Entrevista | 25-10-2023 12:00

A vereadora que é bombeira e não entra nas tricas políticas do executivo de Azambuja

A vereadora que é bombeira e não entra nas tricas políticas do executivo de Azambuja
Mara Oliveira, eleita pela CDU, está a cumprir o seu primeiro mandato como vereadora com pelouros na Câmara de Azambuja

Mara Oliveira é a vereadora da CDU na Câmara de Azambuja que dá estabilidade governativa ao PS. Não é incómoda porque, diz, está ali para trabalhar e não para fazer jogo político. Com o pelouro da Acção e Habitação Social conseguiu desbloquear o impasse das dívidas dos beneficiários e prepara uma medida que promete ajudar famílias com animais domésticos. É bombeira voluntária há quase 25 anos e mãe solteira, com muito orgulho.

Mara Oliveira tem 41 anos e é natural de Casais das Boiças, na freguesia de Alcoentre, onde ainda vive com o filho Afonso, de 13 anos. Estreou-se nas corridas eleitorais como cabeça-de-lista à assembleia de freguesia, mas sem sucesso. Nas últimas eleições autárquicas o desafio foi maior: concorreu, pela CDU, à presidência da Câmara de Azambuja, onde acabou por ficar como vereadora, garantindo, através de um acordo com o PS, estabilidade governativa aos socialistas, que perderam a maioria absoluta. Entre os pelouros que lhe foram atribuídos está o da Habitação Social, uma das pastas mais relevantes e que carregava há vários mandatos uma pesada dívida de rendas que em meio mandato já conseguiu reduzir. Já foi elogiada pelo trabalho que tem vindo a fazer, mas também criticada por se escudar de dar a sua opinião em assuntos polémicos debatidos nas reuniões camarárias.
Filha de pais comunistas milita no PCP há 15 anos, mas assume que nem tudo o que o seu partido diz é lei. “Também sou benfiquista e às vezes não gosto da forma como jogam”. No PCP é igual e exemplo disso é a posição do partido sobre a guerra na Ucrânia, com a qual não concorda. Começou a trabalhar aos 18 anos e estudou à noite. É psicóloga e antes de ser vereadora a tempo inteiro trabalhava nos Recursos Humanos do Agrupamento de Centros de Saúde do Estuário do Tejo. É no gabinete onde trabalha, ladeada por socialistas, que recebe O MIRANTE para uma conversa sobre o trabalho que tem vindo a desenvolver, sobre o seu percurso como bombeira e o papel de mãe solteira, o melhor, diz, que sabe desempenhar.


No ano em que tomou posse como vereadora o mapa de dívidas das rendas da habitação social ascendia aos 408 mil euros. Perdoar dívidas, como têm vindo a fazer, era a única solução para o problema?
Neste momento era a única solução possível porque a maior parte das dívidas tinha muitos anos e estava prescrita. Como tínhamos que começar por algum lado começámos a regularizar essas dívidas que já não conseguíamos cobrar. Além dessas, temos muitos acordos que já foram cumpridos e outros que estão em cumprimento. A dívida baixou consideravelmente e temos praticamente todos os moradores a pagar, mas ainda não conseguimos regularizar tudo porque não é um assunto fácil. Houve um trabalho de acompanhamento que não foi feito e não falo só do último executivo porque uma dívida dessas não se faz em quatro anos.
Há quem considere a medida injusta para quem sempre cumpriu com as suas obrigações.
Sabemos que quando há um contrato de arrendamento, seja de habitação social ou não, tem de ser cumprido. Há quem cumpra e não é justo para quem sempre pagou, é verdade, mas tínhamos que fazer alguma coisa.
Quem não estabelecer acordos de pagamento e não os cumprir vai mesmo para a rua? Não é estar a agravar um problema social?
Existe essa hipótese, de encetarmos despejos se os acordos de pagamento não forem cumpridos. Por isso mesmo é que as pessoas estão a cumprir, praticamente todas. Cerca de 5% não está a cumprir e são pessoas com quem não conseguimos chegar à fala.
Quantas pessoas tem este município em lista de espera para habitação social?
A partir do momento em que aprovamos um regulamento de habitação deixou de haver lista de espera oficial. Agora é só por concurso e ainda não abrimos nenhum porque no concelho de Azambuja não há habitação social disponível. No entanto, todos os dias há famílias que vêm à câmara pedir casa. Os senhorios estão a aumentar substancialmente as rendas e não existe capacidade para fazer face a essa subida. Desde idosos com mais de 80 anos que moram sozinhos e vão ser despejados, a famílias jovens com filhos e famílias monoparentais. Uns têm emprego outros estão desempregados, há de tudo.
Vemos outros municípios da região a aproveitar o PRR e outras linhas de financiamento comunitário para implementar habitação a custos controlados. A Câmara de Azambuja anda distraída?
Não, não anda distraída. Ainda recentemente eu e o senhor presidente reunimos com o IHRU para trabalharmos uma candidatura para criar habitação a custos controlados em habitações que vão ser construídas de raiz.
A Estratégia Local de Habitação, aprovada em 2021, prevê a requalificação do bairro social e a construção de novos fogos. Em que ponto está o processo? Já conseguiram aceder aos milhões do IHRU?
Já fizemos o levantamento de todas as obras necessárias no bairro. Há casas que estão em boas condições e outras em muito más por isso vamos fazer uma intervenção de fundo e que vai incluir a substituição das canalizações. Mas continuamos à espera que seja desbloqueado, não depende de nós. Pelas informações que temos estará próximo.
Tendo noção acerca da realidade de tantas famílias a precisar de habitação não lhe causa incómodo ver as dezenas de casas dos estabelecimentos prisionais (EP) de Alcontre e Vale de Judeus desabitadas e a cair aos bocados?
Claro que sim. O meu pai era funcionário do EP de Vale de Judeus e embora nunca tenhamos vivido lá eu ia para lá brincar. Aquele bairro era uma alegria: tinha escola, igreja e um parque infantil quando ainda nem sequer havia um em Alcoentre. É muito triste ter chegado àquele ponto, com tudo a cair, quando tem um potencial enorme. A verdade é que o paradigma foi mudando, antigamente os guardas traziam as suas famílias e isso já não acontece; os que vêm de fora não se fixam. Sobre estas habitações [passarem para o município] também estamos à espera que seja desbloqueado a qualquer momento.
Além da habitação quais são as principais carências que Azambuja tem em termos sociais?
Começamos a ter muitas carências de bens essenciais, o que é muito triste sobretudo quando há famílias com crianças. Tentamos dar resposta a todos os pedidos, que têm aumentado, e muitos são de imigrantes que além desses bens precisam de roupa e bens para a casa. A nossa loja social está bem recheada e temos conseguimos dar resposta aos pedidos. Neste momento temos 491 pessoas a beneficiar do cheque refeição, que aumentou de seis para 12 euros; 443 a beneficiar do cheque farmácia, que foi alargado a todos os elementos do agregado familiar, e começamos com o novo apoio à natalidade no valor de dez euros mensais no primeiro ano de vida do bebé. Estamos também a trabalhar numa nova medida social que junta o bem-estar animal à acção social porque muitas famílias carenciadas têm animais e temos sentido uma grande procura a nível de alimentação para animais. Estamos a ver a possibilidade de fazer um protocolo que garanta atribuição alimentar aos animais domésticos dessas famílias para as ajudar e evitar o abandono.
Tem sido criticada pela oposição à direita por não participar na discussão de assuntos e propostas mais polémicas. E de facto não a ouvimos falar muito. É o acordo governativo com o PS que limita as suas intervenções?
Como é óbvio há um acordo, mas não é isso que está em causa. Entendo que a minha postura não é a de fazer oposição numa reunião de câmara se eu trabalho em equipa e as coisas são faladas e resolvem-se antes de chegarem a reunião de câmara. Também acho que às vezes o menos é mais e que nas reuniões de câmara há discussões que não levam a lado nenhum.
Então ninguém lhe põe uma mordaça?
Não, simplesmente não faz parte de mim ir para uma sessão de câmara resolver o que posso resolver todos os dias. Mas não concordo com tudo. Já me abstive numa proposta de declaração de interesse público e votei contra a proposta da transferência de competências da Saúde, que acabou por não passar por só ter os votos a favor do PS. Para mim não estão reunidas as condições necessárias para assumirmos a Saúde. Neste momento o SNS está a passar por uma grande indefinição com a criação das ULS que vai ter competências financeiras, administrativas e patrimoniais. Para que vamos aceitar as patrimoniais se daqui a três meses temos a ULS?
Como é trabalhar ao lado de quem tem poder para resolver os problemas do concelho?
No início não foi fácil a adaptação, mas têm sido impecáveis, trabalhamos em equipa. Para mim, na política as guerras ficam na campanha eleitoral. Depois disso o objectivo, tanto do PS como da CDU, é só um: fazer o melhor pela população.
E não é esse também o do Chega e do PSD?
Acho que pensam que sim, que trabalham em prol do concelho. Mas não concordo com as ideias nem com a forma de trabalhar deles, nem formas de agir ou estar nas reuniões de câmara. Se há um problema ajuda-se na solução, não se cria outro problema.
Agora que lida mais de perto com o poder vê-se no cargo de presidente da Câmara de Azambuja?
Não penso nisso, agora estou aqui para trabalhar. Nem sequer estou a pensar se me recandidato ou não.

“Ser bombeiro é muito duro a nível emocional”

O que pensa uma bombeira do enredo que se montou à volta da proposta de apoio aos Bombeiros de Azambuja para a compra do novo veículo de desencarceramento?
Não devia ter acontecido, os bombeiros não mereciam. Houve uma falta de bom--senso enorme, não se faz política com os bombeiros. A situação está ultrapassada, é o que interessa.
Alguém tirou aproveitamento político?
Não quero pensar que isso possa ter acontecido. Se era para tirar saiu tudo ao lado.
Os anos que os bombeiros demoraram a conseguir verba para comprar um veículo tão necessário é a prova que os bombeiros são o parente pobre da Protecção Civil?
Em relação ao município não são de certeza. Mas os bombeiros não deviam depender da ajuda dos municípios, quem tem a verdadeira responsabilidade não está a dar o que devia. É preciso uma mudança.
O que a levou a ingressar, como voluntária, nos Bombeiros de Alcoentre?
O meu pai era bombeiro e desde pequena que dizia que queria ser bombeira. Aos 17 anos fui para a recruta e para o ano recebo a medalha dos 25 anos. Ser vereadora na câmara tirou-me três coisas que gosto: tempo para os bombeiros, para a família e para ler. Mas continuo a fazer escalas.
Já teve que deixar o trabalho pela metade para dar resposta a uma ocorrência?
Desde que estou na câmara não, mas já aconteceu. Quando o comandante me ligou para ir para os incêndios de Pedrógão estava a trabalhar na Segurança Social. E essa é uma ocorrência que me traz muito más memórias; trouxe-me um receio dos incêndios que não conhecia. Estive lá 48 horas e assisti muitos moradores em pânico e vítimas de acidentes. Mas é assim, nós bombeiros temos bons serviços e situações que marcam para a vida. Lembro-me de uma pessoa agarrar a minha mão e me pedir para dizer à esposa que gostava muito dela, pouco tempo depois morreu. Durmo muito mal e costumo dizer que é por isso. A nível emocional ser-se bombeiro é muito duro. Há memórias que não se apagam mas fazem com que se cresça.
É psicóloga de formação. Como está a sua saúde mental desde que é vereadora com pelouros?
Desde que entrei para a câmara já envelheci dez anos, mas ainda estou com resiliência para continuar. A saúde mental é que tem, tanto em Azambuja como no resto do país, um longo caminho pela frente. A depressão continua a ser tabu e embora já haja mais abertura continua a resistência em ir ao psicólogo. Mesmo quando, por exemplo, é a escola a aconselhar, há pais que acham que é para malucos.
O SNS está pela hora da morte?
Espero que não morra e que a privatização nunca aconteça. O privado é o primeiro a chutar para o público quando algo corre mal, em situações urgentes. Mas estão a crescer e o SNS tem que arranjar estratégias para crescer também. Temos que combater as ofertas aliciantes do privado [para os profissionais de saúde] e criar uma obrigatoriedade para que ficassem no público alguns anos depois de terminarem o curso. Em Azambuja temos o apoio à fixação de médicos e não está a funcionar; para os fixar também temos de ter boas creches, escolas, espaços culturais, rede de transportes.
O projecto Bata Branca, implementado em Azambuja para atenuar a falta de médicos, não choca com os seus ideais comunistas?
Não choca porque havia falta de resposta, mas o caminho não pode ser haver projectos Bata Branca. O ideal é ter médicos a ocupar as vagas dos centros de saúde, tem que se continuar a insistir com a tutela.

“Nunca tive vergonha de dizer que sou mãe solteira”

Tem um filho...
Sim, o Afonso, de 13 anos. Desde sempre que somos só eu e ele. Foi inesperado, mas habituei-me a fazer as coisas sozinha. Foi assim que aprendi a não precisar dos outros.
Não lhe causou medo ser mãe solteira?
É diferente, porque só contas contigo, mas nunca tive medo. Quantas vezes o Afonso dormiu nos bombeiros enquanto eu fazia escala...tinha de ser, não havia outra forma.
E vergonha?
Também nunca tive vergonha de dizer que sou mãe solteira. As mães solteiras são umas guerreiras e digo isto com muito orgulho porque é mais difícil ter que decidir tudo, estar lá 24 sobre 24 horas. Tudo isto faz com que tenhamos uma força muito grande, não que as outras mães não tenham. Tenho muito orgulho no Afonso; espero que seja um homem de palavra. Eu sou e muito leal, embora tenha mau feitio.
Mudava alguma coisa do passado?
Se mudasse alguma coisa do passado não era o que sou hoje, não tenho arrependimentos. Quando fiz foi porque achava que era assim que devia ser feito. Lido bem com isso. Não lido bem com a maldade das pessoas e há muita maldade na política.

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