença foi terem deixado de valorizar as carreiras médicas mas, para mim, a grande destruição dos hospitais foi os médicos terem deixado de eleger os directores clínicos, que passaram a ser nomeados consoante os seus partidos políticos permitindo que começasse a haver critérios de amizade, de compadrio, de partidismo político e não de competência. A acompanhar tudo isto começaram a crescer os hospitais privados e não foi por acaso.
Tem algum preconceito ideológico com os hospitais privados? Não, nenhum. O que defendo é a igualdade entre público e privado, não a inferioridade como está hoje, com os privados a ganhar da ADSE e das seguradoras e o Estado nada. O SNS tem que ser repensado porque os privados estão num patamar acima: conquistaram bons médicos oferecendo-lhes melhores condições, nomeadamente melhores ordenados, melhores equipamentos e melhor qualidade de atendimento.
Foi mau para o estado da Saúde o fim das Parcerias Público-Privadas (PPP)? As PPP funcionaram e funcionariam melhor. Porque puseram nos hospitais a competência à frente do partidismo, da política. E a competência gera o bom trato e a satisfação do doente.
Há ou não há falta de médicos em Portugal? Não, claro que não. Somos o segundo país da OCDE com mais médicos por 100 mil habitantes. O que não temos é médicos com a especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) e aí é que está o problema porque deixou de ser uma especialidade atractiva. Partidarizaram isto de tal forma que os médicos de MGF foram ocupar lugares de poder sendo presidentes de Administrações Regionais de Saúde como é o caso do Dr. Luís Pisco, da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, ou ocupando lugares, por exemplo, no Infarmed. Estão em todo o lado menos a trabalhar para os doentes. Porque nem o ordenado nem o trabalho são atractivos. Este país precisa de dar liberdade de escolha e de colocar o doente no centro dos cuidados de saúde. Isso é fundamental, mas esta é a revolução que faz falta no SNS e que ninguém quer aceitar.
Deixaria então de haver médicos de família atribuídos a utentes? Com certeza. Porque na medicina temos um ordenado fixo e tanto faz vermos 100 doentes como 50. Há uma não sedução pelo número de doentes. Neste modelo, o doente passaria a participar na vida financeira do médico pagando a taxa moderadora que pode ser a máxima, a mínima ou nada. Está provado que o sistema da liberdade de escolha sai mais barato ao Estado do que este sistema obrigatório de ordenados fixos a médicos. Além de que se acabava com a lista de espera de 1 milhão e 600 mil sem médico de família e das idas de doentes para as urgências dos hospitais quando a situação não o justifica. Claro que nesta nossa realidade têm que ir e não podemos julgar essas pessoas porque muitas não têm nem médico de família, nem ADSE, nem seguros de saúde para poderem ir aos privados.
Este modelo que defende não vai contra os pilares do SNS? Vai contra o actual modelo, mas não contra o espírito do SNS porque continua a ser universal, público e tendencialmente gratuito. [neste modelo] Os cargos de poder deixariam de estar na mão do PS ou do PSD, partidos que nos têm governado, e passariam a estar na mão do doente. Mas seguradoras e partidos não querem e, por isso, este modelo não irá avante; tenho essa noção.

“Devem ser os enfermeiros especialistas a seguir as grávidas”

O bloco de partos do Centro Hospitalar do Médio Tejo em Abrantes tem estado a funcionar provisoriamente a meio gás temendo-se que se torne uma medida recorrente. É um tiro no pé para o combate à desertificação do interior? A Ordem dos Médicos pode penalizar-me da forma que quiser mas defendo que devem ser os enfermeiros especialistas a seguir as grávidas. Dantes nem havia enfermeiros, havia as parteiras e as crianças nasciam. Noutros países, como Inglaterra, as grávidas de baixo risco têm os filhos apenas com uma enfermeira. E não são necessários médicos à excepção de casos de alto risco, mas esses os obstetras acompanhariam. Se assim for [como está a ser definido pela Direcção-Geral de Saúde] está resolvida a falta de obstetras nos hospitais públicos. Outros problemas se poderiam resolver, mas a Ordem dos Médicos continua a querer guardar para si actos médicos que podiam ser feitos por outros profissionais dando-lhes formação adequada.
Além dos partos a que actos se refere? Vou dar um exemplo, não para terem pena de mim, mas para se ter noção do que defendo. O meu filho foi atropelado por um camião num acidente de mota na Ponte 25 de Abril. Ficou em morte cerebral e foi desligado das máquinas ao fim de quatro dias. Tinha 22 anos. Quem o socorreu foram os bombeiros e só foi ventilado ao chegar ao hospital, cerca de uma hora depois, após a ambulância ser obrigada a dar a volta à ponte para regressar a Almada em vez de seguir para Lisboa que era mais perto. Isto aconteceu e acontece porque os médicos se recusam a passar actos como a ventilação ou a intubação. Por isso defendo cursos de reanimação diferenciada que poderiam ter salvo o meu filho e tantas outras pessoas nas estradas.
A criação de uma Unidade Local de Saúde no Médio Tejo parece-lhe uma boa medida? Piorar não vai, mas não resolve. Os médicos hospitalares já são poucos e os de saúde familiar poucos são. Vai-se juntar pouco com pouco para dar um bocadinho mais.
Foi promulgada pelo Presidente da República a lei que despenaliza a morte medicamente assistida estando assim mais próxima de se tornar realidade. Enquanto profissional de saúde é dos que concorda ou discorda da eutanásia? Concordo. Vi morrer muitas pessoas na altura em que fazia urgência interna hospitalar. Às duas ou três da manhã chamavam-me para ver doentes em sofrimentos terríveis. Muitos morreram de mão dada comigo. Dava um certo ânimo a quem morria, mas a mim dava-me um certo desânimo. Se uma pessoa que está num desespero, a sofrer e sem saída por que é que morrer não é lícito? É cinismo ser contra a eutanásia. O que é preciso fazer agora é regulamentar, definir regras. O que também faz falta é voltar-se a pegar na ideia da criação dos hospitais concelhios, de proximidade. A antiga ministra da Saúde, Ana Jorge, fez um grupo de trabalho para isto ao qual pertenci, mas quando ela desapareceu nunca mais se ouviu falar. Isto ficou numa gaveta qualquer.

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