Entrevista | 17-10-2023 18:00

Inês Henriques: “No futebol até os roupeiros são condecorados”

Inês Henriques: “No futebol até os roupeiros são condecorados”
Inês Henriques termina uma carreira de duas décadas no atletismo, que tiveram como pontos altos a conquista dos campeonatos do mundo e da Europa dos 50 quilómetros marcha

Foram mais de duas décadas a competir ao mais alto nível numa modalidade exigente como é a marcha atlética. Inês Henriques, atleta olímpica de Rio Maior, é o rosto da entrega e da superação mas, aos 43 anos, entendeu que chegou a hora de colocar um ponto final na carreira de alta competição. Vai continuar a correr por desporto mas quer ter mais tempo para ela, para a casa e para a família e, quem sabe, ser mãe. Agora é hora de aprender a viver a vida sem treinos, estágios e provas e de esperar por novas oportunidades.

Nasceu no Dia do Trabalhador, 1 de Maio, em 1980 e a sua carreira no atletismo sempre foi pautada pelo esforço, talento e dedicação que a levaram a conquistas impensáveis quando começou a dar os primeiros passos na marcha atlética sob orientação do treinador Jorge Miguel, um fazedor de campeões. Inês Henriques sabe o que custa a vida. Na sua juventude trabalhou na apanha do tomate e noutros afazeres agrícolas. A atleta olímpica, licenciada em Enfermagem, continua a rapariga simples de Estanganhola, em Rio Maior, onde continua a viver numa casa com jardim e quintal. A conversa decorreu nas instalações do Centro de Alto Rendimento de Rio Maior, a sua segunda casa, tendo como contexto a sua despedida da alta competição. Uma decisão que tomou com a consciência de quem tem a missão cumprida. Representou Portugal em três olimpíada e em diversos campeonatos do mundo e da Europa. Para a história ficam os inúmeros títulos nacionais e internacionais em marcha atlética. Em 2017 foi a primeira campeã do mundo dos 50 Km marcha feminina com recorde homologado oficialmente e, no ano seguinte, foi campeã da Europa da mesma distância. Inês Henriques foi distinguida com o Prémio Personalidade do Ano atribuído por O MIRANTE em 2018. Só teve um clube em toda a carreira: o Clube de Natação de Rio Maior.


Chegou a hora de pôr fim a uma longa carreira como atleta de alta competição. E agora? Agora é viver a vida de forma diferente. Acabou este ciclo de atleta de alto rendimento mas espero continuar a correr e a sentir-me bem. Vou continuar a fazer algumas provas amadoras enquanto tiver vontade.
O que é que já mudou de relevante na sua vida desde que tomou essa decisão? Estive de férias e depois foi o meu namorado que me puxou para ir correr, pois estava a ser difícil voltar, mas ele ajudou-me nisso. Tenho treinado e feito corrida por prazer. Tenho feito as provas das freguesias de Rio Maior e ainda não mudei completamente o chip. Por vezes forço demais mas tenho estado mais tranquila. Quando comuniquei pessoalmente a minha decisão ao presidente do Comité Olímpico e ao presidente da federação, e posteriormente à administração da Desmor, senti um alívio…
O que lhe disseram? Compreenderam. As razões são bastante fortes. Foi a retirada da prova de 50km marcha, depois estava com o objectivo dos 35km, mas no final de Março disseram que afinal seria uma estafeta mista de aproximadamente quatro vezes 10km, com um homem e uma mulher, e coloquei logo de parte. Isso não é para quem treina para longas distâncias. Ainda tentei motivar-me para os 20km, mas por já estar há tantos anos a fazer ritmos mais baixos o meu corpo não estava a aceitar ritmos elevados.
Vai aproveitar para dar umas facadinhas na dieta que até agora não podia dar? Gosto de manter uma alimentação saudável. Às vezes sim, mas quero manter o meu corpo minimamente aceitável. Pequena e gorda não (risos)...
Está mentalizada para viver sem a adrenalina da alta competição? Estou. Ainda tinha algum prazer a treinar mas já ia sentindo que a competição não me fazia bem. Nas provas já não conseguia executar o que fazia nos treinos, por isso, não fazia sentido continuar e insistir.
Parou na hora certa? Provavelmente estes dois últimos anos foram a mais, mas preferi assim porque, pelo menos, fico com a consciência tranquila que tentei. Não deu mas procurei fazer o melhor possível. Esta época estava a pensar que fosse completamente diferente. Não foi! E tendo em conta também as mudanças na marcha achei que era o momento certo.
Já tem ideia de como vai ocupar o tempo sem os treinos, os estágios, as provas? Não estou pressionada neste momento quanto a isso. Pretendo tirar um tempo para mim e o futuro vai-se fazendo. Acho que com o anúncio da minha retirada outras portas se irão abrir; temos que ter cuidado para não fecharmos portas e perder oportunidades que nos podem dar algo no futuro.
É licenciada em Enfermagem. O futuro pode passar por aí? Não sei. É verdade que estamos a precisar de enfermeiros, mas sou uma pessoa que sempre trabalhou na rua, no treino, e não estou a ver o passarinho na gaiola. A enfermagem é uma profissão muito bonita, de ajudar o outro, mas não sei se é por aí o meu caminho. Vamos ver, com tranquilidade tudo se irá desenhando.
Consegue ver-se no papel de mãe? Sim, acho que sou uma boa tia. É óbvio que ser tia não é a mesma coisa que ser mãe, mas muitas vezes faço essa função. A minha irmã e o meu cunhado, quando me deixam os meus sobrinhos, sou eu que dito as regras e faço parte da educação deles, por isso, acho que é possível. Por que não?
Qual é o seu estado de alma actualmente? Estou em paz. Acho que o mais difícil é tomar uma decisão. Andava a adiar. No momento que informei as entidades que sempre colaboraram comigo, e às quais estou grata, podia ter deixado de competir, acabar os apoios que tinha e desaparecer. Mas não me sentiria bem comigo, acho que não era correcto. Sempre tive uma boa relação com a federação, com o Comité Olímpico, com a Desmor e quero mantê-la.
O atletismo fê-la rica? Não me fez rica mas fez-me ter algumas poupanças. Consigo orientar-me e se quiser criar um negócio meu, tenho fundos para o fazer.
É uma mulher poupadinha? Sempre fui, desde miúda. Lá em casa era a unha de fome. Fui muito nova para a apanha do tomate e isso deu-me grandes lições. O trabalho custava tanto que quando recebia o salário tinha muita dificuldade em gastá-lo.
Ainda faz alguma agricultura? Comecei. Até tenho uma bolha numa mão (risos). Tenho um quintal grande já com algumas árvores de fruto plantadas e eu e o meu namorado estivemos a arranjar o chão, ficou todo bonito… É uma forma de viver diferente, tenho-me ocupado também a arranjar o jardim, a fazer a limpeza geral da casa, que já não fazia há muito tempo. O pessoal até me diz que já não saio do buraco, mas comprei um buraco bom, grande, por isso, deixem-me estar no meu buraco (risos)…
Já não se vê a sair desse buraco? Não. Gosto bastante de estar em casa, no meu canto. Sinto-me bem.
Não é uma mulher de cidade. Saí de casa dos meus pais na Estanganhola e vivi durante alguns anos no apartamento dos meus pais em Rio Maior. Entretanto voltei para a aldeia, a um quilómetro da casa dos meus pais, e estou lá muito bem.
Nunca pensou ir viver para Lisboa. Nem pensar, nunca coloquei essa hipótese. A minha irmã viveu lá vários anos e voltou para Rio Maior. O campo é sempre o campo.
Está a chegar ao fim uma geração de ouro no atletismo em Rio Maior. Vamos ver. Não temos grande renovação, esse é um facto. Não sei como vai ser o futuro, principalmente do atletismo. Não vai ser fácil…
Actualmente não há grandes nomes que se destaquem… Temos a Inês Mendes, na marcha, e não temos mais ninguém.
O que se passou? Os miúdos hoje já não se interessam pelo atletismo? Hoje em Rio Maior temos muitas modalidades. Os miúdos também vêem o desporto de forma diferente. Há tantas solicitações que já não se interessam tanto. E praticar atletismo exige uma capacidade de superação, de esforço, de sofrimento que não tem paralelo noutras modalidades. Sim e é uma modalidade muito solitária. Nas modalidades de equipa é diferente. Também tínhamos um grupo de miúdos na casa dos 15/17 anos que na altura da pandemia desapareceram e não voltaram. Não conseguimos ter essa renovação.
A Inês pode dar uma ajudinha? Nunca tirei o curso de treinadora e não sei se quero tirar. Já existem atletas e ex-atletas que são treinadores e prefiro ficar fora desse ramo.
Fez muitos amigos no atletismo? Tenho amigos por todas as partes do mundo. Há uns anos estive na Colômbia e um dos treinadores fez questão que ficasse alojada em casa dele. Vou sentir saudades de algumas situações mas não vou sentir saudades de muitas coisas do desporto de alto rendimento, porque há muitos valores que deixaram de existir…
Rivalidades? Há rivalidades saudáveis e outras que não são saudáveis. Nunca deixei de ser quem sou e causa-me impressão algumas coisas. É óbvio que vou ter saudades dos momentos de convívio com atletas de todo o mundo.
E de viajar? Também vou ter saudades. Mas cada vez tinha mais dificuldade em ir para estágio, estar muitas semanas fora, por isso acho que chegou a altura certa para parar. Continuo em Rio Maior e vêm cá muitos atletas. Ainda este ano estiveram cá atletas do Equador, Brasil e Peru durante vários meses e vou podendo estar com essas pessoas.
Tinha alguma rivalidade de estimação? No desporto de alto rendimento nuns dias ganha-se, noutros perde-se, mas quero levar apenas os momentos bons que tive.
E inimigos, não fez? Há pessoas que não gostam de mim mas isso faz parte. Ninguém agrada a todos.

“Houve momentos em que quis desistir”

Qual foi o melhor momento da sua carreira? Sem dúvida que foi o ano de 2017, que resultou no título de campeã do mundo nos 50 quilómetros com recorde mundial. Depois de tantos anos a competir já não acreditava que conseguiria ganhar uma medalha, mas consegui. Fui a primeira a conseguir fazê-lo e tinha lá todas as pessoas que gostam de mim a aplaudir-me. Foi também o reconhecimento do trabalho que o Jorge Miguel teve ao longo de tantos anos a formar jovens na marcha atlética.
E o momento mais marcante que pouca gente conhece? Fui muito feliz em Chihuahua, uma cidade no México. Fiz muitas amizades lá e ganhei três vezes consecutivas o grande prémio de lá, para além de ter sido o local onde conquistei a minha primeira medalha, um bronze na Taça do Mundo de Marcha, quando tinha 16 anos. É uma cidade muito perigosa, onde há muito tráfico de droga, mas tenho um carinho muito especial por ela.
Também teve maus momentos com certeza. Quer partilhar alguns? A perda dos 50 quilómetros de marcha feminina é um deles. A falta de respostas depois de irmos ao Tribunal Arbitral do Desporto deixa-me uma mágoa muito grande. O campeonato do mundo de 2019 foi muito difícil, depois de me ter lesionado em 2018 com alguma gravidade. Entrei numa depressão em que deixei de conseguir dormir, tive ataques de pânico, mas mesmo assim fui ao campeonato do mundo. Acabei por desmaiar durante a prova. Foi um ano muito difícil.
A questão mental é muito importante no alto rendimento. Há muitos atletas a sofrer às escondidas? Há uns anos não se falava muito dos problemas mentais no desporto de alto rendimento. Desde 2010 que tenho apoio psicológico. No meu caso, se estivesse bem fisicamente não tinha problemas. Houve momentos em que quis desistir, mas o Jorge Miguel sempre teve uma postura muito positiva perante as adversidades e deu-me a força necessária nos momentos menos bons dando-me novos desafios para superar.
Sente gratidão de Rio Maior pelos feitos que tem alcançado? Sou grata ao Silvino Sequeira e Isaura Morais, ex-presidentes da câmara, e ao Filipe Santana Dias, actual presidente, pelas infraestruturas que criaram na cidade. Quando iniciei não existia nada, íamos treinar para o campo de futebol e para a ribeira. Evoluí no atletismo porque Rio Maior também evoluiu e sou muito grata por isso. Desta forma consegui manter-me perto da minha família. Acho que isso é uma forma de gratidão. A população em geral também é muito carinhosa comigo. Estou a promover caminhadas da junta de freguesia e quando caminho pelas ruas muitas pessoas me procuram para conversar comigo.
Correu sempre com Rio Maior ao peito? Sempre quis que o meu nome estivesse associado a Rio Maior. Depois de ser campeã do mundo tive oportunidade de ir para outros voos, mas não quis. Durante 31 anos representei com muito orgulho o Clube de Natação de Rio Maior.
O Grande Prémio de Marcha de Rio Maior tem perdido fulgor? A pandemia veio atrapalhar um pouco as coisas. Há dois anos tivemos pouca gente, mas no ano passado a adesão aumentou bastante. A organização da Desmor está diferente e espero que continue a inovar. Mas não há dúvidas de que se a prova não contar com a participação de atletas de Rio Maior não tem tanto significado. A prata da casa é necessária para continuarmos a ter uma prova de nível internacional.
Fazem falta mais condecorações para atletas fora do futebol?
Não há igualdade nesse aspecto para as modalidades. Na altura que fui campeã do mundo e da Europa treinava com o Jorge Miguel há 26 anos. O meu treinador não foi condecorado e eu ainda perguntei porquê, ou pelo menos se o iriam convidar para estar na cerimónia. Responderam que se eu quisesse podia convidá-lo. Naturalmente que o Jorge Miguel decidiu não ir e teve todo o meu apoio. No futebol e noutros desportos colectivos até os roupeiros são condecorados.

Questionário de Proust

“Tinha medo de enfrentar o fim de ciclo”

Como é a Inês com os seus amigos, familiares e colegas de profissão. É sempre a mesma pessoa? Em casa sou diferente, sou a Inês. Tranquila e uma mulher que se dedica à família, principalmente aos sobrinhos. Com as outras pessoas tento manter o mesmo perfil, mas com mais distanciamento talvez.
Qual é a sua ideia de felicidade plena? Não acredito na felicidade plena. Vivo sim com a certeza de que há momentos mais felizes e outros menos felizes.
O seu maior medo? Durante muito tempo foi enfrentar o fim de ciclo com atleta de alto rendimento. Mas vou seguir a vida com optimismo e a olhar para a frente.
A sua melhor característica? Sou muito persistente e dificilmente desisto antes de conseguir alcançar os mesmos objectivos.
Em que ocasiões mente? Procuro não mentir. Talvez tenha ocultado uma ou duas coisas.
Se não vivesse em Portugal onde gostava de viver? Não sei. Viajei muito, mas quando voltava para Portugal o sentimento era indescritível.
Qual foi a sua maior conquista? Estar de bem com a vida. Consegui ter uma casa própria, que comprei sozinha.
Algum arrependimento? Há coisa que provavelmente não teria feito, mas as coisas são mesmo assim e temos que aceitar e seguir em frente.
Qual é a sua relação com Deus? Acredito que Deus nos ajuda, mas temos de fazer a nossa parte. Procurei sempre trabalhar para conquistar e ultrapassar os meus desafios.
Alguma vez fez promessas para tentar obter algum êxito? Não, foi mais por gratidão. Quando fiz 40 anos fui a correr até Fátima, de Rio Maior, para agradecer tudo o que conquistei.
Se Deus existisse, o que gostava que ele lhe dissesse? Que tenho procurado fazer o bem.

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