Autópsia em caso de morte súbita é fundamental para prevenir mais óbitos na mesma família
Acontece geralmente sem aviso prévio ou por sinais que são ignorados. A morte súbita mata em Portugal cerca de 12 mil pessoas por ano, mas não acontece do nada. Doença genética, na maioria cardíaca, pode estar na origem, alerta o cardiologista Vítor Martins que considera fundamental o diagnóstico atempado, a autópsia molecular e a instalação de desfibrilhadores automáticos externos em espaços públicos.
Em Portugal morrem cerca de 10 mil a 12 mil pessoas por ano de morte súbita, um falecimento inesperado causado por perda de função cardíaca e que ocorre dentro de uma hora após o início dos sintomas, segundo a Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Na região, dois dos casos mais recentes que foram noticiados são o de Carolina Castro, atleta da Chamusca que perdeu a vida aos 18 anos, e de Leonardo, o estudante do Entroncamento que faleceu, inesperadamente, aos 16 anos, depois de cair inanimado no chão.
Apesar de abruptas, estas mortes, na sua maioria relacionadas com o coração, têm causas genéticas e patológicas que não foram atempadamente detectadas. Em entrevista a O MIRANTE o médico cardiologista da Clínica do Coração, em Santarém, e director do serviço de Cardiologia do Hospital Distrital de Santarém, Vítor Martins, fala da importância do diagnóstico, das causas e sintomas que não devem ser ignorados e da relevância de as cidades, em locais estratégicos, terem à disposição aparelhos de desfibrilhação automáticos externos que podem ditar o sucesso da reversão de uma paragem cardíaca.
A estimativa da Sociedade Portuguesa de Cardiologia é que se perdem 32 vidas por dia por morte súbita cardíaca. A principal causa está directamente relacionada com coração?
Está quase sempre relacionada com o coração e acontece de um modo inesperado. Em adultos há dois grupos: até aos 40 anos e os que têm mais de 40. Nestes últimos, geralmente, está envolvida a doença coronária, das artérias do coração. O que acontece é que há uma obstrução a nível arterial que provoca processos de arritmia grave, sendo a mais grave a fibrilhação ventricular, que levam à morte. Nos mais novos não será a doença coronária, mas arritmias malignas, distúrbios eléctricos que não têm a ver com a obstrução das artérias. Há em muitos casos questões genéticas.
Geralmente, quando alguém morre vítima de morte súbita não havia diagnóstico de doença...
Não, porque nem todos fazem exames e muitas vezes não há sintomas. Por isso é que é muito importante a história familiar, ou seja, se a pessoa tiver na família uma pessoa que morreu aos 30 anos e cuja autópsia revelou uma situação de hipertrofia do coração, por exemplo, os familiares devem ser rastreados. Hoje há rastreios que permitem ver se a pessoa tem os genes alterados, mas pode não ter a doença ainda e esta aparecer mais tarde.
Aparece sempre?
Não, nem sempre. Podemos ter os genes alterados mas nunca haver expressão, ou seja, há o genótipo, mas não há o fenótipo que é a expressão morfológica, a doença.
Em caso de morte súbita a autópsia é fundamental?
As autópsias em Portugal não são frequentes, mas nestes casos de morte súbita deviam ser obrigatórias, não apenas para ver se a pessoa morreu de enfarte, por exemplo, mas para perceber, através de autópsia molecular, se havia uma situação genética por trás para que a família possa ser alertada. Isto porque uma pessoa de 30 anos não morre de morte natural, morre de uma patologia que pode não ter sido diagnosticada. Temos casos de atletas que faleceram e que se veio a saber que tinham doença grave.
Há quem defenda que o excesso de trabalho pode levar à morte súbita. Concorda?
Não, isso é um abuso. Há profissões stressantes mas tem mais a ver com o facto das pessoas não darem importância à sua saúde. Há factores de risco como o tabagismo - o tabaco agrava as lesões nas artérias -, ter gordura no sangue e não praticar exercício físico, que é importante porque permite melhorar colesterol, diabetes e diminuir os valores da pressão arterial.
É possível reverter uma situação de morte súbita?
Sim, se uma pessoa tem uma paragem cardíaca temos três a quatro minutos para restaurar o ritmo cardíaco, ao fim desse tempo não vale a pena, a pessoa morreu. Há muito pouco tempo para regredir. Por exemplo: se uma pessoa que cai inanimada na rua e se as pessoas tiverem conhecimento para tal, e se houver por perto um desfibrilhador automático externo, pode salvar-se aquela vida. Sozinho, o aparelho faz o diagnóstico e só dá o choque se perceber que é necessário. Algumas cidades já têm, mas Santarém não é exemplo neste momento. Já Almeirim iniciou um processo para isso e no Norte temos o exemplo de Guimarães que tem em, praticamente, todas as áreas públicas onde há concentração de público, desfibrilhadores automáticos.
Além dessa medida considera que devia ser obrigatório aprender Suporte Básico de Vida?
Sim. O Ministério da Educação já tem alguns programas para os alunos e professores terem alguma formação nesse sentido. Em recintos onde haja concentração de pessoas devia haver sempre alguém com formação.
Os portugueses estão atentos ao seu coração?
Penso que estão mais atentos, porque éramos dos países onde mais se morria de AVC e enfarte do miocárdio. Actualmente, o AVC diminuiu para metade por causa do controlo da pressão arterial; e o enfarte agudo do miocárdio e a morte súbita também diminuíram porque estamos a controlar os factores de risco nomeadamente a hipertensão e a diabetes. Também temos melhores medicamentos e por isso é que a esperança média de vida continua a aumentar. As pessoas estão melhor tratadas nas fases mais avançadas da vida, que é aquela faixa que é muito provável que a pessoa possa ter um evento destes.
“Antes uma pessoa que sofria um enfarte do miocárdio ia morrer cedo”
A medicina consegue dar boa resposta ao nível da cirurgia e outras técnicas para reabilitar o coração?
Perfeitamente. Hoje uma pessoa que sofre um enfarte do miocárdio, ou um doente que é reanimado de morte súbita, pode ter uma vida normal com um desfibrilhador. Coloquei um num rapaz de 34 anos, praticante de desporto moderado que tinha uma situação genética que lhe hipertrofiava o coração. Oito meses depois o aparelho salvou-lhe a vida. Em Santarém temos centenas de pessoas com desfibrilhador colocado, algo que não existia há uns anos. Antes, uma pessoa que sofria um enfarte do miocárdio ia morrer cedo, hoje abrimos as artérias para as tratar, assim como tratamos do colesterol e de tudo o que ia agravar a situação.
Estamos a falar de um tratamento multidisciplinar.
Claro. Tudo começa na Medicina Geral e Familiar, onde é feita a grande triagem destas situações. Se esses médicos diagnosticarem, tratarem e encaminharem para um especialista vai melhorar.
Não o preocupa não haver no distrito de Santarém uma Unidade de Intervenção?
Na parte sul do distrito fazemos praticamente tudo, o que não fazemos é cateterismos e é, de facto, uma situação que não se percebe e que terá que ser revista a curto prazo. Em Lisboa há nove a dez centros e nós não temos nenhum. De qualquer forma, os indicadores de saúde são satisfatórios.
Quais são os sinais que podem indicar problema cardíaco que não devemos ignorar?
Queixas de palpitações anormais, não relacionadas com esforço, falta de ar, episódios de dor torácica ou se houver uma história familiar pesada de eventos cardiovasculares graves, por exemplo, ter um pai que faleceu com 40 anos. Essas pessoas devem recordar isso ao seu médico para que seja feito um diagnóstico precoce.
O envelhecimento da população é algo que o preocupa?
Sim. As pessoas antes não chegavam a idades tão avançadas e quanto mais idosa é a pessoa maior é a probabilidade de ter um problema cardiovascular. Todos, independentemente da idade, merecem ser tratados. Já coloquei pacemakers em pessoas com mais de 100 anos e estão óptimas.
Qual é ou deve ser a prioridade da Cardiologia actualmente?
Diagnosticarmos mais e estendermos tratamentos novos que são mais caros a determinados doentes, como para doentes com amiloidose cardíaca [doença rara]. Estamos a tratar cada vez mais pessoas, mas há casos pontuais em que os doentes não têm direito a exames que deviam ter. Por exemplo não posso conceber que um médico de família não possa pedir uma ressonância ou um angiotac, que permite ver as artérias do coração. Mas os políticos às vezes não sabem fazer contas… Tratar doentes precocemente sai mais barato do que tratar uma doença instalada, que fica caríssima ao Estado.