Entrevista | 09-07-2023 18:00

Saúde pública tem secundarizado doenças psiquiátricas

Saúde pública tem secundarizado doenças psiquiátricas
José António Salgado é um psiquiatra conceituado que decidiu tentar a sua sorte na música

José António Salgado é psiquiatra há mais de 30 anos e afirma que a saúde mental tem sido desvalorizada. O médico, que tem exercido em Santarém e Lisboa, considera que a depressão continua a ser vista como um sinal de fraqueza e que as camas em psiquiatria são insuficientes nos hospitais. Em entrevista a O MIRANTE fala também de como se lançou numa carreira musical aos 65 anos.

Em Julho de 2022 havia 12.415 utentes adultos a aguardar a primeira consulta de psiquiatria e em Janeiro deste ano apontava-se uma média de 97 dias de espera para um doente muito prioritário. Que desafios enfrenta esta área para se chegar a estes números? Ao nível de saúde pública as doenças psiquiátricas têm sido secundarizadas, desvalorizadas até. Não há doenças físicas nem psíquicas, tudo o que são doenças ditas físicas têm implicações no nosso funcionamento. Uma depressão é tão biológica como uma diabetes. Dou como exemplo: uma mulher deprimida que esteja grávida tem um risco muito maior de ter um aborto espontâneo. E isto podia-se multiplicar por muitas situações, é uma questão de saúde pública. Dados epidemiológicos em Portugal mostram que mais de 20% das pessoas ao longo da vida vão ter uma doença psiquiátrica com algum significado e isso é um número bastante elevado. Além disso, a psiquiatria é pouco aliciante em termos económicos para os hospitais porque a demora do internamento é maior, o que faz com que uma cama psiquiátrica seja menos rentável do que noutras especialidades. Isso leva também à falta de recursos humanos.
Quando se fala em psiquiatria da infância e adolescência haver tempos de espera longos é ainda mais preocupante? É mais preocupante e a falta de recursos humanos é ainda maior. No serviço que dirijo notamos que a detecção precoce é algo que não é actuado e, como sabemos, em qualquer doença quanto mais cedo for a intervenção melhor será o prognóstico. A duração média da psicose não tratada anda pelos dois anos e haverá quem ande cinco ou seis sem ser tratado, com a doença em evolução. Era essencial que houvesse mais psicólogos nas escolas e centros de saúde para ajudar à detecção precoce.
O local de trabalho também carece de mais atenção nesta área? Sim, até porque as questões do burnout são muito visíveis em muitas das pessoas que chegam às consultas. A forma como esta questão não é cuidada em muitas empresas é determinante para o adoecer das pessoas. Depois, a medicina do trabalho raramente se preocupa com questões de saúde mental, geralmente não são feitas perguntas sobre esse tema mesmo em profissões onde a pressão é muito forte.
De que modo a situação sócio-económica actual do país pode ter impactos na saúde mental? Para se ter uma doença tem que ter susceptibilidade biológica, factores de desenvolvimento que podem contribuir e tem também a ver com o envolvimento social. É claro que os problemas sociais e económicos são um factor importante no aparecimento da doença mental, embora não sejam o único. Todos conhecemos pessoas a quem a vida corre muito mal e não se deprimem e pessoas a quem a vida corre bem e se deprimem. Há mecanismos biológicos, não se pode dizer que uma pessoa está doente com depressão porque quer e não reage.
Há por aí muitas pessoas com depressão que acham que andam só cansadas ou numa má fase? A maior parte das pessoas que tem depressão acha isso; até os médicos de outras especialidades têm dificuldade em aceitar que há uma depressão pelo estigma que existe associado à doença, de que é um sinal de fraqueza. Não é, é um sinal de doença que até surge com sintomas físicos, como cansaço e alterações da memória, que são desvalorizados. Esta ideia de que a depressão é um sinal de fraqueza continua a existir porque é uma doença que não se vê como uma perna partida. Mas todas as pessoas podem deprimir, a diferença é que algumas têm capacidade de resistência maior.
A depressão tem ou não tem cura? Não podemos falar numa depressão como uma doença única. As depressões mais reactivas a factos de vida muitas vezes têm cura, precisam é de um tratamento. O que não pode acontecer é quando a pessoa acha que está melhor e deixa o tratamento, que não se confina à medicação, antes do tempo. Agora também é arriscado achar que se pode tratar uma depressão sem medicação, só com psicoterapia.
A auto-medicação e a procura exagerada por ansiolíticos e sedativos continuam a ser problema? Continuam e importa esclarecer que os ansiolíticos e os hipnóticos, os chamados comprimidos para dormir, causam habituação e só devem ser usados por períodos curtos, ao contrário dos anti-depressivos. O problema é que os calmantes são uma medicação gulosa: a pessoa sente-se ansiosa, começa a tomar um comprimido e acaba por ficar dependente, acha que só consegue controlar a ansiedade dessa forma. Com os anti-depressivos acontece o contrário: largam cedo demais.
O que acontece quando se larga cedo demais? Há quase sempre uma recaída. As pessoas que têm depressão pela primeira vez têm um risco de ter novamente depressão em cerca de 50% e se param o tratamento cedo demais a recaída é quase inevitável.

Começar uma carreira na música aos 65 anos

Esta história começou há 40 anos, mas só agora se vai concretizar com o lançamento do álbum Cais de Memórias. José António Salgado começou na juventude a alimentar a paixão pela música e por volta dos 20 anos esteve mesmo para lançar um disco. O projecto acabou por não ir avante e é na psiquiatria que tem feito a sua carreira profissional, com passagem pelo Hospital de Santarém, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e na AS Clínica. Quarenta anos passados, o médico psiquiatra, que foi colega de curso de Carlos Paião, atira-se de novo ao projecto musical do qual vai resultar um disco com dez músicas, entre outras, Noite na Cidade e Novo Fado de Lisboa, que já podem ser escutadas em várias plataformas digitais e no Youtube. O lançamento do álbum está previsto para o Outono e embora ainda não tenha uma agenda definida, é quase certo que a estreia ao vivo aconteça em Santarém, cidade que escolheu para fazer o internato geral e na qual nasceu o seu filho. A entrevista, que decorreu no seu consultório, em Santarém, não passa apenas pela revelação desta carreira inesperada, mas pela psiquiatria, área que garante continuar a “privilegiar”.
De psiquiatra com mais de 30 anos de carreira para músico aos 65 anos. Há uma mensagem subliminar nesta reviravolta inesperada? Não, só é inesperada para os outros. É um projecto que devia ter começado no início dos anos 80 e não se concretizou. Tinha tudo acertado para fazer um LP com a editora Valentim de Carvalho, só que o produtor com quem combinei tudo subiu na hierarquia e atribuíram-me outro produtor com quem não consegui sintonizar porque queria desvirtuar o que eu estava a fazer. Como estava a acabar Medicina decidi adiar.
Desta vez teve liberdade de escolha? Toda a liberdade. Comandei o processo e ainda tive a sorte de encontrar o produtor Manuel Rebelo, que é também professor de música e com o qual tenho tido aulas de canto e que conseguiu potenciar as minhas músicas.
As canções que irão compor o álbum Cais de Memórias são desses tempos de juventude? Em que se inspiram? Têm a ver com esses tempos de juventude, mas quase todas foram reformuladas e algumas feitas mais tarde. Acho que se inspiram em tudo o que fui vivendo e conhecendo, nas pessoas que se foram cruzando comigo. Gosto de conhecer as pessoas e as suas realidades, acho que têm a ver com isso: com vivências e emoções. Os estilos são variados, desde o rock, às marchas, ao fado e à balada mais tradicional.
Se tivesse gravado aquele disco aos 20 e poucos anos a psiquiatria poderia não ter chegado a ter lugar na sua vida? Tenho um percurso na psiquiatria em crescendo: estou no topo da carreira, fui director clínico do Hospital Psiquiátrico de Lisboa, onde sou director de um serviço inovador que liga a psiquiatria da adolescência à de adultos. Tenho noção que se calhar não tinha abraçado desafios como estes se me tivesse dedicado à música. Mas se calhar tinha recomeçado mais cedo...
Como reagiram à novidade os que lhe são mais próximos? A família e amigos não estavam à espera, mas aceitaram e entusiasmaram-me porque sabiam que tinha este gosto adormecido há muito. Os meus colegas de profissão e algumas pessoas que acompanho clinicamente ficaram surpreendidos porque não imaginavam que eu cantava.
Foi uma decisão tomada só por si ou aconselhou-se? Foi. Ia no carro a ouvir a Antena 1 e estavam a falar do programa Masterclass, no qual incentivavam as pessoas a enviar músicas e decidi enviar duas feitas em casa de forma muito rudimentar. Isto em 2017. Foi a partir daí que arranquei, embora com uma interrupção por causa da pandemia.

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