Entrevista | 09-10-2023 10:00

Vivemos um ambiente depressivo em Portugal

Vivemos um ambiente depressivo em Portugal
Pedro Afonso é psiquiatra há 30 anos e considera que o problema associado à pornografia deveria ser mais discutido

Pedro Afonso, 54 anos, é médico psiquiatra com uma carreira de três décadas. É conhecido por exercer medicina, mas também por escrever sobre o seu ofício e os temas que mais dominam a actualidade política e social como a eutanásia, a legalização das drogas, o aborto e a prostituição.

É totalmente contra qualquer legalização dessas actividades e tem escrito sobre o assunto dezenas de vezes nos artigos que tem vindo a publicar no jornal Observador. Nesta conversa alguns desses temas ficaram por tratar, assim como os efeitos nocivos da internet na vida das pessoas quando ficam alienadas ao verem filmes que fazem o culto de determinadas práticas que podem gerar doenças ou problemas graves de comportamento, como é o caso dos sítios de encontros. Embora todas as conversas sejam sobre política, e esta não foge à regra, Pedro Afonso não abriu o livro; numa resposta que resume a sua postura afirmou que não comunica a sua opinião pessoal aos doentes, sejam eles de esquerda ou de direita. O título desta entrevista é roubado a uma pergunta sobre o futuro dos jovens.

Tempos desassossegados como aquele que vivemos escondem muitas misérias. Agora que passamos o pior da pandemia há muitos problemas por resolver que vão agravar mais a miséria social e humana? Ficaram muitas sequelas, principalmente na população idosa. O ser humano vive do contacto social e o isolamento retira-nos capacidades sendo que a população idosa é mais fragilizada nesse contexto. E esta pandemia levou a que muitos deles se deteriorassem muito. Hoje os lares já estão abertos mas foram dois natais, dois aniversários, sem a presença dos familiares.
Estamos quase a voltar ao normal, esquecendo por agora os problemas com os mais idosos? Não. Todas as crises são momentos de sofrimento e também muitas vezes oportunidades de mudança e de reflexão. Um dos reflexos que a pandemia trouxe, por exemplo, foi a forma como trabalhámos. O teletrabalho foi instituído e veio mudar o paradigma. As pessoas tomaram consciência de quão era má a qualidade de vida, o tempo que perdiam nas deslocações, os custos que isso acarretava e a impossibilidade que tinham de ir ao ginásio, sair mais cedo para dar um passeio, conviver ao fim da tarde com os amigos. Em algumas situações voltamos ao normal e melhoramos em certos aspectos.
Na sua intervenção pública, nomeadamente nos textos que escreve na imprensa, há sempre latente uma crítica aos políticos. Na entrevista que deu a O MIRANTE em 2008 falou da miséria humana que encontrava nas urgências e reconheceu que os políticos andavam deprimidos. A miséria humana ainda se mantém e os políticos continuam deprimidos? Já não faço urgências portanto não posso responder como gostava. As doenças psiquiátricas são sempre um reflexo das condições socioeconómicas, ou seja, quando há uma crise socioeconómica as doenças psiquiátricas aumentam inevitavelmente e isso foi patente quando vivemos o período da Troika. Nesse período foi terrível, imensas pessoas com depressões gravíssimas e nós sabemos também por outros estudos que as crises económicas estão associadas a um aumento do risco de suicídio porque as pessoas perdem as casas e o emprego. Se há agravamento social há um aumento dessa tal miséria humana.
E os políticos assobiam para o lado... Quanto aos políticos sou descrente. Vejamos o caso dos jovens. O Governo apontou para uma perspectiva fiscal e económica. Isso não é suficiente, quer dizer, não é por causa de receberem o retorno das propinas e reter um benefício fiscal nos primeiros anos que vai fazer com que os jovens se fixem. Depois, há outros problemas que estão associados a esta crise social; referi isso num artigo publicado recentemente onde falo de berços vazios. Temos um problema gravíssimo de baixa natalidade. São problemas estruturais a que o Governo deve prestar mais atenção e que não se resolvem apenas com medidas fiscais.
O que é que falta a Portugal para que copiemos as melhores políticas dos países mais desenvolvidos como a Holanda, Inglaterra e França? Faltam as reformas estruturais em várias áreas. Basta ver o que se está a passar na Justiça, isso inibe obviamente o investimento estrangeiro. As empresas sabem perfeitamente que se tiverem litigância num país em que a Justiça é tão morosa limitam o investimento. Faltam também reformas estruturais ao nível da Educação. O que está a acontecer com a falta de professores é gravíssimo. Na saúde temos um problema grave. Havia hospitais que funcionavam bem num regime de parcerias público-privadas mas, por razões ideológicas, o Governo acabou com elas. Outro problema muito importante é a questão da ética na política. Grande parte dos problemas que estamos a viver na sociedade portuguesa é devido à falta de ética nomeadamente na acção dos políticos, mas não só.
Como é que se resolve? Com mais eleições ou com mais acção cívica?
Acima de tudo com reformas estruturais. Temos que acabar com a lentidão da Justiça porque a morosidade cria a percepção de impunidade. E baixar os preços para que todas as pessoas tenham o mesmo direito à Justiça que é um dos pilares de uma democracia.
Onde estão os homens da sua geração e das gerações anteriores? Não era importante que dessem também o seu contributo? Acha que os seus alunos de hoje estão preparados para entrar na vida política quando acabarem os estudos? Não vão querer ir para a política. A tradição desde o 25 de Abril era os políticos convidarem figuras da sociedade civil para formarem governos. Isso acabou. Provavelmente, é difícil convencer pessoas de mérito e de competência técnica a integrar o Governo, também por outro fenómeno mais recente que é o escrutínio por parte dos meios de comunicação social e nas redes sociais. Um pequeno deslize, uma pequena falha e a sua vida é vasculhada de fio a pavio e há pessoas que não aceitam isso. Vejo as políticas e os políticos de hoje com grande pessimismo.
Nada disso o faz desistir da sua intervenção crítica? Há sempre coisas boas pelo meio. Não podemos ser liminarmente pessimistas. Conheço óptimos colegas que continuam no SNS, há óptimos professores na escola pública, agora há um clima de alguma desmotivação, desmoralização e pessimismo. Vivemos um ambiente depressivo em Portugal, acho que isso é notório. A condição económica também não é a melhor. É responsabilidade de todos nós contribuir para que os jovens não abandonem o país. Temos jovens altamente qualificados, nomeadamente no campo da informática, matemática e da gestão para que o país de facto possa reerguer-se e ser competitivo. Se saem todos para fora é muito mais difícil. É como uma equipa de futebol que vende todos os seus bons jogadores, depois não pode ganhar campeonatos.

“Canábis causa imensas doenças psiquiátricas”

É muito crítico das propostas políticas das minorias de esquerda como o PAN e o Bloco. Faço isso em nome da verdade e da Justiça. Grande parte destas políticas que defendem são radicais, ideológicas e desvinculadas da realidade, sem bases científicas. Advogar que as crianças medicadas com a ritalina estão a ser drogadas é absolutamente errado. Se o diagnóstico estiver bem feito, está comprovado cientificamente que a ritalina pode ajudar e muda muito a vida dessas crianças. O mesmo com a ideologia do género. Colocada na prática está a causar dano e sofrimento a imensas crianças e adolescentes. Na Noruega e na Suécia, por exemplo, já estão a impedir que se façam terapêuticas hormonais nos períodos da puberdade porque é uma verdadeira violência. Quanto às drogas: a canábis causa imensas doenças psiquiátricas. Se a legalizarem não vão evitar o mercado paralelo porque as pessoas vão querer drogas mais duras. Sou médico há trinta anos, já vi muita coisa e considero que estas ideologias radicais podem destruir a vida das pessoas.
Esquecendo as questões de género e de defesa dos animais, não acha que a liberalização do mercado das drogas é uma forma de acabar com o crime organizado? Não acaba. Tivemos uma atitude muito inovadora e que teve excelentes resultados, de não querer criminalizar o consumir mas o contrabando. Concordo com esta abordagem, mas daí até dar um sinal errado às pessoas e dizer “vocês podem consumir que esta droga é legal, o Estado garante a qualidade desta droga”, é transformar um mal num bem. Acho que está errado. E está provado cientificamente que a droga gera psicoses, diminui a inteligência, aumenta a criminalidade, abandono escolar, etc...
Há pessoas que bebem muito, outras que fumam muito, há outras que se drogam mais do que outras. Os problemas nunca mais acabam e também é preciso regular.
Também nunca estou satisfeito e estão sempre a surgir novos problemas. A realidade vai mudando e há novos desafios. A questão dos telemóveis nos miúdos é uma coisa recente. Antigamente não havia telemóveis. Não se colocava. Não defendo uma sociedade proibicionista, defendo uma sociedade cujas leis tenham bases científicas. Há muitas pessoas que consomem drogas recreativas porque têm perturbações de ansiedade, que podiam ser tratadas com fármacos; outras que têm insónia crónica e consomem drogas para poderem adormecer e podiam ser tratadas na psiquiatria sem recurso à droga. E ficarem bem.
A ansiedade cura-se com uma consulta de psiquiatria? Uma consulta não cura nada. A consulta é o diagnóstico. Há pessoas que são mais ansiosas que outras e há ansiedades mais difíceis de tratar que outras, mas há muitas perturbações de ansiedade que são tratáveis.
Num país em que há miséria humana, desumanização da medicina, não há médicos nos centros de saúde, como é que as pessoas mais pobres ou remediadas podem recorrer a uma consulta de psiquiatria? Vou tentar explicar: os médicos de família estão muito pressionados pelo tempo. Há falta de médicos de família e o acto médico dura cada vez menos tempo. E muitas vezes os médicos limitam-se a fazer diagnósticos e a ver as análises. Dantes o médico conhecia a família, conhecia os problemas dos doentes, os doentes tinham tempo para partilhar algumas dificuldades da sua vida. Agora o médico passa grande parte do tempo a olhar para o ecrã do computador e a fazer registos. Tenho uma história que resume o que quero dizer: Uma doente queixou-se de que não gostava do médico de família, e eu até o conhecia e tenho como pessoa competente. “Mas porque é que não gosta do seu médico de família”. E ela respondeu-me “Oh senhor doutor ele não nos deixa falar.” Isto explica o problema actual. As pessoas precisam de falar de outros problemas da sua vida e o médico tem de ter esse papel de humanização. Os médicos estão sob demasiada pressão, pressão dos números e pressão da quantidade de doentes que têm de atender, e isto prejudica o acto médico e aumenta mais a solidão da parte das pessoas. Antigamente o padre também fazia essa função, mas os padres também estão cada vez menos tempo nas igrejas.

“Pornografia é um assunto pouco discutido!”

As greves dos médicos não são uma coisa completamente incomum quando estamos a sair de uma pandemia? Não trabalho no SNS mas a minha mulher trabalha. Um dia destes fui olhar a folha de salários de há 15 anos e a diferença para a de hoje é mínima. Isto explica muita coisa. Depois há questões burocráticas que também são importantes ter em conta. Quando se avaria um equipamento numa sala de exames de um hospital público é um desastre e demora um ano a reparar. Esta situação, que não se passa nos privados, gera um sentimento de impotência e de revolta por parte também dos médicos e dos enfermeiros e todos aqueles que trabalham porque depois não conseguem tratar os seus doentes.
Um médico de Medicina Geral pode prescrever medicamentos para a depressão? Acho que sim, nos casos mais simples. É como a tensão arterial, nem todos os doentes com tensão vão ao cardiologista. Começa-se por ir ao médico de família e depois se ele não conseguir controlar a situação é que se transfere para o especialista.
A sua profissão é das mais desgastantes e não é fácil trabalhar até muito tarde... É uma profissão que causa um desgaste psicológico muito grande. Ao longo da vida vamos criando soluções para lidar com o sofrimento. Muitas vezes temos que conversar entre médicos e partilhar estas dificuldades uns com os outros, porque com o tempo vamos ficando um bocadinho imunes ao sofrimento, e devemos lutar contra isso, porque temos que ser empáticos com as pessoas e temos que sofrer um bocadinho com elas. A especialidade é muito difícil. Para se ser um bom psiquiatra tem que se passar um período difícil com os doentes porque temos doentes às vezes muito complicados e temos sempre de sofrer um bocadinho com eles para os podermos compreender e depois ajudar. Esse sofrimento ao longo dos anos vai-se tornando difícil de suportar.
Mas há quem tenha muito medo dos psiquiatras porque são perigosos a receitar, medicam demais e as pessoas ficam mortas para a vida. Quando comecei na psiquiatria havia uma certa tendência para medicar. Fiz a minha especialidade no Hospital Júlio de Matos onde tínhamos casos muito mais graves do que existem hoje, porque os doentes chegavam-nos já com problemas de muitos anos de sofrimento. Talvez por isso era prática medicamentar um pouco mais os doentes. Falo por mim: hoje procura-se medicar o mínimo possível, mas o necessário para aliviar os sintomas e para permitir que as pessoas se mantenham activas. 95% dos meus doentes estão a trabalhar e estão medicados. Não os conseguiria manter a trabalhar se estivessem excessivamente medicados e estão a conduzir automóveis e vão levar os filhos à escola.
As redes sociais são a nova droga? Não tenho redes sociais.
Na sua prática diária tem muitos doentes angustiados por serem dependentes de redes sociais, de sítios pornográficos, do jogo? A pornografia é um assunto pouco discutido, mas há jovens e adultos dependentes de pornografia. Com consumo, digamos, patológico de pornografia, no sentido em que ficam adictos e isso ajuda a explicar também alguns dos comportamentos de violência no namoro, comportamentos de parafilias, até de abusos sexuais em crianças. Isto é pouco falado, mas há uma relação porque depois as pessoas procuram estímulos cada vez maiores. Os pais têm obrigação de ensinar os filhos a usarem as redes sociais e as pessoas devem evitar transformar esse meio em espaços para onde transferem a sua agressividade e as suas frustrações. Há pessoas que têm problemas psicológicos sérios por frequentarem sites de encontros.

“Políticos têm que ouvir os cientistas”

Faz parte e é fundador do “Movimento Acção Ética”. É uma forma de cumprir um dever que é trabalhar para a sociedade não sendo remunerado? Tive várias experiências em que fiz trabalho voluntariado e acho que isso deve ser fomentado, especialmente junto dos jovens porque doar o tempo também é uma forma de contribuirmos para uma sociedade melhor. No início trabalhei para uma associação que acolhia jovens grávidas e foi uma experiência enriquecedora e não ganhei nada por isso. A consciência social do dever de ajudar o outro também se deve praticar e ensinar, deve ser fomentado, e até as escolas deviam ter uma parte do horário para trabalho voluntariado, nem que seja apenas na visitação a idosos.
Estamos a falar das escolas superiores? Superiores e não só, as próprias do ensino secundário, porque é que não hão de ter? Uma das coisas simpáticas que se podem fazer é a visitação de idosos que têm problemas gravíssimos de solidão. E que, às vezes, um simples toque na mão, um gesto de ternura faz a diferença na vida deles.
Num dos seus artigos diz que ficou chocado por ter sido aprovada uma lei sobre educação sexual onde não consta a palavra amor. Lembra-se de ter escrito isto? Lembro sim. É um escândalo. Substituíram sexualidade por genitalidade. Não somos animais irracionais, do meu ponto de vista a sexualidade não deve ser dissociada do amor. Deve ser reforçada pelo amor. Fiquei escandalizado por terem feito esse decreto-lei porque é a mesma coisa que escrever um livro de culinária e esquecer a importância do sal na comida.
Um colega seu, cientista, também escalabitano, defendeu que devia de haver mais cientistas na Assembleia da República. Os cientistas não têm que estar na política activa. Os políticos é têm que ouvir os cientistas e têm que respeitar a opinião dos cientistas e não simplesmente desvincularem-se, como têm feito aprovando leis que contraditam os pareceres médicos, científicos, apenas por razões ideológicas, porque quando assim acontece estamos a entrar em conflito com a realidade.
Fale-me de si. Vai a Santarém com regularidade? Todas as semanas, também porque dou lá consulta na CUF. Continuo ligado à terra. Tenho uma segunda habitação em Vale de Figueira, que foi onde nasceram e viveram os meus avós.
Gosta de trabalhar a terra, de podar as árvores... Não tive essa possibilidade de aprender o que os meus avós faziam, agricultura, mas gosto de estar na terra e a ligação com as plantas e com os animais. Não tenho animais porque não posso. Mas confirmo que há relação com a terra e com os animais na preservação da saúde mental. Noto diferença nos doentes do meio rural para os doentes de meio urbano. Sou médico há trinta anos e nunca como agora tive tanto doente acima dos 90 anos. Há cada vez mais pessoas com a parte cognitiva preservada, mas fisicamente muito limitadas. E as pessoas do campo têm muita dificuldade em enfrentar as limitações e isso muitas vezes conduz a depressões diferentes das depressões das pessoas que vivem em meios urbanos.
Quem o procura mais no consultório é a classe média e alta? Pessoas de todas as classes sociais. Os problemas diferem mas há coisas em comum sempre. A família é uma coisa em comum. Quando há um problema na família todos sofrem de igual forma. Quando há um problema de casamento, a pessoa mais abastada, a pessoa mais simples sofre com isso, ou quando há um filho que está doente ou quando há um luto.
Falam consigo na rua em Vale de Figueira e pedem conselhos? Às vezes. Não sou indelicado, mas não faço consultas de corredor. Isso não. Evito logo. Tem que haver limites para a minha vida pessoal senão às tantas torna-se enlouquecedor.

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